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CAPÍTULO IV OS DISCURSOS DO MEC SOBRE A EJA: ENTRE A

4.1 A não escolarização e a EJA

4.1.1 SEQUÊNCIA DISCURSIVA 1 Sobre o público da EJA

Os discursos que constituem essa sequência discursiva caracterizam o público que é atendido pela EJA, e também as especificidades em relação à transposição dos conteúdos das orientações curriculares para os currículos oficiais desenvolvidos nas escolas.

SEQUÊNCIA DISCURSIVA 1

No Brasil, há mais de 35 milhões de pessoas maiores de catorze anos que não completaram quatro anos de escolaridade. Esse grande contingente constitui o público potencial dos programas de educação de jovens e adultos correspondentes ao primeiro segmento do ensino fundamental. Além dos 20 milhões identificados como analfabetos pelo Censo de 1991, estão incluídas nesse contingente, pessoas que dominam tão precariamente a leitura e a escrita que ficam impedidas de utilizar eficazmente essas habilidades para continuar aprendendo, para acessar informações essenciais a uma inserção eficiente e autônoma em muitas das dimensões que caracterizam as sociedades contemporâneas. (BRASIL, 2001, p. 35).

Figura 24 – Captura de tela: Campanha Publicitária - Educação de Jovens e Adultos

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=srIUUb4M7io

Nessa sequência discursiva (1), o fragmento textual da Proposta é constituído pela realidade brasileira em relação ao cenário do“público potencial” dos programas educacionais da EJA. O Governo, enquanto enunciador, reconhece essa problemática social e demarca a gravidade da situação educacional do país por meio das expressões “35 milhões de pessoas maiores de catorze anos” e “grande contingente”. Há, nesse sentido, o emprego do discurso matemático representado pela quantidade numérica “35 milhões” e o emprego do advérbio “grande” para acentuar a proporção numérica estabelecida pelo numeral e salientar a preocupação do enunciador com a gravidade e com a dimensão social ocasionada por essa realidade que representa algo amplo e constituinte da sociedade brasileira.

Trata-se de um número bastante elevado de sujeitos que possuem baixa ou nenhuma escolaridade ao compararmos esses dados com o número de habitantes do país, conforme o censo de 2010, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que é de 190.732.694 pessoas.

Os dados apresentados pela Proposta e que são referentes à baixa escolaridade e que se atualizam por meio de pesquisas do IBGE, remetem a uma memória histórica, pois remete a uma realidade que tem se tornado recorrente na conjuntura brasileira, representando, não somente uma época, mas sim, uma série de épocas.

A partir da análise das formas de inscrição da historicidade (de uma formação social em uma dada conjuntura) na linguagem, torna-se possível entrever os processos discursivos que atuam na perpetuação e cristalização de determinados sentidos em detrimento de outros, ou seja, processos discursivos que tecem e homogeneízam a memória de uma época. (MARIANI, 1993, p.41).

Ainda nesse fragmento textual, o enunciador volta a empregar o discurso matemático por meio do numeral “20 milhões” para representar a sua perplexidade em relação à situação

social brasileira no que tange à leitura e à escrita, pois o número empregado salienta que muitos sujeitos, apesar de conhecerem o sistema de leitura e de escrita, não conseguem utilizá-lo em atividades diárias, tampouco para o prosseguimento dos estudos. Ou seja, trata-se de uma inoperância do sistema de ensino cuja função básica de ensinar o sistema de leitura e de escrita da linguagem acaba sendo lacunar, o que acarreta o futuro insucesso escolar de muitos sujeitos que constituem o “público potencial” da EJA.

A problemática instaurada pela baixa escolarização acaba sendo caracterizada como algo a se perder de vista, pois no fragmento em análise dessa sequência discursiva, há o emprego da expressão “muitas das dimensões que caracterizam as sociedades contemporâneas” para representar a impossibilidade do acesso à progressão de possibilidade de novas aprendizagens que só podem ser concretizadas por meio do conhecimento e do uso proficiente do sistema de escrita.

