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2.1 – O direito tributário sancionador nos períodos colonial e imperial

CAPÍTULO II – OS ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO TRIBUTÁRIO

II. 2.1 – O direito tributário sancionador nos períodos colonial e imperial

O direito tributário sancionador da aurora do Brasil colônia em pouco diferia daquele à época vigente nos países europeus. Esparso e raramente sistematizado, era essencialmente posto por meio de normativos jurídicos emanados dos monarcas absolutos de Portugal ou por seus subalternos autorizados, inexistindo preocupações com a tutela dos contribuintes.

38 O desdém de Portugal com o território descoberto nos primeiros trinta anos do descobrimento resultou na quase nula produção normativa no período pré-colonial, aplicando-se, por transposição, as normas da coroa portuguesa. No momento seguinte, com a criação das capitanias hereditárias, pouco mudou. Persistiu a aplicação das normas portuguesas, porém, a elas se adicionaram outras, constantes das Cartas Forais de criação das capitanias, que entregavam aos capitães alguns privilégios, como o de arrecadar tributos para si. Na prática, havia tributos devidos ao Rei e outros ao donatário da capitania, bem como um parco regramento da atuação dos fiscais de ambos, imperando a falta de critérios na imposição das sanções tributárias e a forte autoridade dos fiscais105.

A ausência de regras claras e de controle pelo reino estimulou a sonegação, o contrabando e o descaminho, fazendo com que a coroa portuguesa estabelecesse, a partir de 1548, o Governo-Geral no Brasil, centralizando a arrecadação e a fiscalização. Surgiram, então, alguns normativos tributários dedicados à colônia, e o Regimento Real de 17 de dezembro de 1548, se não é certo que tenha sido o primeiro, é provavelmente o mais importante destes diplomas de normas do início da colonização.

Ao organizar embrionariamente o sistema tributário da colônia, ele fixou alguns dos tributos a serem cobrados dos súditos em favor do Rei e elencou as atribuições delegadas aos principais atores da tributação. Ademais, ele também serviu como veículo de várias previsões hipotéticas de sanções pelo descumprimento das normas jurídicas de tributação. As sanções mais recorrentes nele previstas eram as de multas pecuniárias e de perdimento de bens e mercadorias. Contudo, também eram previstas sanções de prisão e de degredo106. O carregamento ou descarregamento de mercadorias sem a passagem pela alfândega ou pela casa de arrecadação, por exemplo, era severamente sancionado com a perda da mercadoria carregada ou transportada e do próprio navio, além do degredo do capitão mestre e piloto para a ilha de São Tomé pelo período de cinco anos. A sonegação da dízima sobre a produção de açúcar já vendido, apurada pelo confronto dos livros da alfândega com os livros dos provedores das capitanias, era punida com o pagamento

105 No mesmo sentido, UBALDO BALTHAZAR conclui ao afirmar que “Não havia (...) uma organização fiscal, e os agentes fiscais detinham forte autoridade para multar, executar cobranças e condenar infratores”. (UBALDO CEZAR BALTHAZAR. A história do tributo no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005) 106 Em regra, todo contrabando ou descaminho era sancionado com a perda da mercadoria, bem como a falta de selo nas mercadorias sujeitas a sua aposição. Um maior detalhamento sobre o tema pode ser pesquisado em ALCIDES JORGE COSTA (ALCIDES JORGE COSTA; LUÍS EDUARDO SHOUERI (Coordenadores).

39 dobrado do valor do tributo devido, enquanto que a retirada de açúcar não dizimada das casas de purgar era punida com o perdimento da mercadoria. Havia ainda outras normas sancionadoras, sendo estes apenas alguns de seus exemplos.

Outra peculiaridade que merece destaque no Regimento, como observou ALCIDES JORGE COSTA107, é a previsão de retribuição ao denunciante da infração. Ele, em regra, ficava com o terço do produto da sanção de multa ou de perda de bem.

Ao lado das Cartas dos Forais e do Regimento Real de 1548, também vigoravam no Brasil, enquanto colônia do reino português, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, nesta ordem, sendo que a última também vigorou na alvorada da independência. Elas eram compilações de diversos textos normativos portugueses, voltadas a facilitar a padronização e a aplicação de normas no Reino. Assim, veiculavam também inúmeras normas jurídicas tributárias sancionadoras, merecendo destaque as severas previsões sancionadoras aos delitos de contrabando e de falsificação de selos, com castigos que variavam entre a condenação à morte natural, o degredo, perpétuo ou temporário, o confisco, o perdimento de bens e mercadorias e as multas pecuniárias108.

