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O Elemento Espacial

No documento Conceito jurídico de paisagem (páginas 101-108)

O primeiro elemento formador da paisagem e que durante muito tempo confere ao termo uma conotação desse tipo, é o elemento espacial. A paisagem surge a partir do espaço olhado, mesmo que esse olhar gere apenas uma de suas perspectivas. Tal perspectiva é produzida pela percepção embasada nas origens, formação cultural, relações sociais e usos do espaço territorial. Deve-se compreender que, além da percepção, ou mesmo para formá-la, existe uma realidade física em constante mobilidade, constituída por elementos naturais e artificiais, criados pelo ser humano, que devem ser estudados e considerados para proteção da paisagem.

A existência de elementos puramente naturais é hoje refutada, pois o ser humano já modificou toda a natureza de forma a atender suas necessidades. Mesmo locais ainda não visitados sofreram modificações, como o fundo dos oceanos, repleto de diversos tipos de lixo. Assim, as paisagens ditas “naturais” são, com efeito, quase sempre amplamente remodeladas pela exploração direta do espaço ou influência indireta de atos não direcionados a sua modificação, mas que acabam por gerá-la. Segundo Bachimon, Derioz e Laquês (2004)

Mais la forme du paysage ne saurait être regardée comme simple résultante d’un système producteur sous-jacent: parce que son architecture conditionne son fonctionnement, notamment écologique, et parce que les décisions sociales en matière d’aménagement découlent en partie de la maniére dont elle est perçue par les acteurs, la forme du paysage contribue à sa prope production.

Esse espaço está em eterna mutação, seja pela desagregação, seja pela construção ou surgimento de novos elementos dentro da dinâmica social e territorial. A dinâmica é uma característica importante da paisagem, já que esta não é imóvel, nem do ponto de vista social e subjetivo, nem do estrutural. Mas, se analisados os ordenamentos jurídicos antes da década de 80, constatar-se-á que um pressuposto da proteção à paisagem era a garantia de sua imobilidade. A paisagem era proibida de evoluir, como se ela não se modificasse naturalmente, tanto em sua perspectiva material (objetiva) quanto na perspectiva do observador (subjetiva). Concebia-se a paisagem atada a um passado distante, sem conexão com as sociedades contemporâneas, o que poderia levar à perda de seu valor.

Segundo Schilizzi e Honegger (1998, p. 267), “[...] l’évolution et lês facteurs d’évolution dês paysages doivent se comprende non seulement comme lês changements das leus éléments objectifs, mais aussi comme changements das le regards et dans la composition sociale de ceux qui regardent ».44 Dois são

os riscos de redução da mobilidade da paisagem hoje: primeiro, os ecologistas, que tentam reduzir a paisagem a uma mera questão ambiental, considerando que poderia ser preservada como está, negando desse modo sua dimensão cultural e a percepção. O segundo risco é o da preservação cultural, representada pelos atos da UNESCO que rotulam as paisagens como patrimônio.

Os mais exaltados debates em torno dessa tese de rotulação mostram um risco relativo de congelar as paisagens, pois, já que as sociedades, seja local, nacional ou mundial, mudam, num futuro elas podem deixar de ser representativas e se transformarem em ícones culturais. Alan Roger (1997) já falava isso na sua teoria de artialização e defendia o direito de redesenhar a paisagem quando a cultura assim o exigisse, pois paisagem é a reflexo do dia a dia da sociedade. Poeticamente Gillet (2006, p.1) diz: “Le paysage n’est pas un objet mais un événement fugitif, éphémère unique. La perception d’un paysage se fait doc en un lieu et un moment donnés"45.

A modificação é lenta e pouco perceptível em uma geração, o que garante a noção de continuidade paisagística entre as gerações, mas ao mesmo tempo produz a ilusão de imutabilidade. Segundo Donadieu e Périgord (2005, p.