Assim, há a manifestação do não dizer, pois é inerente à contemporaneidade a necessidade de construção de novos saberes que, frequentemente, só podem ocorrer por meio do conhecimento do sistema de leitura e de escrita, assim como a apropriação de informações básicas que são comunicadas aos cidadãos por meio da escrita. Nesse sentido, o não dizer rompe com o estável e mostra as consequências negativas do desconhecimento do sistema de escrita e de leitura, pois aquilo que é escrito e não decodificado, consequentemente, colocará em suspenso a interpretação, a produção de novos sentidos e de novos saberes, pois:

A língua fluida é a que pode ser observada e reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, através da história da constituição de formas e sentidos, tomando os textos como unidades (significativas) de análise, no contexto de sua produção.

Se a língua imaginária é a que os analistas fixam na sua sistematização, a língua fluida é que não pode ser contida no arcabouço dos sistemas e fórmulas. É essa língua que estamos colocando como ponto de referência para pensar a questão do empréstimo [...]. Língua na qual convivem processos muito diferentes e cuja história é feita de fartura e movimento. (ORLANDI; SOUZA, 1988, p. 34).

A língua fluida é referência para vincularmos às noções de certo e de errado, que por sua vez, são constituintes do espaço escolar, pois há a supremacia do que é estabelecido como certo em detrimento do que é considerado como errado. Entretanto, apesar de ser recorrente esse posicionamento tanto no espaço escolar, quanto no espaço educacional, a língua é constituída por diferentes processos que representam movimentos constitutivos e significativos à própria língua.

Britto (2008) afirma que o ensino centrado em determinada teoria gramatical, a sua respectiva metalinguagem e a valorização de uma modalidade linguística no ensino determinaram à escola o abandono do texto, que é fundamental no exercício da língua. A reinserção do texto na sala de aula faz com que a língua seja pensada em suas condições efetivas de uso. Deste modo, o ensino de gramática está relacionado ao fato de se pensar a língua em conformidade com a forma como ela é exercitada e avaliada em sociedade. Conforme a perspectiva do certo em detrimento do errado, Britto entende que ocorre um processo onde há certo apagamento da língua, pois há a centralidade no normativismo. Sabemos que na perspectiva da AD, junto com Possenti (2011), há uma ruptura da AD com a Pragmática.

Sobre a ruptura, Possenti mostra que a AD não trabalha sob a perspectiva do

acréscimo de uma pitada histórica, cultural, ideológica, psicológica ou psicanalítica ao que diz a linguística, em seus diversos compartimentos. Não é simplesmente a fonoestilística, a conotação, a sintaxe voltada para o falante, a semântica a que se acrescenta o tempo do contexto, ou o texto como efeito de um processo. (POSSENTI, 2011, p. 357).

Assim, a AD trabalhará cada tema sob a perspectiva do rompimento com o que a linguística faz com cada um deles, baseando-se em transformações.

Nesse sentido, há o distanciamento entre o enunciador, representado pelas Propostas Curriculares e o público-alvo, os alunos da EJA, pois é sabido pelo próprio poder público que, na maioria das vezes, a passagem pela escola foi fracassada, cabendo, agora, a criação e o desenvolvimento de políticas públicas educacionais, mais precisamente, de um sistema de ensino regular que atenda tanto às expectativas quanto às necessidades do público jovem e adulto que retorna à escola.

Ao instaurar o distanciamento entre as Propostas e os alunos da EJA, faz-se necessário que o poder público realize certo deslocamento em relação às orientações das Propostas, para que estas sejam, efetivamente, alicerçadas nas práticas escolares, especificamente, na sala de aula. Ou seja, essa perspectiva refere-se à transposição, ao modo como o professor recebe essa orientação curricular. Em conformidade com tal movimento, Rojo, ao tratar da importância do

deslocamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para a sala de aula, sugere a “transposição dos PCN às práticas de sala de aula” (2006, p. 28), com o intuito de ouvir e fazer ouvir os verdadeiros atores do processo educativo, professores e alunos. É em conformidade com esse movimento que Rojo (2006) destaca que tais Documentos devem estabelecer um diálogo com as experiências educativas já existentes neste nível.

