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Subjetividade como objeto de estudo da Psicologia brasileira

2 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA PARA O CAMPO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2.1 Subjetividade como objeto de estudo da Psicologia brasileira

Nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, o conceito não indica uma linha teórica a priori, e é utilizado, por vezes, apenas como referência interna ao sujeito. Já a sua concepção tem marcadores delimitados pela perspectiva que as diferentes áreas compreendem “o ser humano”. O sujeito da Antropologia não corresponde exatamente ao da Sociologia, e, até mesmo na ciência psicológica, como argumentamos anteriormente, encontramos concepções e nomeações distintas (sujeito, indivíduo, pessoa). As formas referenciadas aos sujeitos têm relação direta com as concepções de ser humano de uma sociedade e, logo, com a relação que se estabelece entre sujeito e objeto56 .

A concepção de subjetividade surge, no Ocidente, na Filosofia grega e, segundo May Ferreira (2000, p. 25), perdurou durante vários séculos, em vias de compreender a relação do “homem com o mundo” e na tentativa de “controlá-lo para que se alcance certa neutralidade e o equilíbrio social”. A perspectiva ocidental percorreu um caminho da Filosofia para a Psicanálise e, posteriormente, no século XX, se tornou objeto também das psicologias (PRADO FILHO; MARTINS, 2007), ciência que se estabeleceu como tal na modernidade57, no final do século XIX, e que foi reconhecida a partir do momento que se apresentou em moldes que dialogam com o pensamento de um conhecimento mensurável, o experimentalismo.

Nesta etapa, traçaremos um percurso do conceito de subjetividade na ciência psicológica, que, na atualidade, vem se estabelecendo na Psicologia brasileira, em detrimento de discursos que primam por um sujeito unificado, universal, que compõe uma igualdade padronizada compatível com a modernidade. Lançaremos mão, como fio condutor desse percurso, do trabalho de Bernardes (2007), que mapeia, no âmbito da produção científica da Psicologia no Brasil, as nuances das alterações conceituais em compreensão com o modelo de

56 Não será trabalhada a relação sujeito x objeto. Na nossa análise, nos aproximamos de relação sujeito e objeto,

numa relação de coexistência, porém a apresentamos em oposição, tal como pensado na tradição.

57 O Conselho Federal de Psicologia lançou dois dicionários, um de cunho documental e outro mais histórico,

que versa sobre a trajetória da Psicologia no Brasil. É possível encontrar, nesses documentos, recortes do pensamento psicológico no Brasil, antes mesmo da profissão ser regulamentada no país, o que aconteceu em 1962. Dicionário da Psicologia Brasileira – Pioneiros (2001) e Dicionário Histórico de Instituições de

sociedade, ao fazer uma relação estreita com o mundo do trabalho, o que nos ajuda a desvelar as implicações de se pensar indivíduo, pessoa e sujeito58.

A inclusão do termo subjetividade nas pesquisas em Psicologia, em substituição à personalidade, no Brasil, acompanha as próprias mudanças sociais. Retomamos o estudo de Bernardes (2007), ao analisar o conceito de subjetividade em 291 artigos publicados entre 1986 e 2002, no periódico Psicologia, ciência e profissão (totalizando 40 edições), que destaca 161 trabalhos em que o conceito aparece e/ou tem relação com a investigação proposta, sendo que, em 110, o conceito aparece implícita ou explicitamente, e em 83 refere- se tanto à subjetividade como ao sujeito. Em sua análise, identifica que houve uma crescente produção de teórica nesse tema a partir dos anos 1990, que não está ligada a uma única corrente teórica da Psicologia (cognitiva, comportamental, humanista) e se apresenta como um “significante consensual para o fenômeno psicológico [...] interligado pela ideia de produção social do psiquismo” (BERNARDES, 2007, p. 117). O ponto de encontro é observado no modo de pensar a subjetividade como produção singular da diferença, e os sentidos, esses sim, têm se moldado a partir de cada abordagem teórica.

A autora nos chama atenção para a obscuridade da origem teórica apontada por Ferreira (2000), porém reconhece que o conceito de subjetividade tem sido cada vez mais usado como referência para os estudos psicológicos. Sua concepção dialoga com diversos campos de conhecimento, o que, em sua opinião, tende a contribuir para que profissionais da Psicologia estejam atentos às demandas dos sujeitos em sua coletividade. Em seus estudos, localiza que, desde o século XVII, pode se encontrar a denominação subjetividade, mas foi nas últimas décadas do século XX que se tornou mais amplamente utilizado, e, no país, tornou-se um suporte para um fazer politicamente engajado com o social. Foi a emergência do termo e, ao mesmo tempo, a substituição de outros (personalidade) que a instigou nessa investigação. Em sua pesquisa, a autora investiga as publicações sobre o tema da personalidade no Brasil, desde a década de 1970, e constata que existe uma queda significativa das publicações já na década de 1980. Nos anos 1990, quase desaparecem e, em contrapartida, emerge a concepção de subjetividade.

