• Nenhum resultado encontrado

3 A DELIBERAÇÃO PÚBLICA NO LIBERALISMO DE JOHN RAWLS

3.1 RAWLS: A JUSTIÇA COMO EQUIDADE E A CONCEPÇÃO POLÍTICA

3.1.1 A recusa propositiva ao utilitarismo

Na medida de um espaço conciso, pode-se afirmar, em primeiro lugar, que o intuicionismo44 enquanto teoria moral assegura uma ideia de intuição enquanto forma de

assimilar uma situação moral. A tese básica informa que a resolução moral para escolha, deliberação e ação assenta-se na intuição. Assim, concebe-se que na teoria moral, princípios de justiça embasam-se em julgamentos morais considerados evidentes e suficientes por si mesmos.45 O próprio Rawls (1997) destaca quatro caracteres básicos associados

intuicionismo: a) os juízos morais corretos não dependem de valores morais das atividades intelectivas e morais; b) o conhecimento teórico-moral deriva de percepção e intuição; c) importa não a complexidade da pessoa, mas que esta seja capaz de conhecimento; e d) verdades morais apartam-se de valores (morais).

Neste sentido, Gargarella (2008, p. 3) frisa que a orientação de fundo intuicionista gera um problema de decisão, porque “o intuicionismo não nos oferece uma boa orientação para distinguir intuições corretas de incorretas, nem distinguir [...] intuição de uma mera impressão ou palpite”. Por conseguinte, a pluralidade conflitiva de princípios morais e a ausência de método objetivo para uma escolha do juízo sensato seriam embaraços decorrentes.

No Liberalismo Político (1997), a 3ª conferência sobre “O Construtivismo Político,” propõe-se, em contrapartida, sublinhar a interligação entre o fato do pluralismo razoável e uma sociedade democrática em que se assegure a possiblidade de um consenso sobreposto em relação aos valores político-democráticos fundamentais.

É por meio do construtivismo que o filósofo estadunidense pode contrapor-se aos intuicionistas, mediante os seguintes argumentos respectivos: os princípios da justiça política são construídos por cidadãos racionais e razoáveis; pessoa define-se no seio da socialidade, em que se constroem os princípios de justiça; admite-se a ideia do razoável aplicável a princípios, juízos, instituições, pessoas etc., possibilitando-se o consenso sobreposto – um

44 Segundo Brian Barry (1995, p. 280-281), considerando que o intuicionismo apreende uma realidade moral, ele pode ser formal e substancial. Na primeira forma, “podemos assentir racionalmente as proposições que estabelecem exigências formais que devem ser satisfeitas por qualquer resultado admissível.” Este, afirma Barry, é o típico método da escolha social do paradigma de Kenneth Arrow (Coisas Sociais e Valores Individuais), pelo qual “algumas restrições aparentemente inócuas acerca da agregação de preferências em um ordenamento único não podem ser satisfeitas simultaneamente.” Na segunda forma (substancial, geral), a essência é que, “na ausência de alguma reclamação especial, a divisão de um recurso escasso seria a de quantidades iguais a cada um dos demandantes.”

45De modo elementar, para Frankena (1963), o intuicionismo é a “teoria moral que afirma que os valores morais e princípios básicos são intuitivos ou evidentes por si mesmos, prescindindo de uma justificação lógica ou psicológica.” (DI NAPOLI, 2012, p. 86). Entre os intuicionistas hodiernos, estão: Moore, Ross, Williams, Gowans e Audi, cuja preocupação comum gira em torno dos chamados dilemas morais – sejam eles tipificados como solúvel (aparente), insolúvel (verdadeiro) ou legítimo.

consenso, portanto, mais rico que qualquer concepção restrita particular do bem. Enfim, na concepção do construtivismo político, certifica-se um juízo “se ele radicar num procedimento de construção razoável e racional, quando esse procedimento é corretamente formulado e seguido.” (RAWLS, 1997, p. 110).

No mesmo sentido, o construtivismo político distingue-se daquele kantiano. Destacam-se três de quatro motivos. Primeiro, porque a autonomia reguladora integral da vida é incompatível com a ideia da justificação pública rawlsiana interessada em consenso mínimo num contexto democrático-liberal pluralista; o segundo, o idealismo transcendental metafísico não apoia concepções normativas de pessoa (sensos de bem e justiça) e sociedade (cooperação equitativa); e, terceiro lugar, em vez da unidade racional coerente teórico-prática, o construtivismo de Rawls postula à justiça justificação pública ante o pluralismo razoável.

