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O espaço como um vetor das interações sociais

Capítulo 3. O espaço doméstico do trabalho

3.2 A dimensão ESPAÇO: da casa à fábrica ou ao escritório, do escritório à casa

3.2.2 O espaço como um vetor das interações sociais

De uma forma geral, quando admitido em uma empresa, o trabalhador passa por uma iniciação, que tem como objetivo não só mostrar-lhe o seu trabalho, mas integrá-lo no grupo ao qual irá pertencer, servindo também como uma avaliação de sua integração social (FISCHER, in CHANLAT, 2000, v. II). É nesse momento que o trabalhador toma posse do seu território na empresa, que pode marcar a sua posição, bem como facilitar a organização das suas atividades, podendo ainda servir de fundamento para o desenvolvimento da sua identidade pessoal e social. A organização espacial “estrutura mais ou menos diretamente ou fortemente as comunicações” (ibidem, p. 83).

A proximidade e a acessibilidade são condições ambientais que podem favorecer a interação, facilitar o desenvolvimento do sentimento de afiliação e influir no desempenho de um indivíduo ou de um grupo (HOMANS, apud FISCHER, in CHANLAT 2001, v. II).

De fato, como se viu, a facilidade de comunicação foi um dos fatores que levou à criação do escritório-paisagem. Objetivava-se, com a maior proximidade, integrar as pessoas, aproximá-las e, com isso, facilitar a organização das suas atividades. Ora, o trabalho em casa – o teletrabalho, work from home ou home office – significa um rompimento com essa concepção, pois, se de um lado propicia o recolhimento e a introspecção, necessários em determinadas atividades, por outro pode dificultar as comunicações e a interação social. Quando o indivíduo passa a desenvolver as suas

atividades profissionais em outro espaço, que, embora continue a ser um território primário, tira-o do convívio com os colegas e com o grupo, há uma perda. Assim pensam alguns depoentes, como Célio:

O que você perde e o que você ganha por trabalhar na empresa é o relacionamento. O fato de eu estar trabalhando com os colegas, de estar tratando de assuntos de uma forma que você faz parte do grupo.

E também Victor, que diz o seguinte sobre o que valorizava no trabalho exercido na empresa:

[Eu valorizava] a facilidade de comunicação, ter as pessoas do lado. Teve uma época em Campinas, a gente tinha aqueles gerentes do lado, então a gente conversava, tinha a secretária na frente, a gente conversava. Ás vezes a gente parecia aquele grupo de feirante: “Onde está tal coisa?” O outro gritava: “Guardei no arquivo”. Aquela coisa de feirante me dá saudade. Essa proximidade: você liga para a pessoa, ela não atende, você anda até a sala dela e conversa com ela.

O depoimento acima lembra o que diz SENNETT (2002, p. 275) sobre a comunidade: “Uma comunidade é também uma identidade coletiva. É uma maneira de dizer quem ‘nós’ somos”.

É um sentido de pertencimento a um grupo, de participação, como quer MASLOW, ou uma necessidade qualitativa de amizade, de convivência, como refere HELLER (apud DE MASI, 2003). A expressão da necessidade de convivência e o sentimento de havê-la perdido, ao trabalhar em casa, está explícita na fala de Victor, especialmente na frase “Aquela coisa de feirante me dá saudade”.

Também Danilo, outro teletrabalhador, diz que valorizava no trabalho no espaço da empresa: “As idéias que os outros tinham no grupo, estar vendo um diretor”. E

Flávio: “A comunicação e a participação nos processos” ; e ainda Aluísio: “O que eu valorizava era o contato com o pessoal mesmo”.

À exceção de um dos depoentes, todos os outros valorizam, no trabalho convencional, no espaço da empresa, o relacionamento pessoal, a facilidade de comunicação, a comunicação informal, os amigos, a troca de idéias do grupo, que enriquece os seus participantes, a participação no processo da empresa dia-a-dia, as redes de contato. Sentem falta do relacionamento pessoal “olho no olho”, de ter as pessoas do lado. “O informal é muito forte”, diz Célio. Aquele teletrabalhador (Lucas) cuja voz é discordante, diz que em casa não tem o desgaste da socialização e nem tem um colega chamando para tomar o cafezinho. Esse cafezinho, no entanto, enquanto permite a socialização, tem sabor de transgressão, de quebra de regras, de liberdade.

