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2. O PROFESSOR, O ENSINO E OTRABALHO

2.3 O ensino na ótica da Ergonomia da Atividade e da Clinica da Atividade

A relação trabalho prescrito/trabalho realizado é fundamental para a análise do trabalho de ensino do ponto de vista da ergonomia da atividade, tendo em vista que o trabalho do professor está sempre ligado a uma instituição que prescreve normas para a sua execução, além das normas externas pré-existentes, tais como as leis e os decretos, que já mencionamos. Todavia, como afirmam Clot e Faïta (2000), essa relação não deve ser vista como dicotômica, na medida em que uma nebulosa de gêneros de atividade preenchem o que poderia ser visto como uma “distância”. É nesse “espaço” por assim dizer, que o professor atua, e é essa atuação que é alvo da análise da ergonomia da atividade. A preocupação principal dos professores, segundo Amigues (2003:29), é adaptar as tarefas prescritas institucionalmente para atender às necessidades de seus alunos, e da situação de ensino na qual se encontra. O professor, então, organiza as condições de estudo de seus alunos, distribui tarefas, organiza um diálogo didático e, enfim, “constrói um ambiente de trabalho propício para que os

alunos também desenvolvam ações” (Amigues, 2003:29), reelaborando constantemente o seu trabalho.

Todavia, muitas vezes essas prescrições não chegam diretamente ao professor. Elas passam por grupos institucionais que as interpretam para eles. Sendo assim, tanto as prescrições externas (leis, decretos, portarias, PCNs etc.) quanto as prescrições institucionais internas (dos estabelecimentos de ensino propriamente ditos) são retrabalhadas por centros de formação de professores, conselhos pedagógicos, etc...que se dedicam a transmiti-las aos professores. Amigues (2003) afirma que essas interferências institucionais, ao invés de tornarem as prescrições mais precisas, tornam-nas ainda mais fluidas na esfera da educação, o que dá margem, ainda, a outras interpretações e adaptações pelo próprio professor. Portanto, para Amigues (2003), a prescrição não está somente na origem da ação dos professores, mas é consubstancial à sua atividade, notadamente em suas dimensões coletivas, individuais e subjetivas.

Essa mesma prática de interpretação das prescrições para os professores existe no Brasil. Aqui também há centros de formação, conselhos pedagógicos etc. em que são discutidas as prescrições. Nos cursos de línguas considerados “livres”, ou seja, os que não são regulamentados pelo MEC, por exemplo, as prescrições institucionais, de modo geral, são interpretadas e até mesmo monitoradas por coordenadoras pedagógicas ou, em alguns casos, por professores responsáveis pela implementação do currículo em nível local.

Um outro fator que deve ser objeto de observação, em relação ao trabalho de ensino é a dimensão coletiva da atividade, conforme sugerido por Amigues (2004:43). A dimensão coletiva da atividade diz respeito aos grupos em que o professor se insere (o grupo de professores de inglês, o grupo de professores de matemática), aí compreendidos em nível global, nacional, internacional ou institucional, e não simplesmente em nível do coletivo efetivo presente. É essa dimensão coletiva da atividade que constrói as regras do ofício, ou seja, o que une os profissionais entre si, uma espécie de memória comum que pode funcionar como uma caixa de ferramentas, de onde os professores extrairiam diferentes modos de fazer. Esses modos de fazer delineariam aspectos genéricos relativos à profissão, de modo amplo, ou

aspectos específicos à disciplina lecionada (os gêneros de atividade, cf. Clot e Faïta, 2000).

No Brasil, especificamente em relação aos professores de língua estrangeira, há associações que promovem encontros, seminários, palestras etc. como, por exemplo, o BRAZ-TESOL19, a APLIERJ, o ENPULI, para citar apenas algumas, no caso dos professores de inglês. Reunidos em nome dessas associações, os professores trocam experiências, discutem práticas, discutem novos conceitos, re-interpretam prescrições, aprendem novas maneiras de fazer, novas técnicas, e estudam novas metodologias e teorias. Essa memória coletiva, ou comum, estaria possivelmente ligada ao que Clot e Faïta (2000) entendem como gêneros de atividade, como explicamos anteriormente, os quais, muitas vezes, são apropriados pelos professores na realização de uma tarefa, nem sempre de forma consciente, todavia. Esses gêneros de atividade, relembramos, compreendem os gêneros de discurso (cf. Bakhtin, 1992/2003) e os gêneros de técnica - gestos, etc... (cf. Clot e Faita, 2000:12), aos quais já nos referimos anteriormente, neste capítulo.

