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O Discurso, as Formações Discursivas e o Interdiscurso

CAPÍTULO I – SOBRE A ANÁLISE DE DISCURSO

1.1 O Discurso, as Formações Discursivas e o Interdiscurso

Pêcheux (1988) mostra que todas as práticas discursivas estão inscritas em um complexo contraditório, desigual e determinado pelas formações discursivas. Elas caracterizam as instâncias ideológicas em cada condição histórica. As formações discursivas estabelecem entre si relações de determinações dissimétricas por meio dos efeitos de pré-construídos, com efeitos transversos, ou com a articulação. Nesse sentido, as formações discursivas são o lugar do trabalho de reconfiguração, do recobrimento, reprodução, reinscrição ou um trabalho politicamente ou cientificamente produtivo.

Sobre o discurso na forma sujeito, Pêcheux (1988) destaca que não existem práticas sem o sujeito, e que também não há prática discursiva sem sujeito, pois os indivíduos-agentes agem na forma de sujeitos enquanto sujeitos. As práticas discursivas conduzem ao efeito do complexo das formações discursivas na forma-sujeito. Porém, as práticas discursivas não correspondem às práticas de sujeitos constituídas por atos, ações e atividades de um sujeito, mas sim, constata- se que todo sujeito é constitutivamente autor e responsável por seus atos, por suas condutas e palavras nas práticas em que se inscreve. Isso ocorre pela determinação do complexo das formações ideológicas e das formações discursivas, pois o sujeito é interpelado em sujeito- responsável. Tais concepções mostram que:

os indivíduos são interpelados em sujeitos falantes (em sujeitos do seu discurso) por formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes. Especificamos também que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina. (PÊCHEUX, 1988, p. 214)

Essa interpelação supõe um desdobramento constitutivo do sujeito de discurso, e a forma que representa o locutor é o sujeito da enunciação, e é atribuído a esse sujeito a tomada de posição com total conhecimento de causa, responsabilidade e liberdade. Também há o sujeito universal e o sujeito da ciência. Esses desdobramentos correspondem à relação entre o pré- construído que corresponde à interpelação ideológica que fornece e, ao mesmo tempo, impõe a realidade e seu sentido sob a forma da universalidade, ou seja, ao mundo das coisas. Já a articulação ou efeito-transverso constitui o sujeito em sua relação com o sentido, que representa no interdiscurso o que determina a dominação da forma-sujeito.

De acordo com Pêcheux (1988), a produção dos conhecimentos e a prática do proletariado na forma-sujeito em relação de desdobramento entre sujeito da enunciação e sujeito universal está alicerçada em duas modalidades. A primeira delas corresponde a uma superposição, ao recobrimento entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, a tomada de posição do sujeito é a responsável pelo seu assujeitamento sob a forma do livre consentido, cuja superposição caracteriza o discurso do bom sujeito, reflete espontaneamente o sujeito, “o interdiscurso determina a formação discursiva com a qual o sujeito , em seu curso, se identifica sendo que o sujeito sofre cegamente essa determinação, isto é, ele realiza seus efeitos em plena liberdade.” (PÊCHEUX, 1988, p. 215). A segunda modalidade representa o discurso do mau sujeito, o discurso no qual o sujeito da enunciação se volta contra o sujeito universal com uma tomada de posição que consiste em uma separação, num distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta em relação ao que o sujeito universal possibilita-lhe pensar, que é a luta contra a evidência ideológica que é atravessada pela negação.

Essa reversão apresenta traços linguísticos que mostram que o mau sujeito se contra- identifica com a formação discursiva que lhe foi imposta pelo interdiscurso por determinação exterior da sua interioridade subjetiva, uma vez que produz as formas filosóficas e políticas do discurso-contra, ou contradiscurso, que é o ponto culminante do humanismo em relação às suas formas teóricas e políticas, reformistas e esquerdistas.