107 Cf. COSTA. 2001.

108 Pela extensão dos conteúdos das Ordenações e pela limitação metodológica desta dissertação, é impossível relatar aqui em pormenores todas as normas jurídicas tributárias sancionadoras por elas previstas. Porém, segue o relato de alguns exemplos:

Nas Ordenações Afonsinas era determinada a sanção de prisão ao Tabelião Geral que não pagasse o imposto anual por ele devido, conforme disposição do Livro 2, Título XXXIIII. Previa também a sanção de perda de bens e de morte aqueles que financiassem o contrabando, segundo prescrição constante do Livro 4, Título IV.

Nas Ordenações Manuelinas, por sua vez, previa-se que a cobrança de tributos pelo Capitão além dos limites a ele outorgado na Carta de Foral da Capitania seria sancionada com a perda da outorga, como determinava o Livro 2, Título XLV. Porém, se o crime fosse cometido por subalterno encarregado da cobrança, este sofreria, na primariedade, as sanções de açoite e de degredo por dez anos para a África, ou, na segunda prática, a sanção de degredo perpétuo para a Ilha de São Tomé, ou ainda, na terceira infração, a sanção de morte natural. Além disto, o crime de falsificação de selos merecia sanções de degredo e de perda de bens, nos termos do Livro 5, Título VIII, enquanto o contrabando era sancionado com o confisco dos bens contrabandeados, com a perda de terras e com o degredo vitalício para a Ilha de São Tomé, segundo previa o Livro 5, Título LXXXVIII, havendo, todavia, sanção mais branda aos Fidalgos e Alcaides Maiores, de perda dos bens contrabandeados e de degredo por dois anos para Cepta.

Por fim, nas Ordenações Filipinas constavam prescrições semelhantes. Pelo Livro 5, Título LII, previam- se sanções ao crime de falsificação de selo que iam da morte natural ao degredo para à África ou para o Brasil, além da perda de bens. Já o contrabando, conforme o Livro 5, Título CXII, era sancionado com a perda dos bens contrabandeados e com o degredo vitalício, havendo igualmente sanção mais branda para os fidalgos e Alcaides Maiores, de degredo para a África por dois anos e de pagar nove vezes a que fora contrabandeado. Havia ainda a prescrição de sanções diferenciadas para o contrabando de certos produtos, sendo o contrabando do ouro, nos termos do Livro 5, Título CXIII, sancionado com a morte natural e a perda de todos os bens possuídos. Uma última observação a ser feita é sobre a sanção que se aplicava aos agentes fiscais que, dolosamente, deixavam de arrecadar ou perdiam os bens arrecadados, apenados com a perda do ofício, de nove vezes o valor perdido e com a pena aplicável aos ladrões, conforme o Livro 5, Título LXXIV.

40 Entretanto, as reprimendas mais severas eram reservadas ao delito de lesa Majestade, pelo qual se punia, dentre outras condutas, levantar-se ou confederar-se contra o soberano ou o Estado. As sanções eram de eterna infâmia, estendida aos descendentes, de morte por meio cruel e de confisco dos bens109. Ou seja, a condenação prosseguia pela posteridade, alcançando a honra do punido e de seus descendentes, e graduava-se até a condenação à morte, majorada pela crueldade na execução. Como a tutela do contribuinte era praticamente inexistente, as cobranças eram violentas e a opressão fiscal era presente110, havia combustível suficiente à eclosão das revoltas populares, que vez por outra rebentavam, dando azo à aplicação da sanção. Foi este, por exemplo, o desfecho da Inconfidência Mineira, aplicando-se a Tiradentes tal pena cruel.

Todavia, a insurreição mineira não foi a única de nossa história a ter a excessiva carga tributária e violenta opressão fiscal como elementos de amálgama dos descontentes. A Guerra dos Mascates, a Guerra dos Emboabas, a Conjuração Baiana, também chamada de Revolta dos Alfaiates, a Revolução Pernambucana, ou Revolta dos Padres, são outros exemplo da época colonial. No período imperial, pós-independência, outros movimento sucederam, como a Revolução Farroupilha.

