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Apontamentos e memórias: quando a história individual se entretece com a coletiva e

3- O dia em que o dardo da zarabatana inclusivista me atingiu

Em agosto de 2004, fui convidada a começar a trabalhar em salas especiais numa escola particular. Fiquei tão embaraçada. Por onde começar? Fui à biblioteca da faculdade FAINTVISA, pedi autorização para levar alguns livros para casa, no acervo Cesar Coll et. al. (1995), Julie Dockrell e John McShane (2000). Li tudo o que eu podia sobre deficiência. Decidi que trabalharia apenas com sessões de leitura e verificaria o que os alunos conseguiam construir a partir de textos literários.

Ao chegar à escola, na segunda-feira pela manhã, afirmei:

- Pronto! Após as aulas do turno da manhã, mostro para vocês o que planejei para esta primeira semana de aulas na CPE. Li muito sobre deficiência; síndrome de down, autismo e outras. Também li sobre dificuldades de aprendizagem.

- Fabiana, você só precisa compreender seus alunos, como pessoas que estão aqui para aprender, construir conhecimento. Você vai ver. Você vai gostar. Não fique aflita. Nós temos certeza que dará certo. Na verdade o que você precisa é conhecer bem a sua disciplina, os conteúdos e você, sensível como é, saberá como agir.

Tudo parecia perfeito. Os alunos integrados, alguns já inseridos nas salas regulares. Eu achava que Freinet estava feliz e eu tranquila. Os alunos foram me ajudando a delinear os caminhos formativos. A maioria das famílias eram parceiras no processo e a escola me deixava autônoma para caminhar com o grupo.

No dia 1º de junho de 2005, Tiago Vinícius, meu filho, nasceu, eu estava plenamente vivendo o mais encantador, mágico, abençoado, singular momento da minha existência. Já não tinha mais condições de trabalhar no município do Cabo. O Neelij cessou as reuniões. Eu havia concluído a graduação. E assim que meu bebê completou um ano ingressei na pós-graduação lato sensu em Literatura Infanto-Juvenil, na Faculdade Frassinetti do Recife, esse era o caminho sugerido por Hugo, era um caminho que aguçava a minha sensibilidade, o meu desejo de me emaranhar por entre as letras e descobrir o porquê de elas encantarem o Tiago, os meus alunos e a mim. Eu estava agora entrando num corredor com muitas portas.

No dia 30/08/2005, às 10h da manhã, a convite do professor Hugo Monteiro, meu orientador e amigo, estive no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) do Recife para ministrar uma palestra. Aquela experiência desestruturou as bases das minhas certezas. Senti-me como que atingida pelo dardo de uma zarabatana, meio atordoada, respondi às perguntas feitas pela Lívia, mas as respostas já não me convenciam. Passei dias reprisando aquelas perguntas. As capacitações promovidas pela escola não as respondiam. Eu estava desconfiada dos efeitos do meu trabalho. Transcrevo, na íntegra, parte da palestra. Hoje consigo perceber como, através do discurso, difundi e vivifiquei barreiras atitudinais que justificavam a existência de salas especiais:

- [...] Propomos a discussão sobre o que é avaliação, como avaliar, o que avaliar, qual a função da avaliação e para atingir, mesmo que de modo sucinto tais questões, comentaremos um projeto que está sendo vivenciado nas classes de projetos especiais. Estas classes são constituídas apenas por alunos especiais, as metodologias empreendidas neste processo ancoram-se na pedagogia freinetiana.

Então, o projeto “Portfólio: avaliação por meio de múltiplas lentes” tem promovido a interface entre avaliação e aprendizagem tanto para nós, professores, quanto para os alunos especiais, pois neste processo o portfólio, em formato de diário dialogado, tem servido para promover a aprendizagem desses alunos e sinalizam para o professor se o percurso metodológico tem sido satisfatório, se tem oportunizado a construção de aprendizagens. [...]

- Mas, professora, desculpe-me! Bom dia, sou Lívia Guedes, supervisora do Senac, preciso fazer-lhe uma pergunta: a senhora fala da perspectiva da

educação especial ou da educação inclusiva? Quais são os fundamentos que norteiam o trabalho com estes alunos? Como e por que eles são agrupados em classes especiais?

- Bem, a escola, como lhes disse, propõe que efetivemos um trabalho baseado nos princípios da escola nova, especificamente na teoria de Celestin Freinet. Então, ao nível das posturas pedagógicas, o movimento Freinetiano considera os alunos como sujeitos, todos diferentes, e não apenas como alunos passíveis de um tratamento uniforme. Assim, quando um aluno está em dificuldade, o professor deve tratar a dificuldade pela diferenciação do ensino, antes de qualquer pedido de intervenção da rede de ajuda (psicóloga, etc.).