Em uma visão ergonômica da atividade de trabalho, Amigues (2003) e Clot (2004) destacam a importância dos artefatos materiais e psicológicos que auxiliam o professor em seu trabalho. Esses artefatos, na maioria das vezes, são concebidos por outros e transformados pelo próprio professor; outras vezes, entretanto, são concebidos pelo próprio professor e também por ele transformados no curso do trabalho (cf. Amigues, 2003). Como exemplo desses artefatos auxiliares o autor cita manuais, fichas pedagógicas, exercícios já construídos, tirados de arquivos, emprestados de colegas ou construídos por ele. Amigues (2003) nos lembra que esses artefatos são transformados pelo professor na sua atividade de trabalho. No momento dessa apropriação, esses artefatos, que estão disponíveis no coletivo de trabalho, transformam-se em instrumentos para os professores (cf. Clot, 2004), que fazem a sua adaptação, de modo a atender a suas próprias necessidades em relação à realização do trabalho prescrito e em relação às

19 Braz-Tesol : associação afiliada à TESOL americana [Teachers of English to Speakers of other Languages]

Aplierj : Associação de Professores de Inglês do Estado do Rio de Janeiro Enpuli: Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua Inglesa.

necessidades do grupo de alunos, na situação concreta em que se encontra. Os artefatos são, assim, essenciais, consubstanciais à atividade de ensino, sejam eles materiais - como o retro-projetor, o quadro-negro, o computador, o giz etc. -, sejam eles psicológicos - como as perguntas de compreensão, as perguntas retóricas, as repreensões, os gestos, enfim, as maneiras de fazer ou os gêneros de atividade, dentre os quais, podemos incluir, ainda, a maneira de iniciar uma aula, de corrigir um dever de casa ou de fazer a chamada para registrar a presença dos alunos.

Constatou-se, assim, que a abordagem ergonômica da atividade de ensino proposta adota um ponto de vista diferente daquele de um observador externo ou de uma pessoa que, em situação hierárquica, vai observar a aula dos professores para se assegurar de que esses fazem bom uso dos artefatos colocados a seu dispor, ou de que estejam cumprindo o conteúdo programático ou, ainda, de que estejam fazendo tudo o que deveriam fazer, de forma a serem mais eficientes em relação à aprendizagem de seus alunos para a obtenção de melhores resultados.

O ponto de vista da abordagem ergonômica consiste, enfim, em compreender como um professor não somente utiliza, mas também retrabalha os meios e instrumentos à sua disposição, a partir das prescrições que lhe são feitas, para atender aos objetivos de sua atividade de ensino. Sob esse ponto de vista, central ao trabalho do professor é, então, a interpretação das prescrições e sua adaptação às condições físicas da sala de aula, da instituição, enfim, de seu ambiente de trabalho, assim como a sua adaptação à condição social, intelectual e psicológica de seus alunos. Essa interpretação das prescrições está intimamente ligada ao coletivo de trabalho em que se insere o professor, como foi explicado anteriormente. Portanto, é no seio do coletivo de trabalho que o professor, além de transformar as prescrições, avalia suas próprias ações e as ações dos outros professores, apropriando-se de algumas, rejeitando outras e transformando ainda outras.

O trabalho do professor se caracteriza, então, por ser um trabalho marcado pela relação prescrito/realizado, relação essa envolvida em uma nebulosa de gêneros de atividade (gêneros de discurso + gêneros de técnicas), ou seja, maneiras de fazer, que estão disponíveis na memória individual do professor que, por sua vez, está inserido em um determinado

coletivo de trabalho; coletivo de trabalho esse que oferece ao próprio professor recursos outros, além dos gêneros de atividade acima, tais como: artefatos semióticos e materiais para a realização de seu trabalho. É, então, na atividade de ensino, que o professor reformula o gênero profissional, apropria-se dos artefatos, transformando-os em instrumentos para a realização do trabalho prescrito. A singularidade de suas ações, que se originam em seu contexto social e histórico, dará ensejo ao surgimento de seu estilo profissional o qual, por sua vez, marcará sua maneira de agir, sua maneira de fazer, em um dado momento, em um dado local, em uma dada situação profissional.

Ficam marcados, então, o caráter coletivo da atividade de ensino - na medida em que o próprio coletivo de trabalho aparece como origem das regras do oficio -, da memória impessoal e coletiva dos gêneros de atividade, assim como o caráter interacional e instrumental dessa mesma atividade, voltada para o processo ensino-aprendizagem, objetivo final do trabalho de ensino.