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2. A ESTRUTURA DAS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS

2.2 A TIPICIDADE

2.2.3 O tipo subjetivo

2.2.3.1 O fundamento constitucional do princípio da

De acordo com o magistério de René Ariel DOTTI, “o princípio da culpabilidade é extraído da norma constitucional que proclama a dignidade da pessoa humana como um dos primeiros fundamentos da República (art. 1o., III)”.355 Corroborando esse pensamento, José CEREZO MIR pondera que

“A imposição de uma pena sem culpabilidade, ou se a medida da pena excede a medida da culpabilidade, supõe a utilização do ser humano como um mero instrumento para a consecução de fins sociais, neste caso preventivos, o que implica um grave atentado a sua dignidade”.356

No mesmo sentido, Carlos Arturo GÓMEZ PAVAJEAU, assevera que

“As constituições políticas modernas consagram, como respeito máximo pelo indivíduo quando se trata de reprovar sua responsabilidade pessoal, o princípio da culpabilidade. Algumas o contemplam de maneira explícita, outras o fazem de maneira implícita, visto que o mesmo deriva do princípio fundante do ordenamento jurídico ‘dignidade da pessoa’”.357

Embora reconheça que tal orientação é majoritária na Alemanha, Claus ROXIN manifesta dúvidas sobre a relação entre a dignidade da pessoa humana e a exigência de culpabilidade, salientando que alguns países estrangeiros que prezam pela pessoa humana não estabeleceram legalmente o princípio da culpabilidade.358

Conquanto afirme que a Constituição do seu país não proclama esse princípio em parte alguma, Alejandro NIETO também reconhece que a jurisprudência e a doutrina espanholas exigem a culpabilidade. “Trata-se, portanto, de uma questão de fé, que é crer no que não lemos com nossos próprios olhos”.359 Para NIETO, a prova de que a culpabilidade não é um elemento essencial do Estado de Direito é que a própria Constituição “estabeleceu a responsabilidade objetiva das Administrações

355 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. 4a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.

143.

356 CEREZO MIR, José. Derecho Penal: parte general. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.

851. Tradução nossa.

357 GÓMEZ PAVAJEAU, Carlos Arturo. Fundamentos del Derecho Disciplinário Colombiano.

Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 152. Tradução nossa.

358 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria de delito. 2a. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 100.

359 NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4a. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 376.

Tradução nossa.

Públicas para não deixar indefesos os particulares ante a agressividade de organizações gigantescas e de labirínticas tomadas de decisões”.360

Ocorre que a responsabilidade objetiva do Estado a que se refere o autor espanhol, a qual também incide sobre os particulares em determinadas ocasiões, possui feição indenizatória, sendo, pois, impertinente sua invocação em sede de direito punitivo. Isso porque os fins são distintos. A indenização tem uma finalidade reparatória, que é alcançada com o pagamento de uma indenização por quem causou um prejuízo, ainda que não tenha concorrido com intenção ou negligência. Já o fim da pena, como se verá com mais detalhes oportunamente, “é a prevenção das condutas que põem em perigo ou lesionam bens jurídicos”.361 Não se previne infrações sancionando quem não tenha de nenhum modo contribuído para o resultado contrário ao direito. É o que destaca Eduardo Fortunato BIM:

“Somente aquilo que depende da vontade do homem pode ser reprovável; não há como se punir alguém que não sabia o que estava fazendo ou, se soubesse, não poderia se comportar de modo diverso. A finalidade repressiva da pena existe para educar a todos e o infrator. Como educar alguém que não sabia que estava infringindo a legislação administrativa ou se sabia, não podia se comportar de modo diverso por não ser exigível pela inevitabilidade da situação?”.362

Confira-se também o pensamento de Jeremy BENTHAM, acerca “das penas que não se devem impor”, porque delas “não se tira proveito”:

“Chamo de ineficazes as penas que não produzem efeitos sobre a vontade e que por esta razão não prestam para atalhar semelhantes crimes. As penas são ineficazes quando se aplicam a um réu que não podia conhecer a lei, que obrou sem intenção, que fêz mal sem saber que o fazia, numa suposição errônea, ou por um constrangimento invencível”.363

Nesse sentido, entende-se que a responsabilização objetiva do infrator ofende também o princípio do devido processo legal, em sua acepção material, pela falta de

360 NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4a. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 376.

Tradução nossa.

361 DE PALMA DEL TESO, Ángeles. El principio de culpabilidade en el derecho administrativo sancionador. Madri: Tecnos, 1996. p. 54. Tradução nossa.

362 BIM, Eduardo Fortunato. O mito da responsabilidade objetiva no Direito Ambiental Sancionador. Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, vol. 5, p. 807 et seq., Mar. 2011.

363 BENTHAM, Jeremy. Teoria das Penas Legais. São Paulo: Livraria Logos, s.d.. p.45.

proporcionalidade. Como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do

‘substantive due processo of law’ (CF, art. 5o., LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade dos atos estatais”.364

Um dos conteúdos parciais do princípio da proporcionalidade é a adequação, que, segundo Paulo BONAVIDES, demanda a verificação sobre se determinada medida representa o meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público.365 Como a punição de quem não agiu com dolo ou culpa não atende a finalidade preventiva a que se destina, conclui-se que ela é contrária ao princípio da proporcionalidade.

A culpabilidade também é um corolário do princípio da segurança jurídica, implicitamente previsto no texto constitucional como subprincípio do Estado de Direito (CF, art. 1o.).366 É o que assevera Ángeles DE PALMA DEL TESO, que, além de enfatizar que o princípio da dignidade da pessoa humana restaria vulnerado “ao sancionar um cidadão que não transgrediu voluntariamente a norma ou tenha atuado com a diligência devida”, complementa:

“O Direito punitivo não pode entrar em jogo quando as pessoas se conduzem com respeito ao Ordenamento, pois isso seria contrario a segurança jurídica que nossa Constituição garante. Se se castiga alguém por um feito não querido nem imprudente ou por um feito alheio se vulneram princípios básicos em um Estado Democrático”.367

Por fim, Edilson Pereira NOBRE JUNIOR assinala que o princípio da culpabilidade deriva da individualização da pena (CF, art. 5o, XLVI), que força “o seu aplicador a perscrutar o grau de culpa do autor da falta”.368 Diante do exposto, pode-se

364 STF, 2a. Turma, RE no. 200.844 AgR/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ. 16/08/2002.

365 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 396.

366 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.

Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 474.

367 DE PALMA DEL TESO, Ángeles. El principio de culpabilidade en el derecho administrativo sancionador. Madri: Tecnos, 1996. p. 54. Tradução nossa.

368 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. Sanções Administrativas e Princípios de Direito Penal.

Revista dos Tribunais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, vol. 775, p. 449 et seq., Mai. 2000.

No mesmo sentido: SCARPONI, Rita Maria. Direito Administrativo Sancionador: Princípio da Responsabilidade Subjetiva e Correlatos. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São

afirmar que o princípio da culpabilidade tem assento constitucional, derivando dos princípios do Estado Democrático de Direito, da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da proporcionalidade e da individualização da pena.