Retornando à experiência dos inconfidentes, podemos identificar outra espécie de sanção tributária como deflagradora da sublevação. Foi a derrama, sanção tributária coletiva, por meio da qual o fisco português confiscava dos colonos brasileiros objetos de ouro até atingir a arrecadação anual pretendida, quando esta não era alcançada. O odioso mecanismo era cria da reforma pombalina, ocorrida em 1761, que também introduziu como novidades no sistema tributário português o Tesouro Real, centralizador da arrecadação, e o Conselho de Fazenda, contencioso administrativo vocacionado a tratar das causas relativas aos interesses de arrecadação da Coroa111. Já havia também regramentos específicos para a administração e tributação das regiões mineradores do ouro,

109 A sanção era prevista no Livro 5, Títullo VI, das Ordenações Filipinas, sendo que já haviam previsões semelhantes nas Ordenações Manuelinas, no Livro 5, Título 2, e nas Ordenações Afonsinas, no Livro 5, Título II. Todavia, houve o agravamento da sanção aplicada acrescendo-se a infâmia e a crueldade à morte. 110 BALTHAZAR observa que a autonomia de atuação do Provedor-Mor em relação as demais autoridades portuguesas favorecia os abusos e as cobranças violentas (Cf. BALTHAZAR. 2005. p. 42).

111 PAULO BONILHA bem observa que os interesses dos contribuintes permaneciam em segundo plano, restando o foro comum para as dívidas das quais fossem beneficiários contra a fazenda do Rei (Cf. BONILHA. 1997. p. 17).

41 do começo do século, e dos diamantes, que recrudesciam cada vez mais a política tributária, já repressiva e violenta112.

A vinda da família real para o Brasil, em 1808, fugida de Portugal, resultou na liberação dos portos às nações amigas e em outras medidas benéficas, mas também na germinação de novos tributos, e, com eles, de novas normas sancionadoras. O panorama tributário opressor, somado à ebulição dos movimentos revolucionários liberais, favoreceu a proclamação da independência, que viria logo a seguir.

Na alvorada do Brasil imperial, pouca coisa mudou, sendo aplicadas as leis portuguesas enquanto não era editada a legislação nacional113. Todavia, logo em seguida, com a outorga por Dom Pedro I da primeira Constituição do Brasil, de 1824, já houve avanços. Foram abolidas as penas cruéis, como o açoite, a tortura e a marca a ferro quente, e com elas a pena de morte cruel. Também houve a limitação da aplicação das penas criminais somente aos infratores, eliminando-se as condenações capazes de atingir seus ascendentes e descendentes, como a infâmia. Além disso, houve a expressa garantia de direitos civis, como o respeito à legalidade, à igualdade, à irretroatividade das leis, bem como uma embrionária referência à capacidade contributiva114.

Por certo, as mudanças verteram impacto sobre o direito tributário sancionador para favorecer a tutela dos contribuintes. De outro lado, a atribuição do poder moderador ao imperador e a manutenção de algumas características coloniais, como a escravidão, o patrimonialismo e o clientelismo, prejudicavam a efetivação desses direitos.

Alguns anos adiante, em 1831, vieram outras mudanças benéficas aos contribuintes. Com a decretação do Código Criminal do Império, houve a introdução da estrita legalidade, rareando-se a aplicação de sanções penais aos ilícitos tributários. Os tipos penais do contrabando e da falsificação de selo foram mantidos, todavia não mais sancionados com a morte ou o degredo. Eram punidos, respectivamente, com o perdimento da mercadoria contrabandeada e o pagamento de multa igual à metade de seu valor e com a

112 BALTHAZAR observa que a outorga do privilégio absoluto de cobrar tributos aos grandes comerciantes e o acompanhamento da força militar na cobrança dos tributos contribuíram para a piora do cenário (Cf. BALTHAZAR. 2005. p. 51).