O caráter histórico e novo da prática ideológica do proletariado age, de forma explícita, sobre a forma-sujeito e mostra que há uma terceira modalidade subjetiva e discursiva que faz parte do efeito das ciências e da prática política do proletariado sobre a forma-sujeito, que por

sua vez, é a desidentificação, uma posição não-subjetiva que é correlata ao pressuposto de que os conceitos científicos não apresentam somente um sentido que pode ser apreensível numa formação discursiva, acarretando a tais conceitos nenhuma representação que lhes corresponda.

Pêcheux (1988) mostra que sobre o funcionamento da terceira modalidade, ocorre uma transformação ou deslocamento da forma-sujeito e não a sua simples anulação. Deste modo, a ideologia é tomada como interpretação dos indivíduos em sujeitos e funciona contra si própria, pois por meio do desarranjo e do rearranjo do complexo das formações ideológicas e das formações discursivas desse complexo, pois

A apropriação subjetiva dos conhecimentos (especificamente, o funcionamento dos processos discursivos científico-pedagógicos), de um lado, e a apropriação subjetiva da política do proletariado (especificamente, o funcionamento dos processos discursivos políticos do proletariado), de outro. (PÊCHEUX, 1988, p. 218).

Ao tratar sobre a apropriação subjetiva dos conhecimentos, Pêcheux (1988) mostra que a finalidade desse movimento é lutar contra o mito duma pedagogia pura no sentido da exposição e da transmissão de conhecimentos, e também contra a ideia de reconstrução de conhecimentos na atividade do sujeito. O filósofo destaca que atividade e prática constituem duas instâncias diferentes, pois a prática não é a prática de um sujeito: “não há, para sermos exatos, prática de um sujeito, há apenas os sujeitos de diferentes práticas.” (PÊCHEUX, 1988, p. 218). Nesse sentido, nos dois casos são confundidas a prática de produção dos conhecimentos e a prática de transmissão e de reprodução desses conhecimentos, evitando-se a não-existência de qualquer começo pedagógico, como a entrada da criança na escola, por exemplo. Esse efeito pedagógico está apoiado sobre o sentido pré-existente, sentido que é produzido em formações discursivas que remetem ao “sempre-já aí” e que lhe servem de matéria-prima.

Segundo Pêcheux (1988), as formas burguesas da política na prática pedagógica podem ser reconduzidas de duas formas polares que se combinam de modo alternado, por um lado é o realismo metafísico, que faz passar por objeto de conhecimentos efeitos ideológicos, por outro lado, há o empirismo lógico que apresenta o objeto de conhecimento como algo cômodo, uma convenção arbitrária. Assim, nesses dois casos, a transmissão e a reprodução dos conhecimentos é identificada como uma inculcação. Essas duas formas de prática burguesa da política na pedagogia, possibilita caracterizar o efeito da política do proletariado no domínio da demarcação entre os conhecimentos científicos e os processos de inculcação ideológica que é historicamente determinado pelo desenvolvimento dos conhecimentos nos diferentes campos de pesquisa, ou seja, pelo estado da luta teórica e da luta ideológica de classes.

Ao tratarmos sobre a inculcação postulada por Pêcheux, constatamos que todo o processo de escolarização é fundamentado nesse conceito, pois é por meio do viés ideológico que a estrutura dominante impõe à sociedade, no caso, à escola, o que deve ser seguido, ensinado e aprendido. Em relação à escolarização oferecida pela EJA, há fortes marcas que remetem, por exemplo, a um ensino que deve ser realizado em um tempo inferior daquele oferecido pela Educação Básica nos anos escolares regulares e, que, talvez, pela redução de tempo que concerne à EJA, poderá não sanar as necessidades das diferentes aprendizagens que marcam e constituem os diferentes educandos reunidos em uma mesma sala de aula.

A relação discrepante entre os conhecimentos científicos e a ignorância toma “diferentes formas, conforme a natureza do aparelho escolar em que essa relação se realiza, e, em última instância, em função do modo de produção que domina a formação social considerada”. (PÊCHEUX, 1988, p. 220).

Ao tratar sobre o funcionamento dos elementos linguísticos de um enunciado, Pêcheux (1988) mostra que esse funcionamento depende das formações discursivas no interior das quais esses elementos tomam um sentido, pois são as formações discursivas que se inscrevem na subjetividade e determinam o sentido que o enunciado tomará em conformidade com o necessário ou contingente, disjunto ou integrados objetos e propriedades que nele se manifestam.

