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3 A DELIBERAÇÃO PÚBLICA NO LIBERALISMO DE JOHN RAWLS

3.3 O REPUBLICANISMO E O NEORREPUBLICANISMO

3.3.4 O ideal político da não dominação

Primeiramente, é preciso ressaltar que partidários da não interferência e da não dominação convergem quanto à ideia das pessoas não livres perante a inferência e a dominação; inversamente, a ausência destas constitui condição de liberdade. A identificação específica entre liberdade e não interferência é ancorada em Hobbes e difundida por meio de Bentham, sob o argumento de que a regularização da liberdade pelo soberano resulta em sua negação. Com efeito, leis que criam a liberdade a destroem na mesma proporção.

Pettit combina, em princípio, as operações da não interferência em defesa das liberdades, isto é, recusa, como os liberais, os estorvos e os arbítrios possíveis sobre as pessoas. Porém, seu ideal de não dominação destaca-se daquela liberdade liberalista. A não dominação é ideal, metron e condição de vida social isenta de subjugação, associada às

99 Pettit (1999, p. 89) faz alusão ao lamento de Mary Wollstonecraft (1759-1797) em A Vindication of the Rights

of Woman: with strictures on political and moral subjects (1792) sobre a submissão das mulheres: “É vão esperar virtude das mulheres, enquanto em um ou outro grau não sejam independentes do homem; e é vão esperar delas forças dos afetos naturais, que lhe faria boas mulheres e boas mães. Enquanto dependentes de seus maridos serão astutas, covardes e egoístas.” Sabe-se que o livro, um dos pioneiros do feminismo, propôs-se a criticar os ideários tanto da Revolução Francesa, por negar participação política das mulheres, quanto do Iluminismo cujos filósofos, por critérios biológicos e físicos, teriam definido papéis e funções sociais em questão de gênero, reduzindo, portanto, as mulheres ao âmbito privado. A primeira edição, inclusive, a autora dedicou a Telleyrand - estadista francês averso à emancipação das mulheres.

instituições como o Estado e o direito. Quando, então, a lei sincroniza-se aos interesses comuns do povo, nem é interferência arbitrária, nem negação da liberdade.

Contudo, a não interferência precisa ser qualificada, segundo ele, por três elementos da liberdade como não dominação: elisão das interferências de caráter intencional e arbitrário; redução das interferências estratégicas, ardilosas, sarcásticas etc. – isto é, esquema de insegurança intersubjetiva – e assentimento mútuo do conceito de não dominação, capaz de corrigir qualquer postura de submissão, medo, timidez etc. “Promover a liberdade como não dominação de alguém tem significar reduzir [...] subordinação, [...] reduzir a incerteza com que tem que viver. Depois de tudo, incrementar sua não dominação [...] significa reduzir o acesso dos outros à interferência.” (PETTIT, 1999, p. 123). Há que se sublinhar que o alcance e o peso político da não dominação precisam ser firmados, ou melhor, regrados na constitucionalidade; ou seja, não é uma obra descentralizada.

“Pessimismo hobbesiano” à parte, a orientação jurídica não arbitrária previne o possível jogo comparativo de forças e o conflito das arbitrariedades recíprocas. Habermas tem mostrado nos últimos tempos – como será tratado no próximo capítulo – que a consecução da democracia, em particular, à prática da deliberação pública carece do suporte do direito; mas isso não insinua, segundo Pettit, legislação com poder concêntrico ou seleto. Ao contrário, o autor sustenta que seu republicanismo, diferente daquele tradicional, é moderno e inclusivo, poder-se-ia dizer até com certa proximidade, neste aspecto, à proposição liberal rawlsiana do fato do pluralismo e do consenso sobreposto; concebe-se, pois, a não dominação como ideal supremo num contexto de sociedades desenvolvidas, multiculturais e com distintas concepções de bem. Não obstante, convém ressalvar que esse ideal republicano à crítica comunitarista, não é neutro e nem capaz de transcender às particularidades. Em geral, considerado por demais tênue, portanto, incapaz de orientar a política e a sociedade. O teor irônico da réplica de Pettit (1999, p. 133), pode ser a seguinte: “quem ingresse na vida de uma seita que humilha seus membros diante de um guru controlador, não verá grande coisa num ideal como não dominação; quem ingresse na vida de uma sociedade pluralista contemporânea, verá muito.”

