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O Ensino superior e a tradição (uni)versal

1 RAÇA, RACISMO E ENSINO SUPERIOR NO BRASIL

1.4 O Ensino superior e a tradição (uni)versal

No cenário das desigualdades raciais na educação, o Movimento Negro Unificado (MNU), principalmente o segmento das feministas negras, foi muito importante para as políticas de democratização do acesso à educação, iniciadas na década de 1990, no âmbito do ensino básico, e foi responsável por mobilizações de visibilidade contra o racismo e a ideologia escolar dominante, nos anos 1980, por fazer diversas críticas “ao livro didático, currículo, formação dos professores etc.” e, em um segundo momento, passaram a realizar “ações concretas” (GONÇALVES; SILVA, 2005, p. 217).

O MNU esteve junto aos órgãos institucionalizados, não apenas na reivindicação, mas também no seu assessoramento. Como relata Silva (2011), o núcleo de professores, pesquisadores, militantes e suas produções acadêmicas foram atendidos por órgãos diretivos educacionais, a partir da criação de um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra do Ministério da Justiça (GTI)29, composto paritariamente por membros do MNU (oito representantes) e por um representante de cada segmento (ministérios da Justiça; da Cultura; da Educação e dos Esportes; do Planejamento e Orçamento; das Relações Exteriores; da Saúde; e do Trabalho), quando compartilharam seu conhecimento e tensionaram o espaço político ao longo dos anos 1990 e no início de 2000 para a constituição

29 Decreto de 20 de novembro de 1995, que institui o Grupo de Trabalho Interministerial, com a finalidade de

desenvolver políticas para a valorização da População Negra, e dá outras providências. Foi revogado em 5 de novembro de 2019.

de um educação pluriétnica, o que reverberou, inicialmente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (diversidade étnico-cultura como valor, a transversalidade do tema, a formação de professores da educação básica).

A democratização do ensino superior no Brasil se deu apenas nos anos 2000, por meio de ações com vias de ampliação do acesso à população, iniciadas, primeiramente, no âmbito da instituições privadas, com a criação o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e com a ampliação Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas, a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) objetivou ampliar as vagas de discentes, estabelecer metas de enfrentamento da evasão, orientar diretrizes pedagógicas, respeitando-se a autonomia das instituições. Com vias, ainda, de efetivar a democratização do acesso ao ensino superior, em 2012, foi promulgada a Lei nº. 12.71130, conhecida como “lei de cotas”, que dispõe especificadamente sobre o sistema de destinação de vagas nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, para estudantes pretos, pardos ou indígenas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas integralmente ou que possuem renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita31.

Durante o processo de disputa discursiva sobre a implantação de políticas afirmativas reparatórias como medida de garantia do acesso de não brancos historicamente excluídos dessa etapa educacional, afloraram duas linhas de debates no país a partir da proposta de cotas raciais32. Segundo consta no 5º volume da Coleção Educação para Todos, no livro Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas, produzido pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade33, as linhas argumentativas principais foram as das cotas como instrumento jurídico de “neutralização daquilo que – de acordo com o status quo sociorracial – não se quer neutralizar”, e, do lado oposto, as cotas como produtoras de desigualdades “feririam o princípio da igualdade”, “subverteriam o princípio do mérito” e “prejudicariam os próprios negros” (BRASIL, 2005, p. 8). A polaridade dessa

30 Em 2016, a lei foi alterada para incluir as pessoas com deficiência (Lei nº. 13.409, de 28 de dezembro de

2016.)

31 A “lei de cotas”, normalmente, é abordada como favorecimento exclusivo à população negra, o que demonstra

um desconhecimento da legislação, que, além de buscar reparar iniquidades a um grupo diverso, inclusive de “brancos pobres”, desconhece a proporcionalidade que faz com que alunos concorram às vagas específicas, que podem se tornar mais concorridas que as de ampla concorrência.

32 Antes delas, o que víamos era um acesso massivo na rede privada de educação, que fortalecia esse mercado

em detrimento das universidades públicas.

