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PARTE I – PODER E POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 3 – A DEFICIÊNCIA NAS TEIAS DO PODER-SABER

3.2 O poder disciplinar e a objetivação do Outro

Tendo em vista o exposto, faz-se necessário tecermos algumas considerações acerca do poder disciplinar, no entanto, interessa-nos particularmente, os aspectos relacionados às formas de controle e de exercício do poder que visa normalizar e normatizar os indivíduos.

Foucault (2009, p.164) apresenta aquilo que ele conceitua como ―os recursos para o bom adestramento‖, o conjunto de procedimentos sobre o sujeito que possibilitam ―adestrar para retirar e se apropriar mais e melhor‖ (idem) da capacidade do sujeito ao utilizar-se de instrumentos como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame.

Ao iniciarmos pela descrição da vigilância hierárquica, é importante pensarmos que esse dispositivo age na ordem do olhar, na ordem da visibilidade. Desse modo, o exercício do poder, nessa modalidade, funciona como ―um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzem a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam‖ (FOUCAULT, 2009, p.114).

Para controlar os sujeitos de forma a normatizar e normalizar o comportamento destes, lança-se mão de toda uma arquitetura que, pelo olhar, exerce vigilância sobre os sujeitos, docilizando-os e tornando-os produtivos à maquinaria capitalista. Assim, o exercício do poder, na ordem do olhar, age sobre o corpo dos sujeitos na instância da estrutura física das instituições para alcançar o corpo dos indivíduos pela vigilância.

Como apresentado anteriormente, o segundo aspecto relacionado à normalização é a sanção normalizadora. No âmbito dessa discussão, Foucault (2009) atesta ser a ―sanção normalizadora‖, um mecanismo disciplinar que busca

diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros, medindo em termos quantitativos e hierarquizando, em termos de valor, as capacidades, o nível dos indivíduos. Para o pesquisador, esse processo busca,

[...] traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a ―classe vergonhosa‖ da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza. (FOUCAULT, 2009, p.176).

Assim, a disciplina visa punir aquilo que se desvia do padrão, do que é concebido como regra e, dessa forma, pela punição, corrige aqueles que se desviam do sistema para reduzir esses desvios por meio do exercício, haja vista que ―os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício – aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido‖.

No processo de punição ocorre a dicotomia gratificação-sanção, em que os indivíduos são separados em dois polos distintos, conforme suas ações: o bem e o mal. Nessa dicotomia, os sujeitos são divididos e hierarquizados, em especial, segundo suas virtudes e seu comportamento; portanto, caso a avaliação seja positiva, o sujeito será recompensado; mas, se ela for negativa, ele será apenado. Como salienta Foucault (2009, p.174), ―a disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando‖.

É nesse processo disciplinar de diferenciação, hierarquização, comparação, homogeneização e exclusão que ocorre a normalização dos indivíduos, observada a constituição de um status de normalidade e de homogeneidade no qual aquilo que foge a esses parâmetros dá margem ao poder da norma que, ―dentro de uma homogeneidade, que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais‖. (FOUCAULT, 2009, p.177).

Finalmente, o último recurso elencado por Foucault para o bom adestramento diz respeito ao exame, procedimento que se constitui na combinação de técnicas de hierarquia, que vigia, e as da sanção, que normaliza. O exame, neste sentido, é um dispositivo disciplinar precedido de ritos que congregam o poder, a força e a verdade; portanto, nessa perspectiva, esse mecanismo ―é um controle normalizante,

uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir, estabelecendo sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados‖.

O exame congrega o saber e o poder, uma vez que convoca as instituições para o seu exercício. Assim, ―o exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder‖ (FOUCAULT, 2009, p. 179). Nessa perspectiva, a primeira característica do exame é que este objetiva os indivíduos por meio da invisibilidade do poder disciplinar, o que possibilita o exercício do poder nas menores relações cotidianas: ―o exame é a técnica pela qual o poder, ao invés de emitir sinais de poderio, ao invés de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação‖. (FOUCAULT, 2009, p.179)

A segunda característica do exame é tornar a existência de um indivíduo em um documento, formado com base num banco de dados composto por registros desse sujeito, os quais podem ser de ordem médica, econômica ou de outras formas que possam recorrer ao uso do poder da escrita, ―fazer de maneira que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame individual possa repercutir nos cálculos de conjunto‖ (FOUCAULT, 2009, p.182).

A terceira e última característica do exame diz respeito à individualização do sujeito como efeito de poder, efeito e objeto de saber. Assim, no exame como exercício da disciplina, os sujeitos são comparados entre si, de modo que sejam hierarquizados e classificados e passem pelas instâncias de normalização e da normatização, caso se desviem daquilo que lhe é posto como regra, como homogeneidade.

As considerações anteriores sobre o poder disciplinar, faz-nos entender que o sujeito com deficiência é produzido no interior das articulações poder-saber, sendo assim, poderíamos dizer que a disciplina, através de seus variados instrumentos, possibilita relações de poder que permitem obter e constituir saberes sobre a deficiência. Todavia, a produção de saberes sobre os referidos sujeitos está diretamente conectada à regulação de suas condutas e à instituição de práticas educacionais voltadas para eles.

Em outras palavras, poderíamos dizer que o poder disciplinar, ao mesmo tempo em que opera, colocando o indivíduo com deficiência na posição de objeto classificado, individualizado, descrito, mensurado, comparado a outros, detalhados

em sua individualidade, faz desses mesmos mecanismos um meio de controle e um método de dominação desses sujeitos.

É por essa razão que a objetivação da deficiência - nos processos formativos - preocupa-nos, pois, ao mesmo tempo em que torna possível uma forma de saber ou de conhecimentos sobre esses sujeitos, através da produção de todo um estoque de ―verdades‖ científicas sobre a deficiência, esse saber pode dar lugar a um poder que visa controlar, dominar e normalizar esses sujeitos.

Desse modo, ao empreender o registro analítico dos enunciados que conformam as práticas discursivas do Portal do Professor do MEC, tentaremos evidenciar os mecanismos dessa engrenagem pela qual ―as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder‖ (FOUCAULT, 2009, p.32).

Assim, no próximo capítulo, apresentamos as estratégias que colocamos em operação para trabalhar com os materiais empíricos e, igualmente, sobre as ferramentas teórico-metodológicas. Expomos os critérios de seleção do corpus de pesquisa e os modos de operar com eles.