A transposição dos Referenciais à prática está relacionada à importância de se ouvir os verdadeiros envolvidos no processo de ensino e de aprendizagem, ou seja, professores e alunos, pois esses sujeitos podem explicitar quais práticas pedagógicas pode ser consideradas como exitosas ou não exitosas. Assim, o fato de serem atuantes no processo de ensino e de aprendizagem, poderá contribuir, de modo positivo, com o poder público no que tange à posterior elaboração ou reelaboração de conteúdos, procedimentos metodológicos e avaliativos coerentes com a realidade escolar e com as peculiaridades vivenciadas pela EJA, e que constituirão o discurso dos Referenciais Curriculares.

Ao verificarmos o recorte de imagem do filme acerca da Campanha Publicitária, há a atualização discursiva do que é proclamado no interior das Propostas Curriculares em relação ao público jovem e adulto que não pôde frequentar a escola devido à necessidade de trabalhar, pois a Campanha Publicitária se inscreve em uma conjuntura onde a imagem acaba por operacionar a memória social da cultura brasileira, uma vez que:

com efeito, se a imagem define posições de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos, isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade – um acordo (grifos do autor) – de olhares: tudo se passa então como se a imagem colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. [...] a reconstrução de um acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da comunidade e de noções que lhes são comuns; assim, a imagem por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a capacidade de conferir ao quadro da história a força da lembrança. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva e social. (DAVALLON, 2007, p.31).

Ao demarcar na Campanha Publicitária a imagem das mãos de um garoto cujas unhas estão sujas de terra devido à necessidade de trabalhar e auxiliar o seu pai que é pedreiro, ocorre a forte presença da memória social, que por ser tão frequente e incisiva no Brasil, acaba sendo fortemente representada pelo discurso oficial presente nas Propostas e na Campanha Publicitária.

Este fato também remete à memória histórica, pois a sequência de fatos demarcados na Campanha Publicitária, representam uma realidade não muito distante dos dias atuais, pois na conjuntura brasileira, sempre foi comum o trabalho de crianças e de adolescentes, principalmente, os filhos mais velhos que ajudavam os seus pais no trabalho e no sustento de toda a família, inclusive, dos irmãos mais novos. Dessa forma,

o papel da memória histórica seria, então, o de fixar um sentido sobre os demais (também possíveis) em uma dada conjuntura. Ou ainda, vista deste ângulo, à memória estaria reservado o espaço da organização, da linearidade entre passado, presente e futuro, isto é, a manutenção de uma coerência interna da diacronia de uma formação social. (MARIANI, 1993, p.41).

Na Campanha publicitária, há o rompimento com a memória histórica, quando o homem conclui os seus estudos e muda de profissão, deixando de ser operário, passando a ter um cargo melhor na construção civil.

Assim, quando o garoto passa os dedos sobre o título da obra cuja escrita está materializada com letras douradas em uma capa de livro com a cor verde, cujo título é Grandes contos brasileiros, há, não somente, a representação de que o garoto sente as consequências negativas de não frequentar a escola e, por conseguinte, não saber ler os contos brasileiros que constituem essa obra literária, mas também, a atualização da memória brasileira acerca das crianças e jovens que não frequentaram a escola na idade certa, cujas representações estão presentes e atualizadas na memória dos cidadãos brasileiros por meio de imagens, mas que, por sua vez, também constituem um “conto brasileiro”.

É esse mesmo conto que ultrapassa as representações de imagens sociais, se atualiza na publicidade do MEC e, por fim, acaba sendo escrito e inscrito no espaço destinado à ficção, mas que ao ser lido e interpretado, remete às consequências negativas que marcam, estigmatizam e excluem os sujeitos que não puderam frequentar a escola na idade apropriada.