33 Unidade Administrativa, criada por meio do Decreto no. 5.159, de 28 de julho de 2004, a Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), atualizada no Decreto presidencial no. 7.480, de

discussão aparece como um traço do racismo brasileiro, em que ideias divergentes podem ser expressas em um mesmo argumento, sem serem considerados seus sentidos divergentes, como a ideia de igualdade e designação racial.

Na década de 199034 (1992-1999), a população que ocupava as universidades era, em sua maioria, branca e representava um quantitativo quase quatro vezes maior que o número de vagas ocupadas por pessoas negras (HERINGER, 2002). Estima-se, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que analisou os dados da PNAD e do IBGE entre 1995 a 2015, que, nessas duas décadas, a população adulta branca com mais de 12 anos de estudo avançou de 12,5% para 25,9%, já a população negra avançou de 3,3% para 12%, e cresceu duas vezes mais que o quantitativo de pessoas brancas, no mesmo período, porém o percentual ainda está abaixo do que a população branca tinha em 1995. A pesquisa identificou também que as mulheres estão em vantagem sobre os homens quando o quesito é longevidade escolar, mas isso não se reflete na posição no mercado de trabalho. Um dos indicadores destacados, nesse estudo, foi a taxa de analfabetismo em relação ao gênero e à raça. Essa taxa, para os homens com 15 anos ou mais de idade, foi de 7,4% e, para as mulheres, de 7,0%. “Em 2015, entre as mulheres com 15 anos ou mais de idade brancas, somente 4,9% eram analfabetas; no caso das negras, este número era o dobro, 10,2%35”, o que demonstra que não são todas as mulheres que têm vantagens em relação aos homens quanto à escolaridade.

O histórico da institucionalização da educação no Brasil apresentada um cenário de desigualdade produzido pela condição da população negra e agravado pelo racismo. O discurso meritocrático de classe foi produzindo uma universidade pública cada vez mais afastada das camadas populares e, em consequência, dos menos privilegiados, o que tornou o espaço restritivo não apenas na sua composição racial, mas também em suas perspectivas e epistemologias. O ensino superior público etilizado e embranquecido, potencialmente, reflete conhecimentos que privilegiam tais perspectivas.

Nos debates sobre a integração do negro nessa etapa do ensino por meio de ações afirmativas, Petronília (2003) indica o reconhecimento da diversidade étnico-racial brasileira pela universidade como materialidade do “racismo institucional”, que enquanto produtor de exclusão dos negros/as da universidade e cerceou também a interação de saberes, visões de

34 Ribeiro (2018) descreve um breve panorama histórico do ensino superior brasileiro desde as primeiras

iniciativas dos cursos no Brasil, em 1808, até os dias atuais.

35 Esse indicador também tem marcadores regionais distintos, o que evidencia outras intersecções sociais e

mundo e tecnologias trazidos consigo, e que a condição de escravizados não torna menos legítimo. Segundo o Programa de Combate ao Racismo Institucional, esse tipo de discriminação racial é definido como um “fracasso coletivo de uma organização ou instituição em prover um serviço profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura, origem racial ou étnica” (BRASIL, 2009, p. 157).

A diversidade racial, na academia, significa a pluralidade de pensamento, materializa o conhecimento eurocentrado como um entre outros possíveis, ao mesmo tempo que desvela que a valorização de uma perspectiva em detrimento da outra são formas de expressões do racismo institucional. A direção da defesa de um ensino superior multirracial é, para Carvalho (2006), a própria possibilidade de enfrentamento do racismo acadêmico. E é nessa linha que intelectuais negros e brancos antirracistas, incluindo o campo da educação, fortaleceram, ao longo dos anos 2000, a pauta do movimento negro, quando não integrantes, a pauta das cotas raciais no ensino superior, como forma justiça social, de reparação histórica, de garantia do direito civil e de combate ao racismo institucional. Como ressalta Jesus (2011, p. 14), em sua tese, as políticas de cotas não são sinônimo de ações afirmativas, “posto que, as mesmas dizem respeito a uma modalidade entre as diversas medidas de ações possíveis – tendo sido, as primeiras reivindicadas pelo movimento social negro brasileiro”. Nesse bojo de ações estavam, na pauta da inclusão do ensino da cultura afro-brasileira, a luta pela escola quilombola com definição de diretrizes curriculares e mudanças pedagógicas que impactariam na formação de professores (GOMES, 2019). Tais mobilizações, para Gomes (2019), não se tratam apenas de mudanças curriculares, mas de uma articulação política educacional, o que podemos transpor como um novo projeto de nação e logo de universidade.

