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4 AS TEORIAS DELIBERATIVISTAS DE FISHKIN, BOHMAN, COHEN

4.4 COHEN E O PROCEDIMENTO DELIBERATIVO IDEAL

4.5.5 O problema da neutralidade

Habermas (1997b, p. 35), levando em conta a concepção liberal de neutralidade em que “as questões relativas à vida boa cedem lugar às questões de justiça” (primado da justiça sobre o bom), reporta-se à tese de Ackerman sobre a postura de neutralidade do governante em relação às concepções de vida boa: “Não é boa a razão que leva o detentor do poder a

afirmar [...] que sua concepção de bem é melhor que a de todos os seus concidadãos...”

(ACKERMAN apud HABERMAS, 1997b, p. 34, grifo da tradução). Em outro lugar, afirma o seguinte:

When you and I learn that we disagree about one or another dimension of the moral truth, we should not search for some common value that will trump this disagreement; nor should we try to translate it into some putatively neutral

framework; nor should we seek to transcend it by talking about how some unearthly creature might resolve it. We should simply say nothing at all about this disagreement and put the moral ideals that divide us off the conversational agenda of the liberal state139. (ACKERMAN, 1989, p. 16).

Numa espécie de tendência razoável, Larmore defende a possibilidade da argumentação neutra, desde que, sob orientação da tolerância, os dialogantes estrategicamente abandonem suas convicções mais renitentes em favor das questões mais gerais que resultam em acordos viáveis. No entanto, os liberais recusam a maximização da neutralidade em discussões políticas, isto numa afronta à tese feminista de Fraser (apud Habermas, 1997b, p. 39), segundo a qual qualquer tema político pode ingressar na discussão pública: “somente os

participantes podem decidir o que é de interesse comum de todos.” (grifo da tradução).

Em defesa do procedimentalismo democrático, o filósofo alemão (1997b, p. 35) responde aos liberais que, “se a neutralidade incluísse também a exclusão de questões éticas do discurso político em geral, este perderia sua força de transformação racional de enfoque pré-políticos, de interpretações de necessidades e de orientações valorativas.” Quanto à desconfiança comunitarista da neutralidade excludente, ele apresenta um argumento em favor da cooperação discursiva compatível com o princípio da neutralidade:

A passagem da constatação de um dissenso ético para um nível superior de abstração do discurso da justiça, requerida pelos “diálogos neutros”, afim de examinar, na base do reconhecimento desse dissenso, o que é do interesse de todos os participantes, se coloca então como um caso especial de uma regra geral de argumentação. (HABERMAS, 1997b, p. 39)

Habermas chama atenção que limites impostos de processos discursivos destacam-se daqueles cujas questões temáticas são abordadas nesses discursos. Com efeito, introduzir ou tematizar, por exemplo, a questão da orientação sexual dos jovens não implica intromissão na vida privada das famílias. Assuntos privados podem ser genericamente discutidos em procedimentos discursivos, sem que se afete o direito natural da esfera íntima que deve ser protegido: “Todos os assuntos a serem regulados pela política têm que ser discutidos publicamente; porém, nem tudo o que merece ser objeto de uma discussão pública é levado por uma regulação política.” (HABERMAS, 1997b, p. 40). Isso quer dizer que, nas democracias contemporâneas, o sistema dos direitos exige consideração equânime às esferas públicas e privadas, haja vista que elas são cooriginárias e interdependentes. Além disso,

139“Quando você e eu aprendemos que discordamos sobre uma ou outra dimensão da verdade moral, não devemos procurar algum valor comum que venha a superar esse desacordo; nem devemos tentar traduzi-lo em algum quadro supostamente neutro; nem devemos procurar transcendê-la falando sobre como alguns uma criatura sobrenatural poderia resolvê-la. Devemos simplesmente não dizer nada sobre esse desacordo e colocar os ideais morais que nos dividem fora da agenda conversacional do estado liberal”.

tematizações públicas relativas ao bem comum não implicam interferência sobre competências e responsabilidades já assumidas, ou seja, na política deliberativa, a formação de opinião e vontade públicas compatibiliza o informal e o institucionalizado.

E, por fim, como, por natureza, na esfera pública, os fluxos comunicacionais não são sistemicamente regulados, a emergência de determinadas demandas ou interesses precisa ser convincente à opinião pública para que, então, estas se tornem matérias de pauta política. Nas palavras de Habermas (p. 41), “somente após uma ‘luta por reconhecimento’ desencadeado publicamente, os interesses questionados podem ser tomados pelas instâncias políticas responsáveis, introduzidos nas agendas parlamentares, discutidas e, eventualmente, elaboradas na forma de propostas e decisões impositivas.”

É nesse sentido, nessa concepção, que se trafega para o próximo capítulo. A democracia de Habermas se desconecta do Estado de direito liberal, modelada pela vocação dos empreendimentos individualistas e dos sistêmicos acordos contratuais, em outras palavras, pela lógica mercantilista e pela consequente despolitização dos cidadãos por outro lado, distancia-se da sobrecarga civil-republicana da inserção política dos cidadãos e, por isso, há interpretação do parlamento como “corporação” ou grêmio que debate. Ora, as casas parlamentares são espaços de debates e decisões essencialmente interligadas à sociedade civil e a suas esferas públicas democráticas. Como afirma Habermas,

O fluxo comunicacional que serpeia entre a formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente, e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação. (HABERMAS, 1997b, p. 22).

Assim, o poder comunicativo por si não exerce dominação, mas pode, a partir de seu poder incisivo, interferir nos direcionamentos dos poderes políticos, por meio das influências da sociedade civil organizada. Ou melhor: possibilita compreender que, mais do que influenciar, as organizações civis podem deliberar sobre projetos e políticas públicas decisivas no âmbito das correlações institucionais por meio dos procedimentos discursivos. E o orçamento participativo – conteúdo abordado a seguir – no exemplo de Porto Alegre, é interpretado, portanto, como formulação de deliberação pública.

5 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE E A DEMOCRACIA