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O Discurso Psicológico: instituindo a média, o potencial e o ritmo

PARTE III – A ANÁLISE DA PRODUÇÃO CULTURAL DA DEFICIÊNCIA

CAPÍTULO 5 – A PRODUÇÃO CULTURAL DO OUTRO COM DEFICIÊNCIA NAS

5.2 Análise das coexistências discursivas

5.2.4 O Discurso Psicológico: instituindo a média, o potencial e o ritmo

O discurso da Psicologia se revela como um dos discursos instituidores da deficiência no Portal do Professor do MEC, dessarte, encontramos figurando nos enunciados uma série de expressões intimamente associadas a esse campo científico - desenvolvimento psicomotor, grau da deficiência, potencial, atraso, ritmo de aprendizagem - estabelecendo um jogo de verdade acerca do desenvolvimento e da aprendizagem desses sujeitos.

É interessante notar, nos discursos do Portal, a persistência do pensamento do psicólogo Alfred Binet, que no início do século XIX criou os testes e instrumentos para medir a idade mental e classificá-la, estabelecendo o normal ou anormal em termos de desenvolvimento mental. Essa conceituação, tão criticada pela estigmatização e cristalização da deficiência, através dos rótulos de deficiente mental leve, severo, moderado e profundo, reaparece nos discursos desse espaço formativo, produzindo uma verdadeira classificação das pessoas com deficiência pelo nível ou grau de inteligência. O roteiro de pesquisa proposto pela professora, na aula ―As deficiências múltiplas na escola‖ permite-nos vislumbrar, através da terminologia ―leve e severa‖, o enquadramento da deficiência em níveis de desenvolvimento.

Sugestão de tópicos para a pesquisa:  Surdocegueira;

 Surdez com deficiência mental leve ou severa;

 Surdez com distúrbios neurológicos, de conduta emocionais;  Surdez com deficiência física (leve ou severa);

 Baixa visão com distúrbios neurológicos, emocionais e de linguagem e conduta;

 Baixa visão com deficiência física (leve ou severa);  Cegueira com deficiência física (leve ou severa);  Cegueira com deficiência mental (leve ou severa);

 Cegueira com distúrbios emocionais, neurológicos, conduta e linguagem. (Portal do Professor - Aula – As deficiências múltiplas na escola / Espaço da Aula)

No discurso do médico, também fica visível a definição da deficiência em termos de grau de desenvolvimento, enfatizando-se a importância de diferenciar o potencial dos indivíduos em termos quantitativos.

É importante que todas as pessoas que trabalham com um indivíduo com algum grau de deficiência conheçam o potencial deste indivíduo, para que possam diferenciar dentro do mesmo tipo de deficiência indivíduos que tenham potencial maior ou menor, pois a pessoa é deficiente em uma área, mas pode ser extremamente eficiente na outra área. (Vídeo – Deficiência Mental: ameaça ou oportunidade)

Essa interpretação ou essa forma de pensar baseia-se num modelo universal de desenvolvimento em que se utiliza a medida do coeficiente de inteligência (QI) como parâmetro de classificação da deficiência. Entretanto, na definição da deficiência, a partir desses parâmetros quantitativos, estabelece-se sobre esses sujeitos um poder disciplinar da norma, que ―funciona dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade, que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais‖. (FOUCAULT, 2009, p.176)

Ocorre, desse modo, que a pessoa com deficiência passa a ser classificada como desvio de um modelo, tendo o seu nome, a sua identidade, o seu status substituídos por um conjunto de graus de normalidade. No entanto, essa visão quantitativa da deficiência ou da divisão segundo os graus de normalidade tem um duplo papel, a saber: ―marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar‖ (FOUCAULT, 2009, p.174).

O fato de não encaixar-se num padrão ou numa medida, é determinante para se instaurar sobre a pessoa com deficiência toda uma penalidade da norma ou uma sansão normalizadora. Os discursos abaixo revelam a atuação desse poder normalizador sobre os sujeitos com deficiência, indicando que a repetência tem sido

uma das formas utilizadas para penalizar os alunos que não se encaixam num padrão determinado pela escola regular.