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A evolução e os fatores da evolução da paisagem deverão ser compreendidos não apenas como mudanças em seus elementos objetivos, mas também como modificação de olhar e de composição social do que olha (tradução nossa).

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A paisagem não é um objeto, mas um evento fugaz, efêmero, único. A percepção de uma paisagem se faz então em um momento e local dado (tradução nossa).

83), “Les acteurs territoriaux se rangent aujourd’hui à l’idée que vouloir conserver à tout prix des formes héritées conduit à tuer le paysage qui doit être comparé aum organisme vivant, en mutation ou transformation permanente"46.

A discussão da dinâmica tem na legislação uma mudança que deve ser considerada: a diferença entre conservação e preservação. Comumente e por ignorância, em alguns textos jurídicos, ambos são postos como se fossem a mesma coisa e isso, se aplicado tecnicamente, pode dificultar a percepção dessa mobilidade da paisagem. É necessário esclarecer que, enquanto a preservação busca a integridade e a perenidade de algo, a conservação, apesar de buscar a proteção, permite o uso sustentável e assume um papel de guardar, mas sempre buscando a integração dos fatores naturais e culturais.

Quanto à preservação, salienta Suzana da Pádua (2000) que se refere à proteção integral, a "intocabilidade". A preservação se faz necessária quando há risco de perda de biodiversidade, seja de uma espécie, um ecossistema ou de um bioma como um todo. De forma distinta, esclarece que na conservação a participação humana precisa ser harmoniosa e sempre com intuito de proteção.

A parte física das paisagens é formada por vários elementos que compõe um todo, as chamadas unidades paisagísticas, que são específicas em cada local onde são criadas, mas se encaixam nos grandes tipos clássicos de paisagem, que são paisagem natural, paisagem rural, paisagem histórica e paisagem urbana.

Os elementos básicos analisados para a constituição da unidade paisagística são quase sempre os mesmos: aspectos pedológicos, fitogeográficos, bióticos, hidrológicos, meteorológicos e o grau de antropização, analisados através da valorização econômica e apropriação social. Esses elementos são levantados através de critérios objetivos organizados, mas atendendo à perspectiva subjetiva que lhes dá importância. Essa análise é feita através de estudos de campo, de fotos, estudos cartográficos, fotos aéreas, documentos.

Esse aparato e estudo técnico é que dirá o que é paisagem e o que a ela pertence. Antes se fazia uma divisão técnica entre geografia física e geografia

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Os atores sociais se prendem hoje à ideia de querer conservar a todo preço as formas herdadas e com isso conduzem à morte da paisagem, que deve ser comparada a um organismo vivo, em mutação ou transformação permanente (tradução nossa).

humana para classificação dessa paisagem, mas hoje isso não atende às necessidades dos tipos paisagísticos, tais como a paisagem ordinária, ou mesmo o fundamento da proteção da paisagem, que é a cadre de vie. Se tal separação for realizada, retira-se o fundamento da paisagem, aquilo que a diferencia do meio ambiente, pois o olhar sobre aqueles elementos físicos é o aspecto diferenciador.

A análise técnica é o ponto inicial para a criação de uma política de proteção de paisagem, uma vez que, ao não se definir o que deve ser protegido, não se tem fundamentos para proteger. Por isso as normas estabelecem ou devem estabelecer a necessidade dessas análises, como, por exemplo, a autorização paisagística instituída na França, pela “Lei de Paisagem”. Ao avaliar tecnicamente a construção ou modificação que será realizada, a comissão técnica garante a proteção e evolução da paisagem, atendendo aos parâmetros que a sociedade quer, garantindo a bela paisagem que é “celui où il n’y a pas de rupture dans les dynamiques sociales et territoriales existantes et celles souhaitées”47

(FORTIN, 2003, p. 6).