Contrapondo-se a esse “ceticismo” ou desconfiança comunitarista, Pettit afirma o auspicioso esforço da tradição republicana, assumindo, nessa direção, postura consequencialista. Assim como Maquiavel, frisa ele, recomendou o poderio do príncipe em favor da não dominação ante a incapacidade popular de aceitar ou suportar um direito apropriado, “é possível que a causa da maximização da não dominação exija dar ao parlamento poderes especiais e irrestritos e algum âmbito [...], ou dar aos juízes, para

determinados tipos de delitos, uma boa margem de discricionariedade em suas sentenças.” (PETTIT, 2009, p. 139). Entretanto, esses desvios constitucionais, se necessários, só se justificam para realizar ou preservar a liberdade como não dominação.

Na teoria política republicana neorromana, a liberdade tem valor de um bem per si que o Estado deveria proporcionar aos cidadãos e, associada à não dominação, constitui-se em ideal político persuasivo. Porém, há na estrutura política duas interfaces ou formas respectivamente opostas de poder: o dominium ou privado, pelo qual agentes individuais ou coletivos podem afetar uns aos outros, e o imperium do estado, ou poder público. Este, mais do que aquele, ameaça mais seriamente a liberdade como não dominação.

O autor não desconhece que as prerrogativas da força legítima territorial e da regulamentação burocrático-administrativa e fiscal tornam o Estado coercitivo, o que acarreta, consequentemente ameaça de interferência na vida dos cidadãos. O problema é que, além da espreita, a coerção transfigura-se em arbitrariedade real quando há desconsideração estatal sobre os interesses comuns assumidos pelos cidadãos.100 Como diz o autor (2009, p. 216): “o

imperium do Estado é poderoso e ubíquo e medidas serão necessárias se ele se tornar um poder de liberdade-amigável.” Limitar essas formas de poder, em especial a força do

imperium, é uma questão para a filosofia republicana, pois um Estado republicano precisa adotar, portanto, formas sociais de vida pelas quais os indivíduos compartilham o destemor e a insubordinação intersubjetiva, ou, inversamente, deve ser capaz de bloquear relações de dependência ou vulnerabilidade comuns.

Chegou-se ao ponto em que impõe-se a seguinte questão: como impedir que o Estado e suas leis, em vez de proteger a liberdade, tornem-se agentes de dominação e de restrição da liberdade dos cidadãos? Ou, ainda, como impedir que um agente político representante do povo torne-se, ele mesmo, impulsor ou conivente com arbitrariedades? Conforme Pettit, o freno para esse tipo de ofensiva política é a voz101 da democratização: “Acredito que se

adequadamente entendida, a democratização é a única forma viável de se proteger contra o fato de o Estado ser arbitrário e dominador de uma maneira que ameaça os seus cidadãos”. (PETTIT, 1997, p. 216). Objetivamente, esta é desdobrada na democracia bidimensional: eleitoral e contestatória. Trata-se, a seguir, desse segundo ponto mais geral.

100 Pettit (2007, p. 217) nota que, à definição de interesses comuns, subjaz um espírito contratualista rawlsiano, admitido por Scanlon, Barry etc. Em comum, tem-se a ideia de interesses particulares partilhados por cada pessoa em uma comunidade. Pettit frisa, então, dois pressupostos: a cooperação que monitora as distinções racionais entre o que é o que não é relevante e iniciativas optadas que têm forças razoáveis fortes ante os rivais. No fundo, trata-se de fins distintos para grupos distintos, mas sem conotação de absolutidade.

101A ideia de voz como uma das opções de vida política, Pettit capta do economista-político alemão, exilado nos Estados Unidos, Albert Hirschman.