É interessante notar que as novas tecnologias, com o aumento da potência dos equipamentos, e a conseqüente miniaturização do material informático, estão invertendo todo um esforço anterior do início da industrialização, no sentido de juntar as pessoas num mesmo espaço, para daí obter maior interação social, que levaria à eficácia e à produtividade. Ao contrário, como ensina GASPARINI (in CHANLAT, 1996, v. III), as telecomunicações operam uma descontinuidade temporal, que permite e facilita que certas atividades possam ser exercidas em casa, em outro espaço que não aquele comum da fábrica ou do escritório.

Sendo o ser humano um animal social, é de se prever que, ao lado das vantagens apresentadas por essas inovações, vão aparecer desvantagens, entre elas o isolamento a que poderão ser levados aqueles que reunirem no mesmo local os espaços de trabalho e os de habitação, o que se percebe em algumas das falas anteriormente citadas.

No que diz respeito à criatividade, pode-se retomar aqui o pensamento de DEJOURS (in CHANLAT, 1996, v.I, p.171), quando diz que: “a transformação do sofrimento em criatividade passa por um espaço público na fábrica”, entendida esta como o local de trabalho. Assim, de acordo com o autor, toda vez que o espaço público tende a se fechar, a criatividade está ameaçada.

É outra, contudo, a direção que mostra a maioria dos depoimentos - a de trabalhadores que usufruem esse espaço privado com criatividade e dele se apropriam em seu benefício, como diz Rafael, um dos teletrabalhadores: “Você consegue se concentrar mais, se dedicar mais às situações, eu sinto que [trabalhar em casa] dá uma criatividade maior”.

É possível que isso se dê porque o espaço privado permite um maior controle e uma maior apropriação por parte do trabalhador, que lhe pode dar uma utilização específica, “uma afirmação de si“ sobre o lugar (FISCHER, in CHANLAT, 2001) . Esse uso do espaço de trabalho é demonstrado nos depoimentos a seguir: no primeiro, vê-se o uso subjetivo do espaço, de maneira a permitir que a criatividade aflore; no segundo, esse uso é mais amplo, envolvendo não somente o lugar do trabalho em si, mas todo o ambiente que o envolve, inclusive o externo, e que contribui para que a criatividade se desenvolva.

Segundo DE MASI (2000, p. 231), “A criatividade, está muito mais ligada à capacidade de acolher e de elaborar estímulos”. É o que ocorre com Flávio e Giovani:

[...] você consegue se concentrar melhor no que você está fazendo. Eu faço um relatório mais bonitinho aqui em casa do que no escritório, porque [lá] tem o telefone, um chamando, o outro também, mas aqui eu fecho a porta, desligo o telefone, cai na caixa postal, aí sim é possível eu criar melhor (Flavio) .

Eu sempre me considerei uma pessoa criativa, a diferença principal é que eu consigo aproveitar melhor a minha criatividade trabalhando em casa, eu consigo explorar melhor. Uma outra questão atípica é o ambiente que eu trabalho em casa, eu moro num condomínio que é cercado de árvores, flores e passarinhos, então eu não tenho problemas de ruídos, por exemplo (Giovani).

O trabalho em casa permite uma flexibilidade que não existe no espaço da empresa. As pessoas são diferentes, como diz DE MASI (2000 b, p. 229): “Algumas máquinas psíquicas produzem mais idéias ao amanhecer, outras, ao entardecer, algumas produzem continuamente, outras são intermitentes”. O autor diz, ainda, que a criatividade precisa de desafios e não de barreiras burocráticas, como o horário de trabalho. Isso é confirmado pelos exemplos abaixo:

[...] você consegue colocar no papel ou no computador a idéia no momento que ela surge, e quando você está restrito a um determinado horário, eu acho que a sua própria mentalidade, a sua cabeça, ela passa a querer trabalhar ou se sentir trabalhando dentro daquele espaço pré-definido. Ás vezes estou à noite jantando e pensando o que fazer ... vou lá e escrevo. Não que eu esteja trabalhando, mas estou criando uma oportunidade de negócio, principalmente agora neste projeto que eu preciso desta criatividade, então eu me sinto mais livre para pensar. Não tem aquele separação de terminou meu horário de trabalho e iniciou meu horário de descanso (Luís).

