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AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS DO SÉCULO

2. O ensino de inglês e as finalidades comerciais

A análise de vários compêndios publicados no recorte temporeal desta tese, principalmente os prefácios, posfácios e notas do autor, comprova que as questões comerciais estavam no cerne da preocupação das obras do século XIX dedicadas ao ensino de inglês. A dictionary of the Portuguese and English Language in two parts, publicado em 1794, por Anthony Vieyra Transtagano (1712-1797), antes mesmo da vinda da corte portuguesa, aponta, no seu prefácio, uma antevisão de um futuro em que as nações não tardariam a compor gramáticas e dicionários destinados ao ensino de inglês como língua estrangeira, para que as trocas entre países que mantivessem relações comerciais com a Grã-bretanha pudessem ser facilitadas, dado o poderio comercial da Inglaterra, e por ser a língua inglesa considerada útil a todas as nações.

Ao dedicar a sua obra a Robert Lord Clive (1725-1774), barão de um condato da Irlanda, Transtagano (1794) destacou a alegria em ter, finalmente, publicado sua arte, reforçando a importância de uma obra desta natureza para as relações comerciais estabelecidas entre a Inglaterra e Portugal e suas colônias. Assim, o autor enfatizou que

Ninguém conhece melhor que V. S. quanto seja preciso o estudo de ambas estas linguas em matérias de guerra e commercio pellas Costas Orientaes e de todas as quatro partes do globo, pellas quaes, com meu inexplicável prazer, por meyo da presente obra espalharei o de que mais me preso (TRANSTAGANO, 1794, p. iii).

Muitos compêndios dos séculos XVIII e XIX exaltaram as finalidades comerciais para o ensino do inglês, como, por exemplo, a Gramática de J. Castro, com terceira edição datada de 1759. Trata-se da primeira gramática destinada a ensinar, ao mesmo tempo, o Inglês e o Português, em decorrência da sua grande utilidade no comércio, conforme destacado pelo autor. O compêndio foi dividido em duas partes: uma em português, para o ensino a ingleses, e a outra em inglês, direcionada aos falantes da língua portuguesa. É notória a finalidade mercantil, o que pode ser comprovado com a

exaltação do comércio e da Inglaterra como grande potência comercial. A presença de diálogos familiares que privilegiam as situações mercantis reforça essa finalidade comercial, bem como a disponibilização de modelos de cartas e documentos comerciais nas páginas finais da obra e que seriam utilizados em situações mercantis, substituindo- se as palavras dadas como exemplo por aquelas condizentes a cada caso (SANTOS, 2010, p. 100-115).

A Nova Grammatica Portugueza e Ingleza a qual serve para instruir aos portugueses na Lingua Ingleza, publicada em 1808, por um autor desconhecido, bastante similar, em termos de conteúdo, à obra de Castro (1759), também está pautada na finalidade comercial, utilizando as mesmas frases em defesa do estudo do inglês, como, por exemplo, o de ser útil ao “curiozo estudante” (CASTRO, 1759, p. i; S/A, 1808, p. i), termo também utilizado por Hipólito José da Costa. Trata-se, então, de mais um compêndio que, em suas notas introdutórias, defendeu a disseminação e o fortalecimento do ensino do inglês, associado às questões mercantis.

O Compendio da grammatica ingleza e portugueza para uso da mocidade adiantada nas primeiras letras, escrito em 1820, por Manoel José de Freitas, reforçou a mesma ideia sobre a utilidade da língua inglesa para fins comerciais, na medida em que foi destacado que o ensino de inglês deveria ser incentivado, por servir de acesso a obras importantes literárias, bem como de desenvolvimento pessoal, e servir de modelo para aquisição de uma boa educação, conseguida em decorrência da consolidação dos bons exemplos, o que fez com que o autor se pronunciasse em relação à alegria em poder contribuir para a consolidação do ensino da língua inglesa, justificado em decorrência da sua utilidade frente às questões mercantis.

animado pois por um coração liberal, resolvi preparar este Compendio, considerando o trafico e as relações commerciaes da Nação Portugueza com a Ingleza, e a falta de um Compendio da Grammatica de ambas, para iniciar e facilitar a Mocidade ao uso das duas Linguas, com a clareza, justeza, e simplicidade possivel (FREITAS, 1820, p. i).

Ao pesquisar sobre as gramáticas do século XIX, Manuel Gomes da Torre (1985) e Oliveira (2006, p. 102-103) concluiram que Manoel José de Freitas deve, muito possivelmente, ser Manoel de Freitas Brazileiro, utilizando um pseudônimo, uma vez que os compêndios são muito parecidos, no que se refere à estruturação da sintaxe, etimologia e prosódia, sempre prezando pela concisão de regras e simplificação de

exemplos nas duas línguas, principalmente no compêndio de 1812, em que, corroborando com a ideia de que o ensino de inglês deveria ser associado com a finalidade mercantil, o autor ressaltou ser importante publicar aquela obra “em uma Epoca tao inesperada, como, vermos os portos do Brazil franqueados ao Commercio com Inglaterra, fazendo-se deste modo mais ampla e mais extensiva a correspondencia e comunicaçaõ entre as naçoens” (BRAZILEIRO, 1812, p. i).

As similaridades dos diálogos familiares também reforçam a tese de mesma autoria, ainda mais amparada ao percebermos que os dois nomes eram bastante semelhantes, e é provável que o nome Brazileiro tenha sido acrescentado na primeira obra, por ter sido esta publicada em Liverpool, enquanto que a segunda foi produzida no Rio de Janeiro, o que fazia com que não fosse necessária uma referência à nacionalidade do autor. Para reforçar esta tese, é importante destacar que as preocupações com plágio e com a autoria de compêndios ainda não eram percebidas no século XIX, conforme atestam Torre (1985), André Chervel (1990) e Oliveira (2006). Para este,

é preciso relativizar as noções de plágio e autoria em obras pedagógicas do gênero, pois nelas muito menos importante é a originalidade das idéias do que o modo como elas podem ser copiadas, imitadas, adaptadas, apropriadas ou manipuladas em função das condições sócio-políticas em que são produzidas, ou do público para o qual são dirigidas (OLIVEIRA, 2006, p. 136).

Roscoe Greene (1796-1840), em sua obra A practical grammar of the English language, publicada em 1830, não teceu tantos comentários que justificassem o ensino da língua inglesa, mas o referenciou como sendo essencial para os estudos comerciais, colocando esse fim como suficiente para dirimir quaisquer dúvidas sobre a utilidade do estudo da língua inglesa. Assim, o autor tentou encerrar as discussões estabelecidas em torno da necessidade deste ensino, considerando que ser importante para o comércio já justificaria o estudo e seria suficiente para contrapor qualquer possível contra- argumento.

As obras dos autores supracitados devem ser consideradas apenas como exemplos de muitas outras publicadas nos séculos XVIII e XIX e que atestam a importância em incentivar o estudo da língua inglesa, associado às questões mercantis, dada à relação comercial estreita entre a Inglaterra e Portugal, englobando, também, as suas colônias, e, no caso específico, o Brasil.