A escola oferece este trabalho desde 1996. É uma proposta denominada Classes de Projetos Especiais (CPE), a qual busca propiciar as condições adequadas para que o fazer pedagógico favoreça o desenvolvimento potencial de cada aluno na perspectiva de sua interação com a sociedade, da historicidade destes alunos, dos temas pelos quais eles se interessam, das habilidades que eles já apresentam e podem ser ampliadas. Enfim, as salas especiais são espaços em que os sujeitos são respeitados em suas diferenças, eles constroem vínculos afetivos, socializam aprendizagens entre as turmas e nos eventos promovidos pela escola todos participam, a seu modo, entende? Outra coisa: no turno da manhã, temos vários alunos que já foram inseridos nas salas regulares. Então, geralmente, o aluno faz uma sondagem, que consiste na realização de um exercício de língua portuguesa e matemática, depois ele faz uma entrevista com a psicóloga da escola e aí ele ingressa na CPE; mais adiante, de acordo com a desenvoltura dele e o acompanhamento da escola e da família, todos avaliam se esse aluno já tem condições de frequentar as salas regulares. Às vezes, eles nem querem, se acostumam, gostam da dinâmica das aulas da CPE.

- Certo, professora Fabiana. É que eu, no momento, estou cursando mestrado em educação inclusiva, faço parte de um grupo de estudos: o Centro de Estudos Inclusivos, lá na UFPE e a gente tem discutido um pouco sobre o formato destas salas especiais, não destas a que a senhora se refere especificamente, mas o modo como esta divisão entre os alunos é pensada. Assim, se a senhora quiser conhecer este trabalho, podemos conversar depois. Olhe, meus parabéns pelo trabalho, certamente a construção destes diários trazem muito da história dos alunos e demonstram que se tem estimulado cada um a desenvolver seus potenciais. A gente tem acreditado nisto, né, que todos são capazes de aprender. Seu trabalho demonstra sensibilidade e um olhar amplo da avaliação o que serve para a realidade da nossa instituição.

- Obrigada, Livia, pelas contribuições. Caminhando mais um pouco, gostaria de destacar que este recurso avaliativo pode ser utilizado em quaisquer etapas do processo de educação formal, a partir dele temos várias evidências das aprendizagens, percebemos a autenticidade, vivenciamos o dinamismo, oportunizamos a exposição de propósitos, a integração entre a escola e outras situações sociais. [...]

(TAVARES, Fabiana. Portfólio de atividades docentes. Transcrição da palestra sobre avaliação por portfólio em classes de projetos especiais. Registro de aprendizagens e de questões, 30/08/2005, p. 46 a 56.)

Só agora, ao refletir sobre a minha atuação nas salas especiais, ao refletir sobre essa palestra, compreendi o que disse certa vez um professor de filosofia,

José Feitosa, ao citar o cientista e o ensaísta francês Albert Jacquard: “uma resposta é sempre um pouco pretensiosa, ela fecha um problema, enquanto uma questão nos abre o mundo”. Nossa! Precisei de alguns anos para que eu rememorasse esse discurso e compreendesse que as perguntas nos guiam a duvidar das respostas que temos cristalizado.

As perguntas feitas pela Lívia pareciam me perseguir, eu não as esquecera. Ingressei na especialização com um objeto de pesquisa organizado na mente e no papel, um pré-projeto: O “diferente” na tessitura da Literatura Infanto-Juvenil Contemporânea, objetivando: a) Verificar como a constituição da trajetória da “personagem diferente” era percebida pelos leitores em formação; b) Analisar se a recepção das obras que representam, através de seus personagens, a “pessoa portadora de alguma diferença”, possibilitava a consciência da inclusão.

Nesse período, eu compreendia a deficiência como diferença e queria saber se a literatura como elemento (in)formativo ajudava as crianças a compreender, com naturalidade, a deficiência. Fiquei bem motivada quando encontrei o livro escrito por Cruz (1991), “O deficiente e as diferenças na Literatura Infantil e Juvenil”, porque enxergava nele a pertinência do meu percurso cognitivo de entendimento da função da literatura e das representações sociais que ela nutre, socializa, cristaliza ou erradica acerca da diversidade humana1.

Na pós-graduação lato sensu, aprendi a olhar a literatura infanto-juvenil como quem utiliza um caleidoscópio: a sociologia, a antropologia, a psicologia, a psicanálise, a pedagogia e a teoria da literatura nas diversas disciplinas vivenciadas na pós-graduação traziam um novo modo de perceber a arte das letras. Conheci Giovana, Marúcia, Magdalene, Marcela, Lidia e tantos outros inesquecíveis amigos que se juntaram a Mariano e a mim para realizarmos muitas atividades acadêmicas e de degustação literária. Tempos bons! Hugo novamente estava ao meu lado, dizendo: - Siga! E nos encontros de orientação para a construção do projeto de pesquisa, as tantas perguntas que ele fazia desconstruíram todo o meu projeto inicial. Agora, eu percebera a fragilidade do texto, dos caminhos escolhidos. Que

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Nesta linha de debate também é valorosa a leitura de CALMELS, Daniel. La discapacidad Del

hèroe – Diferencia Y discapacidad e, lãs narraciones dedicadas a La infância. 1ª ed. – Buenos

angústia! Hugo me apresentou a teoria da estética da recepção e outras tantas para que eu tivesse condições de consciente e criticamente escolher um percurso.

Em meados de 2006, decidi fazer a inscrição para cursar disciplina como aluna especial no curso de mestrado em Educação, na Universidade Federal de Pernambuco. Tinha muitas incertezas e a vontade de conhecer o caminho que dava para outras tantas portas rumo à pesquisa científica e a reflexão acerca da formação e da prática docente.

4. Tópicos atuais da educação: processo denso de percepção das