A condição de produção de conhecimento do movimento negro brasileiro em prol da emancipação produziu análises racialmente referenciadas, o que contribuiu para o estabelecimento de uma concepção negra decolonial, que interroga o pensamento hegemônico do cânone e acrescenta outras interpretações da realidade (GOMES, 2019). Nesse sentido, nossa pesquisa caminha na intenção de contribuir para as produções que interrogam as estruturas coloniais de dominação, porém, se centrando no ponto de vista de quem opera a manutenção, nós, sujeitos constituídos subjetivamente em meios às tensões engendradas pela estrutura. Apesar dos desafios postos, o campo da educação tem sido uma área de grande produção de conhecimento, comprometida com uma reflexão crítica diante da problemática do racismo. Desse modo, apresentaremos, brevemente, esse cenário e, para caminhamos, serão expostas as três políticas de ações afirmativas que enfrentam do racismo institucional na

educação, e se centram nas implicações para a educação superior e na docência, e estabeleceremos nossas reflexões, daqui em diante, mais próximas do nosso campo de estudo, a UFOP.

1.4.1 Protagonismo da educação antirracista

Como exposto, a realidade nacional à luz do racismo traz, em seu âmago, complexidades que ainda estão longe de ser esgotadas. É possível que, mesmo centrando nosso olhar no campo de educação, esse texto ainda deixe lacunas, efeito de nossas escolhas trilhadas no encontro com a produção científica da área. Nesta seção, buscaremos demonstrar, que apesar da política educacional ter, como valor fundante, preceitos eugenistas e produzir, ao longo de sua história, processos de exclusão, a população não branca, em todas as etapas de ensino, na atualidade, vem se destacando na produção de conhecimento científico crítico acerca desses processos históricos, ao se interessar por diferentes ângulos do debate e promover rupturas com o pacto da branquitude. Assim, a veiculação de indicadores das desigualdades raciais não tem sido suficiente, de imediato, para promover deslocamentos necessários que possibilitem a desnaturalização dessa realidade.

As inquietações em torno das relações raciais no campo da educação, apesar de ganharem visibilidade nas últimas décadas, não soam como algo novo, elas têm agrupado uma consolidada produção científica em relação à realidade da educação básica. A pesquisa desenvolvida a respeito dos livros didáticos disponíveis entre os anos de 1987 a 2000 (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA; 2003, p. 135) apresenta uma representação da população branca e não branca veiculada nesse material e desvela uma desigualdade silenciosa que aponta para “uma naturalização e universalização da condição de ser branco: sua pertença racial não necessita ser explicitada”, ao passo que a população negra e indígena, principalmente os/as negras/os, emerge em uma posição subjugada. Foi identificado, no estudo supracitado, traços de ambiguidade nas representações estereotipadas e limitadoras de sentido, que convivem lado a lado, nas páginas, com o discurso retórico da igualdade.

A produção de pesquisas que investigam os reflexos do racismo na educação foi fundamental para a conquista de marcos legais, como o que apresentaremos mais adiante, a Lei nº. 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL, 1996), ao instituir a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira. Segundo a pesquisadora Ana Celia Silva (2011), quase uma década após o estudo mencionado e após a promulgação da Lei nº. 10.639/2003, ao investigar 15 livros didáticos de Língua Portuguesa, identificou-se cinco em que a população negra é representada sem estigmas. Ao analisá-los, a pesquisadora observa uma sub-representação deste grupo, ao mesmo tempo que é retratado de forma mais humanizada, o que revela pequenos deslocamentos do cenário anterior. Tratam-se de reflexos materializáveis dos processos de lutas engendrados no âmbito da educação. Essa modificação nos livros didáticos institucionaliza a ressignificação coletiva mobilizada pelo MNU, a disponibilização de conteúdos menos reducionistas e inferiorizantes dos não brancos, possibilita uma identificação subjetiva mais positivada e, como defende a autora, tem potencial para contribuir com outros grupos étnico-raciais na flexibilização das crenças estereotipadas da população negra. A pesquisadora caracteriza a presença do corpo negro nesse material ainda como uma representação abstrata, universalizante, que apaga as diferenças, as contradições e a pluralidade (SILVA, 2011). Evidencia um desejo assimilacionista, que, no seu argumento, não confere alteridade a esse grupo, mas expressa um medo do convívio com a diferença. Para além do material distribuído, nos interessa pensar nos sujeitos que os produzem.