Eu queria fazer uma pergunta professora, os alunos que têm necessidades especiais, até onde eles vão dentro da escolaridade, chegam ao ensino médio? A maioria não chega ao ensino médio. Os jovens com necessidades especiais muitas vezes são retidos nas primeiras séries porque não conseguem atingir o conteúdo curricular que é esperado. Então eles vão sendo retidos. (...) os que conseguem acessar são os alunos que têm deficiência visual ou deficiência física que conseguem mais sucesso. (Vídeo – Inclusão Social)

Há casos de deficiência física que atrasa o desenvolvimento psicomotor da criança, são os casos de paralisia cerebral e outros problemas de origem neurológica, com dificuldades para realizar determinados movimentos necessários ao aprendizado, a criança acaba tendo de repetir algumas vezes o período escolar. (Vídeo – Bem Além dos limites)

Desse modo, o discurso dos professores - fundamentados numa noção psicologizada - acaba posicionando os sujeitos com deficiência na condição de seres que têm um desenvolvimento atrasado em relação ao padrão de normalidade ou em relação à média, e que, portanto, merecem a devida punição por não se ajustar ao modelo. Mas, ao mesmo tempo em que o discurso psicológico estabelece um exercício de classificação e nomeação das capacidades dos sujeitos com deficiência, ele propicia também um olhar sobre a deficiência a partir daquilo que está faltando ou da incompletude desses sujeitos.

Examinando a formulação dos professores sobre a deficiência, é possível observar a grande ênfase que se dá à falta, à carência ou à insuficiência desses sujeitos, sendo assim, o que vemos é um discurso povoado pela palavra ―limitação‖.

Conhecendo as limitações humanas

A professora conversará com os alunos sobre as pessoas cegas e suas limitações. Eles observarão na gravura do cérebro a região onde se realiza a visão (Espaço da Aula – Aula: Diferentes leituras para pessoas com necessidades especiais: Braille, Libras e leitura labial)

Continuando a aula, a atividade a ser desenvolvida neste momento, tem como objetivo favorecer a reflexão do aluno sobre a inclusão social das pessoas com deficiência física, de forma que eles possam compreender que estas pessoas, apesar das limitações que a condição física impõe, elas podem desempenhar diversas

atividades (trabalhar, estudar, namorar etc.) como qualquer outra pessoa! (Espaço da Aula – Aula: A deficiência Física na Escola)

O vídeo relata que a pessoa com deficiência pode ter relações sexuais de acordo com suas limitações, o que vocês acham? ( Espaço da Aula – Aula ―A pessoa com deficiência pode ter relações sexuais?)

Vocês acham que as pessoas com deficiência, apesar de sua limitação em função da deficiência, podem trabalhar? Por quê? (Espaço da Aula – Deficiência e Mercado de trabalho)

O recurso pedagógico utilizado na aula ―As deficiências Múltiplas na escola‖, também são suficientemente representativos desse discurso que posiciona a pessoa com deficiência a partir da falta e da incompletude, evidenciando que aquilo que é proposto como uma abordagem pedagógica criativa acaba por reforçar essa representação. Outrossim, chama atenção nos excertos da música a recorrência da expressão ―não posso‖, ilustrando as capacidades e incapacidades desses sujeitos.

FIGURA 8 – Música ―Nada Impede que eu seja feliz‖ veiculada na aula ―As deficiências Múltiplas na Escola‖

A reiteração desse tipo de discurso, que enfatiza a falta ou a incompletude do sujeito com deficiência, a partir dos inúmeros ―não posso‖, reflete a atuação de um poder disciplinar que opera marcando os desvios e as anormalidades, assinalando a

falta, efetuando o que Foucault (2009) chamou de troca do eixo político da individualização, em que

a individualização, ao contrário, é ―descendente‖ à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados; e por fiscalizações mais que por cerimônias, por observações mais que por relatos comemorativos, por medidas comparativas que têm a ―norma‖ como referência (...); por ―desvios‖ mais que por proezas. (p.184).

Nesse caso, concordamos com Skliar (2006), quando diz que essas representações são obsessivas com aquilo que é pensado e produzido como ―anormal‖, vigiando cada um dos desvios, descrevendo cada detalhe do patológico, cada vestígio da normalidade, suspeitando de toda deficiência e afirmando que algo está errado, que há alguma coisa equivocada no sujeito, e que possuir uma deficiência é um problema.