Fazer o recorte na paisagem para a realização do estudo é algo complexo e técnico e produzirá variações culturais, porque o sentido de paisagem, como já foi discutido anteriormente, não é sempre o mesmo. Quando o sentido técnico é utilizado isoladamente, não cumpre seu papel, pois, sem a interpretação devida, torna-se ditadura do cientificismo. Isso cria uma falsa imagem de elemento importante a ser protegido, tendo em vista não existir o reconhecimento social, essencial à devida proteção da paisagem. É o reconhecimento que efetivamente diferencia o conceito de paisagem da noção de meio ambiente, já que é a perspectiva do observador, carregada de sua cultura e visão social, sobre os elementos físicos que determinam a paisagem a ser protegida. Para Neuray (1982, p. 70), “un paysage serait donc un pays, un territoire, un lieu qui offre une image à percevoir, image qui est celle d’un espace habité ou habitable, qui présente une vue d’ensemble [...]48.

E como defende Waldheim (2005), se a paisagem for analisada como uma entidade global significa admitir, mesmo que implicitamente, que os elementos que a constituem têm uma dinâmica comum, que não corresponde

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aquela onde não há ruptura entre as dinâmicas sociais e territoriais existentes e aquelas desejadas (tradução nossa).

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Assim, uma paisagem seria então um pays, um território, um lugar que oferece uma imagem a perceber, imagem de um espaço habitado ou habitável que apresenta uma visão de conjunto (tradução nossa).

obrigatoriamente à evolução de cada um dentre esses elementos tomados separadamente.

A escala é elemento importante na análise técnica e sua utilização vai depender do tipo, especificidades e tamanho da paisagem a ser estudada. Uma escala menor possibilita a análise de detalhes de constituição e subjetividade, enquanto a mais ampla viabiliza uma análise mais objetiva. A escala temporal também é elemento importante para a descrição, pois, quanto menor a escala, mais o estudo é específico e direcionado. Mas esse procedimento é apenas indicativo e depende realmente de quais características pretende-se analisar. Segundo Cabanel (2000, p. 50):

A partir des lieux porteurs de souvenirs, d’art de vivre tout simplement, Il est possible d’etablir um diagnostic des caracteristiques esthetiques d’un paysage, partagé par le plus grand nombre, en parlant sans emphase de: texture des matériaux, teintes, complementarité, opposition, dominance des couleurs, contrastes, echelle, composition, formes que se répètent, cadrages visuels, transparence, visions ouvertes ou fermées[...]49

Se a análise for realizada em termos ecológicos, por exemplo, e a escala no tempo ou espaço for pequena, a paisagem pode ser variada e imprevisível, mas se for ao contrário, no sentido de escala de tempo ou espaço maior, pode parecer estável e previsível. Esta escala não pode ser confrontada com a escala geográfica, feita para analisar um rio ou um maciço, não esta ligado a uma comunidade que acumulou conhecimentos, os saber fazer por edificar, modificar e gerenciar seu território de vida.

A análise técnica é o ponto inicial para a criação de uma política de proteção de paisagem, pois sem delimitar até onde vai e o que compõe a unidade paisagística, não se tem o limite do que proteger, considerando-se que “a connaissance du site est l’idée fondatrice du projet de paysage, le point de départ vers l’invention de nouveaux paysages, adaptés aux usages et aux désirs du monde contemporain"50 (SANSON, 2007, p. 36).

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A partir dos locais portadores de lembranças de arte de viver, simplesmente é possível estabelecer um diagnóstico das características estéticas de uma paisagem, partilhada por um grande número, sem ênfase à textura de materiais, tons, nuances, complementaridade, oposição, domínio de cores, contrastes, escala, composição, formas que se repetem, enquadramentos visuais, transparência, visões abertas ou fechadas [...] ( tradução nossa).

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O conhecimento do local é ponto fundamental do projeto de paisagem, é o ponto de partida para a criação de novas paisagens adaptadas aos usos e desejos do mundo contemporâneo (tradução nossa).

Por esse motivo as normas estabelecem ou devem estabelecer a necessidade dessas análises técnicas. A lei francesa traz um primeiro tipo, que é a autorização paisagística para realizar uma nova construção ou renovar uma antiga.