Como pode ser identificado no recente levantamento, intitulado Educação das

relações étnico-raciais: o estado da arte, o cenário de produção científica na temática da

educação das relações étnico-raciais, como demonstrado nos artigos específicos relacionados à implementação da Lei nº. 10.639/2003, aponta para desafios a serem superados, como a ampliação da temática a outros campos de conhecimento e a formação inicial, pouco citada tanto nas pesquisas quanto nos relatos de experiência (DIAS et al, 2018).

Podemos pela leitura do material afirmar que nesta perspectiva há experiências que abarcam da educação infantil até o ensino médio e a educação profissional. Apenas um faz referência ao ensino superior, ou seja, a instituição de disciplinas ou como as universidades têm respondido a demanda para dar cabo à Educação das Relações Étnico-Raciais (DIAS et al. 2018, p. 166).

Esse levantamento mapeou publicações de teses e dissertações nos repositórios dos programas de pós-graduação stricto sensu de educação e nas revistas científicas de educação nacionais com qualificações entre A e B, no período de 2003 a 201436. Foi construída uma tabela das produções de pesquisas na temática racial em educação por meio de uma análise qualitativa com leitura de resumos e da categorização dos trabalhos, o que nos permite acessar o interesse dos/das pesquisadoras do campo da educação pelo fenômeno do racismo (Figura 1).

Figura 1 - Levantamento de publicações de pesquisas e artigos na temática da Educação das Relações Étnico-Raciais (2003 a 2014)

Fonte: Silva, et al (2018, p. 37)

Nesse bojo dos estudos das relações raciais também está incluída a branquitude, que, no mapeamento, foi agrupada na categoria “multiculturalismo”. Como pode ser visto no Anexo I deste trabalho, ainda não há uma produção expressiva, em volume, a respeito da branquitude e, quando ela é investigada, está mais presente em pesquisas desenvolvidas no âmbito da educação básica, se comparadas ao ensino superior, o que nos chamou atenção no início da pesquisa, mas, de certa forma, não nos surpreendeu, por considerarmos os sistemas

36 “Foram utilizados os seguintes descritores: ações afirmativas; afro-brasileiros; branquidade; branquitude; cotas

étnico-raciais; currículo e relações étnico-raciais; discriminação racial; diversidade étnico-racial; educação quilombola; etnia; formação de professores e relações étnico-raciais; História da África; História e Cultura africana e afro-brasileira; identidade étnico-racial; Lei nº. 10.639; Lei nº. 11.645; literatura africana; literatura negra; movimento negro; multiculturalismo; negritude; negros e livros didáticos; políticas afirmativas; população negra; preconceito racial; racismo; Pré-Vestibulares para Negros e Carentes (PVNC); quilombos; relações étnico-raciais; religiosidade negra” (SILVA; RÉGIS; MIRANDA, 2018, p. 37).

de poder no entorno do racismo brasileiro, que se entrecruzam e se ancoram em estruturas de dominação. No levantamento realizado pela pesquisadora Laborne (2014), foi descrito que os primeiros estudos voltados para as relações raciais e o ensino superior começaram em 2001 e se ocuparam, principalmente, das trajetórias de professores/as negros/as e das condições presentes na ascensão à condição de professor/a universitário/a. A realidade da ausência de negros na etapa do ensino superior, segundo a pesquisadora, é um dos fatores que contribuem para as ausências de pesquisas e se configurando como um sinal persistente do “mito da democracia racial”, uma ideologia que naturaliza as desigualdades históricas e localiza no mérito a explicação simplista para as realidades sociais, tais como a ausência de negros e negras em lugares de prestígio e de ascensão social, como o ensino superior, e que desconsidera a educação um direito constitucional.