Acredito que, até certo ponto, você desenvolve a sua criatividade pelo fato de você estar trabalhando sozinho na maioria do tempo. Se você tem que fazer um relatório, você vai montar a seu jeito porque você não tem um colega do lado, não está no escritório com várias pessoas em que você possa pegar uma informação ou um exemplo. (...) acho que você tem que ser mais criativo, não só para criar trabalhos como tem

que ser criativo para fazer o balanceamento do seu trabalho também (André).

Entretanto, como diz DE MASI (2000 a, p. 259), as tecnologias informáticas anulam as distâncias e permitem ao trabalhador exercer uma certa ubiqüidade, já que,

diz ele: “a matéria-prima do trabalho intelectualizado – a informação – é suscetível, por sua natureza, à máxima transferência em tempo real”. De fato, o nome dado pela empresa Alpha a essa nova modalidade de trabalho é work from home (trabalho de casa), demonstrando que o trabalhador, embora estando na sua casa, está virtualmente na empresa, pelo acesso que ele tem aos seus sistemas de informação e aos colegas, gestores e clientes, através das telecomunicações.

Percebe-se, ainda, nos depoimentos dos sujeitos acima que o paradigma cultural, segundo o qual só podemos trabalhar e pensar em certos lugares ou em horários estabelecidos, está mudando. O teletrabalhador pode trabalhar em casa, no shopping, no jardim, na piscina e até na empresa.

Retomando o aspecto da criatividade, verifica-se que há casos em que essa competência deriva da necessidade de se acomodar a situação em casa. Veja-se o exemplo de quem tem uma criança pequena para cuidar - ou a pessoa se torna criativa ou ela não consegue exercer o seu trabalho.

[...] no meu caso em especial, se eu tivesse trabalhando num escritório com um bebê, a minha vida seria mais difícil. Então eu aprendi a conciliar as coisas e me tornei mais criativa. Você não tem idéia do que eu faço num dia, entre a minha vida pessoal e o trabalho. Um homem não faz o que eu faço, porque eles não têm idéia do que é ser mãe, dona de casa e trabalhar fora. No escritório você é mais podada (Júlia).

Apreende-se da fala de Julia que ela sente que se tornou criativa pela necessidade de acomodar a sua vida. Por outro lado, sente que tem mais autonomia em casa que no escritório, o que pode também levar a uma maior criatividade.

Entretanto, em depoimento anterior31, ao falar de mudanças no cotidiano, ela cita as dificuldades inerentes à perda do ponto de apoio que o escritório da empresa representava, a falta de ter com quem falar, com quem se atualizar, agora que lhe falta esse ponto de apoio. Pode-se dizer que, a despeito de se sentir mais criativa no seu escritório em casa, não só no seu trabalho, mas na acomodação dos seus diversos papéis de esposa, mãe, dona-de-casa e teletrabalhadora, a socialização e a integração com as amigas, com os antigos colegas do escritório lhe fazem falta. Mas o seu depoimento diz que é melhor trabalhar em casa porque, tendo um bebê em casa, no escritório seria muito mais difícil. Há aqui sinais inequívocos da ambigüidade que pode permear os sentimentos que se relacionam ao teletrabalho.

Pode-se também perceber no depoimento de Julia um outro aspecto, aquele ligado ao uso do tempo. A frase: “Você não tem idéia do que eu faço num dia, entre a minha vida pessoal e o trabalho” sugere o uso subjetivo do tempo pelo teletrabalhador no espaço doméstico do trabalho, o que será abordado a seguir.