Dessa forma, é interessante observar que o discurso da psicologia, expresso através das classificações e categorizações acaba por capturar a pessoa com deficiência, subjetivando-a. No excerto a seguir, cujos enunciadores são pessoas com deficiência, é possível verificar a comparação que estes estabelecem com os padrões de normalidade ou a média.

É difícil para uma criança, que tem algum comprometimento sério nas pernas, andar na mesma época que as outras crianças, mesmo tendo sido estimulado desde cedo, o processo é lento, são muitos obstáculos que ela tem que enfrentar até dá os seus primeiros passos. (Vídeo – Escola a primeira aventura)

[...] crianças com deficiência física geralmente tem inteligência igual a média dos colegas da mesma idade. Mas a criança deficiente física precisa mais de apoio e atenção dos professores e pessoas próximas do que as outras crianças, algo criativo, que ajude as crianças a fazer os que outras fazem, de uma maneira diferente. (Portal do Professor - Vídeo – Bem Além dos limites)

Por isso, acreditamos que as classificações da deficiência, a partir de uma visão psicométrica, expressam uma concepção que desconsidera as interações sociais constituidoras dos sujeitos. Sendo assim, ao tratar apenas com características individuais, como se a deficiência estivesse localizada nas pessoas, desconsidera-se as questões culturais, sociais, linguísticas, familiares e

educacionais, tão importantes na formação dessas pessoas. Concordamos com a afirmação de Mantoan (2005), de que nessas abordagens entende-se

as deficiências como ―fixadas‖ no indivíduo, como se fossem marcas indeléveis, as quais só nos cabe aceitá-las, passivamente, pois pensa-se que nada poderá evoluir, além do previsto no quadro geral das especificações estáticas: os níveis de comprometimento, as categorias educacionais, os quocientes de inteligência, as predisposições para o trabalho e tantas outras. (p.30)

Todavia, ao mesmo tempo em que os saberes da psicologia produzem discursos que classificam e nomeiam as capacidades e incapacidades dos sujeitos com deficiência, fornecem todo um aparato conceitual que institui uma forma de inteligibilidade sobre a deficiência. Disso se pode depreender que a pessoa com deficiência pode ser vista pelos professores como um conjunto de domínios expressos em termos de capacidades observáveis, passíveis de serem medidas e quantificadas. Nesse âmbito, ―o foco do problema é colocado no aluno, no seu desempenho, consolidando o atraso cognitivo como característica individual e contribuindo para uma baixa expectativa dos professores em relação a estes alunos‖ (CARNEIRO, 2006, p.141)

Além disso, a predominância da visão psicológica da deficiência coloca esses sujeitos sempre na posição de serem olhados, observados, contados detalhadamente nos seus desvios e incapacidades. Nesse sentido, é preciso sublinhar que os princípios psicológicos, transpostos para o campo da educação, devem ser questionados, uma vez que, estes contribuem para uma inversão histórica nos processos de individualização do sujeito com deficiência. Sobre isso, Foucault (2009) salienta que:

todas as ciências, análises ou práticas com radical ―psico‖ têm seu lugar na troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável (...) (p.184).

Por isso, entendemos que estereotipar as pessoas com deficiência, a partir de graus de ―anormalidade‖, rotulando-as como incompletas e incapacitadas, reafirma a concepção normalizadora da deficiência, tendo como consequência a culpabilização

desses sujeitos pelo seu fracasso, como se eles fossem os causadoras do problema e os responsáveis solitários por seu insucesso. Segundo Mittler (2003), quando a deficiência é vista como um problema ou um defeito, e se assume que a origem das dificuldades está localizada na pessoa com deficiência, não se assume que a escola precisa mudar para acomodar ou para responder a necessidade desses sujeitos.

Assim, ao invés de formar o professor na perspectiva de manter o indivíduo com deficiência sob o controle de um saber permanente, constituindo-os como objeto descritível, quantificável, seria interessante formá-lo para pensar a deficiência como uma possibilidade e não como uma falta.

Por fim, a leitura dos enunciados sobre a deficiência, na região discursiva do Portal do Professor do MEC, revela-nos uma coexistência com diferentes campos disciplinares, a saber: com o campo da pedagogia inclusiva; com o discurso da diversidade fundamentado no multiculturalismo liberal de esquerda; com o discurso médico fundamentado numa noção biológica da deficiência e ainda com o discurso da psicologia embasado numa concepção quantitativa e normalizadora da deficiência. Para uma melhor visualização dos discursos sobre a deficiência, no referido espaço formativo, construímos um quadro-síntese, apresentado a seguir.