Outros códigos são analisados para determinar a paisagem, dividindo- se em dois grandes grupos: a geometria da paisagem e a ambiência da paisagem. Os primeiros estruturam a paisagem, esses constituem sua coluna vertebral (esqueleto), já os últimos permitem traduzir os efeitos. São exemplos da geometria da paisagem: a linha, o ponto, o volume, os planos e os ritmos. E da ambiência, os contrastes de cor, forma, direção, textura, a harmonia dos mesmos, as transparências, as escalas.

Esses pontos que tratam da feitura de um projeto paisagístico são muito importantes, porque levam a pensar na proteção da paisagem, embora muitas vezes fique esquecido que ela tem vários planos, os quais, para serem percebidos, fazem necessário um ponto de visualização.

Geralmente, quando se fala nos planos de paisagem, os autores, como LASSERRE e LECHAUME (2003) a dividem espacialmente em Primeiro Plano, Paisagem Propriamente Dita e Plano de Fundo. O Primeiro Plano é aquele de uma dezena de metros, correspondendo à zona de detalhes, onde é possível ver as árvores e flores, bem como as sujeiras e o lixo. Segundo NEURAY (1982, p.29) “un avant-plan medíocre peut gacher la perception de toute une vue , Il fera, Le cas échéant, l’objetd’um examen particulier”51.

A paisagem, propriamente dita, está a algumas centenas de metros, no máximo a um quilômetro, e o olhar já não percebe mais os detalhes, mas distingue as formas e o produto da massa de elementos da paisagem, em uma palavra, a sua estrutura. Segundo Neuray (1982, p. 29):

Un équilibre harmonieux des différents eléments, grace à une repartition favorable dans l’espace, confere à l’ensemble une valeur qui ne dépend pás uniquement de la longueur de la vue. Celle-ci constitue un premier élément d’apréciation, auquel vient s’ajouter la valeur de la structure.52

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Um primeiro plano medíocre pode estragar a percepção de toda a vista, ela será, conforme as circunstâncias, o objeto de um exame particular (tradução nossa).

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Um equilíbrio harmonioso dos diferentes elementos, graças a sua repartição favorável no espaço, confere ao todo um valor que não depende unicamente da distância da visão. Esta constitui um primeiro elemento de apreciação, ao qual se agrupa o valor da estrutura (tradução nossa).

Já o plano de fundo é tudo que se situa há mais de um quilômetro. Nessa distância, o olho é incapaz de distinguir com precisão as características dos elementos, não capturando nada além dos volumes. Quanto mais estes são distantes, mais perdem sua individualidade, porque tornam imperceptíveis coisas como as cores. “La dimension, essentiellement la longueur, donne la plus grande partie de leur valeur à ces vues vastes et lontaines53 (NEURAY, 1982, p. 29).

Figura 9 - Divisão de planos da paisagem baseado em Neuray (1982)

Os pontos de observação, apesar de receberem menos atenção que a paisagem em si, são muito importantes para a visualização da paisagem. Uma paisagem maravilhosa, que não é possível de ser vista, é inútil economicamente e pode levar à perda de sua função cultural. Assim, ao proteger uma paisagem, deve-se também analisar de onde ela pode ser melhor observada e se os projetos arquitetônicos, prediais, não dificultam a visualização panorâmica da região.

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A dimensão essencial é a longitude que dá a maior parte de seu valor às vistas vastas e de fundo (tradução nossa).

Figura 10 - As possibilidades de visão nos principais pontos de visualização possíveis. (NEURAY, 1982, p. 33)

Este tema remete ao caso prático do Rio do Janeiro, onde a reforma da Marina da Glória, como planejada, teria tampado mais a visão da paisagem símbolo do Rio de Janeiro, o Pão de Açúcar.

Obviamente, esse último tópico se liga diretamente ao segundo elemento da paisagem, que é o observador.

No documento Conceito jurídico de paisagem (páginas 101-108)