O filósofo destaca que o efeito de desidentificação que está presente na apropriação subjetiva dos conhecimentos se realiza de maneira diferente no que concerne à natureza das formações discursivas que servem como base para esse efeito. Esse movimento mostra que:

estamos diante de uma das causas da ‘desigualdade frente à escola’, desigualdade que não é, e absoluto, uma fatalidade biopsicológica, nem mesmo um fenômeno sociológico: ela traduz, na verdade, o efeito da luta ideológica das classes sobre o terreno da apropriação social dos conhecimentos, em seu vínculo com a apropriação subjetiva desses conhecimentos. Essa luta se traduz, no ensino, pela luta sobre o ‘modo de apresentação de uma questão’, a ‘ordem das questões’, etc., em função dos efeitos ideológico-discursivos que esta ou aquela apresentação supõe e reativa. (PÊCHEUX, 1988, p. 223).

Tais concepções mostram que o aparelho escolar contribui para a apropriação dos conhecimentos científicos corresponde às evidências ideológicas de diversas naturezas, e que a incompreensão ou a resistência dos sujeitos daqueles que consideram a escolarização como uma intrusão, um momento desagradável pelo qual a grande massa dos explorados no modo de

produção capitalista têm de passar, remete à evidência da separação objetiva do trabalho manual e do trabalho intelectual nesse modo de produção.

É conforme tal movimento que se desdobram as análises que desenvolvemos no Capítulo IV, pois há o distanciamento entre a real necessidade de escolarização do público jovem e adulto e a oferta desse ensino pelo poder público, uma vez que a Campanha Publicitária de 2016 mostra uma sala de aula da EJA com um pequeno número de alunos e uma carteira vazia no fundo da imagem.

Figura 1 - Captura de tela: Campanha Publicitária - Educação de Jovens e Adultos

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=srIUUb4M7io

Pêcheux (1988) salienta que não há apropriação subjetiva da política burguesa, pois a sua ideologia dominante e subjacente constitui o funcionamento ideológico espontâneo que é mais antigo do que a própria burguesia. Assim, a penetração da ideologia burguesa em meio às massas proletárias se dá por meio de uma prática ideológica de classe, por uma inculcação que se baseia, sobretudo, na exploração, por parte da burguesia e do imperialismo, por meio da ignorância, que por sua vez, era universalmente expandida. Os aparelhos ideológicos burgueses funcionam do mesmo modo que a Psicologia, em razão da sua estrutura de representação e por meio de três lugares elementares: o auditório, que são os espectadores, os assistentes, os participantes; a cena, que corresponde ao centro de demonstração do sábio, do mágico, do palhaço, representado pelo altar, pela mesa de demonstração, pelo quadro-negro; os bastidores, cuja representação se dá pela sacristia e pelo vestiário, por exemplo.

As relações estabelecidas por meio desses três lugares permitem a realização dos efeitos ideológico, de identificação-interpelação dos sujeitos, da responsabilidade e da distribuição de sentido. Esse dispositivo é capaz de produzir e de reproduzir a separação entre as intenções, finalidades e estratégias escondidas, de modo que a aparência é encenada sob a forma de profundidade psicológica dos personagens. Deste modo, Pêcheux (1988) mostra que a luta do proletariado no interior dos aparelhos ideológicos de Estado é, de modo simultâneo, contra sua estrutura e seu funcionamento, na medida em que a apropriação subjetiva da política do proletariado supõe a desidentificação, que por sua vez, se liga a uma transformação subjetiva da imputação, da representação e do sentido.

E é nessa esteira que se situa o ponto central da prática política e ideológica do proletariado, pois não está no exterior da ideologia, isso implica no fato de que a ideologia do proletariado, que deforma, mas não mistifica, é constantemente ameaçada em si mesma por meio do trabalho que realiza sobre a forma-sujeito, por meio das mistificações burguesas que são comuns ao funcionamento dos aparelhos ideológicos de Estado.