No que concerne à representação da realidade educacional brasileira por meio do título da obra Grandes contos brasileiros, há a abertura para a construção de sentidos que se atualizam em relação às problemáticas educacionais brasileiras ainda não superadas, especialmente, com o público jovem e adulto. A desestabilização do termo “contos” remete aos sentidos que extrapolam a letra ali expressa, escrita. É o que Authier-Revuz (2014) mostra com a ideia de “falta de captura do objeto pela letra”, a “falha em nomear” (2014, p. 261). A representação pretendida pelos enunciadores ao elaborarem a campanha publicitária acaba por esvair-se e proporcionar a ultrapassagem do limite representado pela leitura dos “grandes contos brasileiros”, pois há o infinito, o singular e a continuidade de sentidos. Deste modo, há a

atualização do termo “contos” que passa a designar a realidade educacional e que marca o país: o analfabetismo e a baixa escolaridade. E é assim a construção dos sentidos:

da não coincidência fundamental entre as duas ordens heterogêneas que a nomeação sobrepõe - ao que concerne ao geral, ao finito, ao discreto dos signos, e a que concerne ao singular, ao infinito, ao contínuo das ‘coisas’ -, do que se chamou a ‘falta de captura do objeto pela letra’, surge, no próprio princípio da nomeação, a dimensão de uma perda, de uma ‘falha em nomear’. E é dessa falha em nomear – que, para o sujeito falante é particularmente falha

para se nomear, falha para dizer a verdade que ‘não se diz toda porque as palavras faltam’ (grifos da autora) – que estruturalmente se constitui o sujeito,

em um irredutível desvio de si mesmo, sujeito, pelo fato de que é falante e, por consequência do que ele é, falho. (AUTHIER-REVUZ, 2014, p. 261).

É por meio do que é falho que há a atualização dos “grandes contos brasileiros”, há a manifestação da possibilidade do vocábulo “contos” não representar somente a ficção, mas também, a realidade social do país. O sentido construído por meio da imagem se dá pela noção de formação discursiva, pois o sentido não está explícito nas palavras impressas na capa do livro que constitui uma significativa parte da imagem, muito menos na falsa objetividade de que o garoto não pode ler o livro que se encontra em suas mãos. Deste modo, “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito.” (ORLANDI, 2007a, p. 43).

Ainda em relação ao vocábulo “brasileiros”, é relevante considerarmos as análises de Dias em relação ao vocábulo “brasileiro”, pois há uma modalização,

a palavra ‘brasileiro’ só pode ser pensada em relação à modalização, que imprime uma relação tensa entre a generalização (brasileiro = aquele que nasce no Brasil) e a limitação (brasileiro = aquele que satisfaz a um critério de verdade, de realidade). (DIAS, 1993, p. 87).

No caso de nossa sequência discursiva, trata-se de uma relevante indicação na capa do livro de contos, pois revela a opacidade dos contos que se relacionam à realidade, ou seja, uma tensão entre o garoto e os contos que é representada pelo fato do menino não saber ler. A inscrição “brasileiros” representa, justamente, os sujeitos que pertencem ao “critério de verdade, de realidade”, são os brasileiros estigmatizados, privados do ato de ler, privados da educação libertadora. É como se os contos ignorassem o garoto, um leitor em potencial.

Conforme tais postulados, há a desestabilização do sentido representado pela imagem e que é construído por meio da estabilização de sentidos no imaginário dos sujeitos. O que ocorre

é o rompimento com o estável, pois os baixos níveis de escolaridade ainda existentes no Brasil e que, por sua vez, atravessam a realidade de crianças e, consequentemente, de jovens e de adultos, constitui a representação dos “grandes contos brasileiros”. Assim, a ruptura com o estável denega o sentido único estabelecido pela ficção literária e posteriores publicações de obras literárias ficcionais que muitas vezes estão publicadas e não podem ser lidas, mas passa a constituir uma realidade que perpassa a ficção e que a atualiza, ou seja, é o diálogo entre o ficcional e o real que passa a constituir os “grandes contos brasileiros” e inscreve a imagem na formação discursiva da exclusão.