• Nenhum resultado encontrado

A Questão do poder e sua relação com o saber na produção da deficiência

PARTE I – PODER E POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 3 – A DEFICIÊNCIA NAS TEIAS DO PODER-SABER

3.1 A Questão do poder e sua relação com o saber na produção da deficiência

Face às considerações anteriores a respeito das ―diferenças‖, podemos afirmar com segurança que a deficiência é uma invenção da linguagem, o que veementemente contrapõe-se à maneira idealista de pensar a deficiência. Aliás, pensamos de uma maneira idealista a respeito da deficiência, não porque nos acostumamos, mas porque fomos constituindo as nossas maneiras de concebê-las numa perspectiva moderna, pensando-a como um dado universal e atemporal, realizando-se para todos da mesma maneira, seguindo os mesmos passos, comportando problemáticas semelhantes para todos os indivíduos que a possuem.

Diante disso, o diálogo com a perspectiva teórica Foucaultiana, permite-nos uma compreensão das malhas de poder e de um corpo de saberes que acabam constituindo um significado hegemônico na compreensão desse constructo que é a deficiência. Sendo assim, na perspectiva pós-estruturalista em que se inscreve esse trabalho, devemos nos perguntar sobre onde, quando e por quem as pessoas com deficiência estão sendo inventadas nos processos formativos para Educação Inclusiva?

Nesse sentido, os estudos de Foucault, servem-nos como caixa de ferramenta para analisarmos o processo de objetivação do sujeito através dos procedimentos disciplinares, uma vez que os escritos iniciais desse autor buscam exatamente compreender os discursos em que o próprio sujeito é colocado como objeto de saber possível, compreender quais são, diz Foucault (2004, p.236), ―os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento‖.

Em relação aos processos de objetivação, Foucault (2004) esclarece que os processos de objetivação, por sua vez, dizem respeito ao modo como o sujeito pôde se tornar um objeto para o conhecimento. Todavia, para o autor, os processos de subjetivação referem-se ao modo como o próprio homem se compreende como sujeito legítimo de determinado tipo de conhecimento, ou melhor, como o sujeito percebe a si mesmo na relação sujeito-objeto. O filósofo destaca que a objetivação e subjetivação são, portanto, processos complementares que se relacionam por meio de jogos de verdade.

Por jogos de verdade o autor compreende ―não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso.‖ (FOUCAULT, 2004, p.235). Isso significa dizer que os jogos de verdade são os modos pelos quais os discursos podem ou não se tornar verdadeiros de acordo com as circunstâncias em que são ditos; a maneira pela qual um determinado tipo de objeto se relaciona com o sujeito. No caso do aparecimento das ciências humanas deparamo-nos com práticas discursivas em que o sujeito torna-se o objeto privilegiado de investigação e de discursos que podem ser verdadeiros ou falsos. Temos, deste modo, o sujeito compreendido como objeto de conhecimento e, ao mesmo tempo, sujeito detentor deste conhecimento.

Foucault (1995) ressalta que em seu trabalho lidou com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. O primeiro é a objetivação do sujeito do discurso na gramaire génerale, na filologia e na linguística; a objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha na análise das riquezas e na economia; o terceiro consiste na objetivação do sujeito nas práticas divisoras em que ―o sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros‖ (p.231), citando como exemplos o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os bons meninos4.

Mas, para tratar da objetivação do sujeito com deficiência é preciso uma análise mais aprofundada das relações de poder, uma vez que, Foucault, ao examinar a relação entre os jogos de verdade e a objetivação do sujeito nas ciências humanas, foi conduzido às relações de poder. Para o autor, as relações de poder

4

Paul Veyne (2008) esclarece que para Foucault, o método consiste em “compreender que as coisas não passam das objetivações de práticas determinadas, cujas determinações devem ser expostas à luz, já que a consciência não as concebe” (p.254)

são importantes já que na sociedade os discursos das ciências humanas funcionam não apenas como práticas discursivas, mas, sobretudo, como práticas coercitivas. Como diz Foucault (1995, p.232), é ―necessário estender as dimensões de uma definição de poder se quisermos usá-la ao estudar a objetivação do sujeito‖.