113 Cf. BALTHAZAR. 2005. p. 78.

42 prisão com trabalhos forçados, de dois meses a quatro anos, mais multa pecuniária de cinco a vinte por cento do dano causado115. Ademais, a pena de morte foi afastada do crime de lesa Majestade116, já raramente imputado aos revoltos que eram condenados pelas rebeliões contra os excessos na tributação, sendo que o Código chegou a prever um tipo penal específico para estas situações, sancionando o ajuntamento ilícito contra o pagamento de taxa, imposto ou contribuição com multa pecuniária de quarenta a quatrocentos mil réis117. Outra novidade importante em favor dos contribuintes foi a previsão de graves sanções ao empregado público que exigisse dolosamente tributo indevido ou a maior do contribuinte, que se valesse de meios vexatórios na cobrança do débito tributário ou que exigisse algum prêmio ou vantagem no ato de cobrança118. As sanções variavam da suspensão temporária à perda do emprego, podendo também ser cumuladas com penas de prisão de até quatro anos e com multas pecuniárias. Tais sanções também eram estendidas aos particulares encarregados de arrendamentos de tributos.

E, se é possível afirmar que houve uma gradual limitação do direito tributário sancionador penal no período, também se pode dizer que, de outro lado, houve um paulatino desenvolvimento do direito tributário sancionador administrativo. Esse era veiculado por meio de leis esparsas, principalmente naquelas voltadas à fixação de despesas e do orçamento anual do Império, onde o conteúdo normativo tributário era corriqueiramente inserido119, bem como por meio dos regulamentos administrativos, editados para adentrar nas minúcias da tributação e discorrer onde, quanto e como os tributos deveriam ser pagos.

Não havia sistematização dessas sanções tributárias administrativas, quando analisado seu conjunto, pelo cotejo das leis ou dos regulamentos. Ao contrário. Elas reproduziam a desordem do sistema tributário então vigente no país, que padecia de

115 As sanções constavam, respectivamente, do art. 177 e do art. 167, do Código Penal do Império. 116 Sua aplicação limitava-se aos crimes de homicídio, latrocínio e de insurreição de escravos. 117 O tipo penal era objeto do art. 287 do Código Penal do Império.

118 O detalhamento das condutas constava dos artigos 135 e 136 do Código Penal do Império, de 1831. 119 Este é o caso, por exemplo, dos artigos 13º, § 4º, 14º, §s 1º e 3º e 27, da Lei do Império de n.º 317, de 21 de outubro de 1843, que cuidava das despesas e do orçamento para os exercícios de 1843 a 1845. Os artigos previam, respectivamente, sanção de multa pecuniária para a negociação, pagamento ou aceite de título de crédito sem selo tributário, sanção de multa pecuniária para o pagamento de selo tributário de valor menor que o devido, sanção de perda do emprego ou do ofício pelo escrivão ou oficial que praticasse um ato sem o prévio pagamento do selo tributário e sanção de multa pecuniária pelo contrabando do pau-brasil.

43 uma precisa divisão de competências e que sofria com a bitributação e com a cobrança de um mesmo imposto sob inúmeros títulos.

Em meio a outra desordem, provocada pela abdicação de Dom Pedro I ao trono do Brasil e pela ebulição de revoltas populares, como a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada e a Revolução Farroupilha, as Regências, que governaram o Brasil até que Dom Pedro II assumisse o trono, tentaram organizar o sistema tributário nacional. A reforma começou pela regulação do processo de execução das dívidas em favor da fazenda pública. Avançou para a extinção do Conselho da Fazenda e do Tesouro Nacional, para a criação do Tribunal Nacional do Tesouro, para dirigir e fiscalizar receitas e despesas, e para a substituição do antigo Foral da Alfândega de Lisboa, de 1537, pelo Regulamento das Alfândegas do Império. E culminou com a embrionária descentralização tributária, gradualmente repartindo receitas e competências entre Governo Geral e Províncias, unificando impostos de mesmo escopo e suprimindo tributos excessivos120.

O panorama prosseguiu pelo Segundo Reinado, sem, todavia, ocorrer uma sistematização do direito tributário sancionador administrativo. Como avanço que merece destaque nesta fase, houve apenas a vedação de se cominar nos regulamentos sanções não antes previstas em lei, por disposição do art. 31, da Lei n.º 1.507, de 26 de maio de 1867, que cuidava das despesas e do orçamento para os exercícios de 1867 a 1869. Praticamente inexistiam leis específicas a tratar da matéria tributária.

II.2.2 – O direito tributário sancionador do início da República até o advento do Código