Os significantes que forjam “o indivíduo”, como é denominado o sujeito dos estudos da personalidade é, para Bernardes (2007), a expressão da subjetividade moderna, caracterizada centralmente pela racionalidade. A autora defende que o conceito de personalidade sustenta a ideia de padronização pela igualdade, o que pode ser identificado nos

resultados dos estudos que formularam os testes psicológicos projetivos no início do século XX, nos EUA, e que se tornaram instrumentos científicos em prol da seleção e da adaptação do indivíduo a partir de modelo de “pessoa humana”.

Ao revisar manuais de teorias da personalidade e analisar como organizam as teorias, as estruturas e os processos da personalidade em prol de estratégias de avaliação da personalidade nos testes projetivos, observa-se que, na realidade norte-americana, a concepção de indivíduo esteve articulada com um projeto político cultural para forjar um “eu americano [...] que convergisse na direção de um eu industrializado, urbanizado, um eu expressivo, adaptável e moralmente oprimido” (BERNARDES, 2007, p. 92), e conclui-se que as categorias das medidas da personalidade estavam à mercê do mercado. A influência dos testes psicológicos também chega ao Brasil, como evidenciado na seção 1.2. Ao encontrar a efervescência das teorias eugenistas, os testes são incorporados às políticas educacionais em prol da divisão de aptidões, o que demonstrando que, na realidade brasileira, isso estava a mercê do mercado, mas também do racismo, o que também contribuirá para uma prática profissional clínico-individual59. O indivíduo moderno, para se constituir como tal, se articula

com os valores e o ideal de nação (unidade) compartilhado pelo Estado:

Na modernidade, o homem é centro e fundamento de um mundo, o mundo da interioridade, de um eu interior que precisa consolidar-se para que, nas esferas públicas, possa exercer-se como sujeito pleno, unificado, soberano. Assim no tempo histórico da modernidade emerge a oposição público e privado, na dimensão privada aprofunda-se as condições de consolidação do eu interior (BERNARDES, 2007, p. 99).

Se a ideia de nação contribui para um Estado politicamente forte e regulado, para Bernardes (2007), na subjetividade, o efeito é um sujeito submetido, que vive uma falsa autonomia, e a Psicologia é uma ciência constituída e reconhecida a partir das “instituições modernas do Estado” e dos “pilares da normalização”. A autora afirma que há, por parte desta ciência, uma participação ativa na padronização da igualdade, no fornecimento de instrumentos de avaliação em prol de identificar “o modelo de homem demandado pelo mundo do trabalho (BERNARDES, 2007, p. 93).

Dois pensamentos têm destaque, segundo Bernandes (2007), e vão influenciar a mudança da concepção de sujeito em suas respectivas áreas de diálogo: o pensamento

59 Na descrição da Lei nº. 4.119/1963, a normativa regula a Psicologia como profissão, como atividade privativa

marxista (Sociologia) e o psicanalítico (psique), uma vez que ambos propõem uma cisão desse sujeito moderno, que compartilha da falsa ideia de “autogovernável”. O primeiro a partir da relação subjetividade/objetividade, com a ideia de que o sujeito que reflete sobre o que produz e as relações que estabelece com a mercadoria consegue constituir-se subjetivamente fora do que é esperado socialmente. Já a perspectiva psicanalítica freudiana rompe com a premissa da racionalidade e da autonomia do sujeito ao formular a teoria do inconsciente, uma instância psíquica, não acessível a consciência, que não é regida pela razão, não é unificada, mas sim dividida.

O descentramento da razão, que antes prevalecia para o sujeito moderno, passa então, a ser interrogado e, logo, as ideias de essencialidade e de identidade, perdem força. Para o sociólogo Stuart Hall (2011), a “crise da identidade” é própria da constituição de um sujeito pós-moderno. Ao interrogar as identidades culturais e as concepções do sujeito, nos fornece subsídios para a compreensão de como essa “transformação” da percepção sobre o sujeito vai modificando a relação que será estabelecida com ele. Para Hall (2011), o que foi definido como colapso da identidade moderna se dá no final do século XX, quando as composições sólidas do indivíduo, de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e de nacionalidade se fragmentam naquilo que podemos diz da experiência subjetiva do eu, sendo que essa mudança não é exatamente uma desagregação das identidades, mas produz deslocamento, um caráter próprio da modernidade, “onde as transformações são constantes, rápidas e permanentes, diferenças em comparação as sociedades tradicionais”.

Os pensamentos de Marx e Freud, como também de outros grandes produtores de críticas sociais, como Saussure, Foucault e as teorias feministas, são considerados, por Hall (2011), como produtores de rupturas com a estrutura social. A compreensão do sujeito “pós- moderno”, na segunda metade do século XX, se impõe na diferença, reivindica múltiplas identidades, que podem ser congruentes ou não, sendo recomendado pelo autor a utilização da terminologia de identificações. A ideia de um sujeito pós-moderno, fluido, constantemente mutável é incompatível com uma sociedade que nutre visões reducionistas, preconcebidas do ser no mundo, ao mesmo tempo que o cenário que viemos apresentando da estrutura social racial do Brasil, e sua reinvenção, nos coloca individualmente e no campo da produção de conhecimento a decodificar suas dinâmicas. Uma operação complexa que ancora o sujeito do século XXI (principalmente os não brancos), em problemáticas do século XVI.