Sobre o exercício do poder, Foucault (1995), esclarece que não acontece simplesmente como uma relação entre parceiros individuais ou coletivos, mas é um modo de ação de alguns sobre outros, destacando que ―só há poder exercido por ‗uns‘ sobre os ‗outros‘.

No entanto, Foucault (1995) salienta que para o estabelecimento de uma relação de poder existem dois elementos indispensáveis, primeiro que o ―outro‖ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação, e também que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis. Nesse contexto, para Foucault o poder pode ser compreendido como,

um conjunto de ações sobre ações possíveis, ele opera sobre o campo de possibilidade, onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações. (1995, p.243).

Foucault (2009), ressalta também que o poder se exerce mais que se possui, que não é privilégio adquirido da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas, efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Segundo o filósofo, esse poder não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que não têm, mas ele os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança.

Para Foucault (2009), é importante admitir que o poder produz saber, que poder e saber estão diretamente implicados e que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo do saber. No entanto, o autor salienta que não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber útil ou arredio ao

poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.

Para Veiga-Neto (2007a), o fato de Foucault aproximar saber de poder, não significa que para o filósofo eles são a mesma coisa, mas significa, antes de tudo, que poder e saber são dois lados de um mesmo processo. O autor esclarece que,

as relações de força constituem o poder, ao passo que as relações de forma constituem o saber; mas aquele que tem o primado sobre este. O poder se dá numa relação flutuante, isso é, não se ancora numa instituição, não se apóia em nada fora de si mesmo, (...) por isso, o poder é fugaz, evanescente, singular e pontual. O saber, bem ao contrário, se estabelece e se sustenta nas matérias/conteúdos e em elementos formais que lhe são exteriores: luz e linguagem, olhar e fala. (p.130, grifos do autor)

A perspectiva de análise foucaultiana sobre poder-saber, faz-nos olhar para os processos de formação de professores para a educação inclusiva e perguntar sobre os mecanismos de poder e saber que reserva ao sujeito com deficiência o lugar de objeto no discurso. O que nos preocupa, é que, ao mesmo tempo em que os processos formativos podem ser usados para, supostamente, propor formas mais libertárias e atualizadas para ação docente junto aos alunos com deficiência, por outro lado, podem estar fabricando um sujeito com deficiência como objeto descritível, analisável, reduzido a traços biológicos específicos de sua deficiência.

É preciso considerar que o saber produzido sobre esses sujeitos tem dois efeitos complementares e que se reforçam mutuamente: Os corpos e as mentes das pessoas com deficiência ao tornarem-se objeto de um saber científico, no processo de formação de professores, passam a ter o seu desenvolvimento monitorado (descrevendo o que é normal ou o que é anormal), suas ações esquadrinhadas, descritas de forma detalhada.

Ao mesmo tempo, serve de referência para que tais processos, assim descritos, tornem-se centrais para a definição de esquemas e formas de ensino e de aprendizagem que guiarão a conduta dos professores em formação. Pois, como nos diz Paul Veyne (2008, p.249), ―os objetos parecem determinar nossa conduta, mas primeiramente, nossa prática determina esses objetos‖.

É por isso que devemos colocar em permanente crítica os estreitos laços entre o saber – que é tecido sobre os sujeitos com deficiência – nos processos formativos e o tipo de poder que esse saber quer ter sobre eles. Para isso, é preciso

interrogar as narrativas acerca da deficiência, examinando as relações de poder que conferem a esses sujeitos o lugar de ―objeto‖ no discurso.

No entanto, em nossa análise, interessa-nos especificamente os processos de objetivação do sujeito nas práticas disciplinares, uma vez que, segundo Foucault (2009, p.164) ―a disciplina ‗fabrica‘ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício‖.