QUADRO 3 – Enunciados sobre a deficiência no Portal do Professor do MEC10 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO SISTEMA DE DIFERENCIAÇÃO ARTICULAÇÃO COM OUTRAS MARGENS DISCURISVAS COEXISTÊNCIAS DISCURSIVAS MATERIALIDADE DISCURSIVA Discurso sobre a deficiência no Portal do Professor do MEC Implantação de Tecnologias de Informação e Comunicação a serviço da melhoria dos processos educacionais nas escolas públicas brasileiras; Capacitação docente através das Tecnologias de Informação e Comunicação; Produção de conteúdos digitais; Fomento à produção individual e coletiva de metodologias e materiais; Educadores Especialistas da área da saúde (médicos, fonoaudiólogos) Especialistas da área psico (psicólogos e psicopedagogos) Pessoas com deficiência e familiares Secretarias do Ministério da Educação (MEC); Secretarias Estaduais e Municipais de Educação; Universidades públicas; Universidades internacionais; UNESCO; Instituições privadas e públicas (Bradesco,Vivo, Oi, Futuro, Claro, OEI, Cezar, Instituto Algar, Intel, Corel, Agência Espacial Brasileira, Embrapa) Discurso da pedagogia inclusiva; Discurso da diversidade (multiculturalismo liberal de esquerda) Discurso da Psicologia; Discurso Médico; Vídeos educativos; Jornal do professor; Aulas produzidas para o ―Espaço da Aula‖; Programas de capacitação; Fóruns de debates sobre questões educacionais; Conferências eletrônicas; Página Web; 10

Quadro baseado no de Carvalho (2004), em sua tese intitulada “Discursos pela Interculturalidade no campo curricular da Educação de Jovens e Adultos no Brasil nos anos 1990”.

Assim, como pudemos observar no quadro acima, existe uma negociação com diferentes campos do conhecimento para dizer da deficiência, evidenciando que os discursos destinados à formação docente para educação inclusiva, valem-se da contribuição de vários campos de saber – que entram em sintonia, superpõe-se, muitas vezes se chocam, outras tantas, contrapõe-se – fazendo funcionar um poder disciplinar que ―fabrica‖ o indivíduo com deficiência, tomando-os, ao mesmo tempo, como objetos e como instrumentos do seu exercício.

Nessa luta de poderes, temos como resultado diferentes formas de dizer sobre a deficiência. Essas maneiras de narrar a pessoa com deficiência dependem do lugar que se ocupa na sociedade, da teia de poder que a atravessa e da rede de saberes que a esta se vincula, fazendo aparecer diferentes representações culturais desses sujeitos.

No próximo capítulo buscaremos dar visibilidade às representações emergentes dos diferentes discursos produtores da deficiência, procurando capturar os múltiplos sentidos e significados produzidos nesse espaço cultural, acerca da deficiência.

CAPÍTULO 6 – A REPRESENTAÇÃO CULTURAL DA DEFICIÊNCIA: DESVELANDO ESTEREÓTIPOS E ESSENCIALIZAÇÕES

O discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um “outro” e ainda assim inteiramente apreensível e visível. (HOMI BHABHA, 1998)

Ao empreender esta análise, que se ocupa em apontar ou desvelar algumas das representações culturais da deficiência no espaço formativo do Portal do Professor do MEC, queremos tornar evidente que não estamos mobilizados pelo desejo de dizer se as representações são boas ou ruins, se são verdadeiras ou falsas, pois de modo análogo a Skliar (2001a, p.94), entendemos não haver ―representações corretas ou incorretas, melhores ou piores e, ainda mais, que elas podem ser limitadas a categorias de verdadeiras e falsas‖.

Dessa forma, pela perspectiva em que se inscreve esta análise, não estaremos procurando desvendar as intenções daqueles que são responsáveis pela veiculação de verdades sobre os Outros com deficiência nesse espaço formativo on-line, tampouco estamos preocupados em submeter as representações a um julgamento normatizante, mas estamos interessados, principalmente, em desnaturalizar os discursos, questionado o seu regime de verdade e a rede de poder-saber produtores de imagens e enunciados clichês, que inventam os sujeitos com deficiência.