Contudo, Rawls tem a sensatez coerente em salientar que o foco político principal do construtivismo não prioriza estereotipar genuinidade entre estes ou aqueles valores políticos decorrentes, numa sociedade democrática entre cidadãos livres e iguais, nem hostilizar algum fundamento metafísico de alguma doutrina abrangente; caso contrário, o construtivismo não alçaria um consenso sobreposto perante doutrinas abrangentes razoáveis, haja vista que, a partir delas, emergem, naturalmente, em regimes democráticos, perspectivas axiológicas divergentes. O que interessa é lograr um acordo relevante que alcance um sistema social equitativo de cooperação e os cidadãos racionais e razoáveis, livres e iguais, na expectativa, portanto, que o consenso envolva princípios e valores políticos inerentes à concepção de justiça como equidade aplicada à estrutura social básica. Nas palavras de Rawls (2000, p. 173), “para uma concepção política razoável e viável, não é preciso mais que uma base pública de acordo em relação aos princípios da razão prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa.”

Quanto ao utilitarismo, o fundamento principal declara “que o ato ou procedimento moralmente correto é aquele que produz a maior felicidade para os membros da sociedade” (KYMLICKA, 2006, p. 11).46 Bentham e Mill equiparam a justiça à felicidade,47 e,

46 Kymlicka (2006) destaca quatro posições entre os utilitaristas quanto à correlação hedonismo e bem-estar humano: a) a sensação do prazer é o essencial bem humano; b) coisas valiosas não se reduzem ao estado mental da felicidade; c) a utilidade traduz-se em satisfação de preferências; e d) informações completas embasam juízos corretos que produzem satisfações razoáveis.

47 Em Anachical Fallacies (1795), Bentham acusa de débeis, filosófica e logicamente, os argumentos jusnaturalistas de limitação do poder sobre direitos individuais naturais e invioláveis – para ele, “absurda e miserável bobagem!” Em resposta, propôs o princípio da utilidade. Na definição dele (1984, p. 4), “o termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade...” E, de forma similar, para Mill (2005, p. 48), “o credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na

inversamente, a infelicidade (desprazer ou sofrimento) à injustiça em termos individuais ou coletivos. Rawls, aliás, faz o seguinte comentário crítico sobre a calculabilidade utilitária que ele denota em Henry Sidgwick48: “a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto,

justa quando suas principais instituições estão organizadas de modo a alcançar o maior saldo líquido de satisfação, calculado com base na satisfação de todos os indivíduos49 que a ela

pertencem” (RAWLS, 2008, p. 27).

Dois atrativos moral-políticos do utilitarismo, realçados por Kymlicka (2006), podem são a independência em relação a fontes divinas ou metafísicas e o consequencialismo, isto é, um bem identificável ou não de um ato ou procedimento. Aparentemente, o consequencialismo parece ser uma prática razoável e comum, conforme Gargarella (2008, p. 4-5), pois “agimos de algum modo ‘consequencialista’ quando [...] examinamos o modo como tal ação contribui para a obtenção de um certo estado de coisas que consideramos intrinsecamente bom.” Por exemplo, parece plausível que alguém admita hoje algum tipo de sacrifício ou dor em prol de vantagens futuras. Além disso, outro ponto a favor do utilitarismo, conforme Gargarella seria que, em vez de prejulgar escolhas e desejos “o utilitarismo [...] sugere considerar as preferências de cada um dos afetados [...]” desde que, ante as possiblidades, responda-se à pergunta: qual proposta satisfaz mais interesses?50 Se se

admitem vantagens como essas, tende-se, consequentemente, a enxergar o utilitarismo como uma teoria moral-política plausível.

medida em que tendem a produzir' o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer”. Embora Mill, frisa Trindade (2005, p. 100), fosse crítico da quantificação de prazer benthaminiana, propôs a hierarquização qualitativa: “O homem diferencia-se do gato (ou de qualquer outro animal) porque sua felicidade pode ser aferida por graus de qualidade. Felicidade não é apenas satisfação”. Para Sidgwick (apud NAKAI, 2007, p. 4), há contradição nesse argumento de Mill: “é difícil de ver em que sentido um homem que de dois prazeres alternativos escolhe o menos agradável no terreno de sua superioridade em qualidade, para então tomá-lo como 'maior' felicidade ou de prazer, como seu padrão de preferência.”

48 Autor prolífero da época vitoriana, cuja obra principal, Métodos da Ética (1874), foi decisiva sobre o desenvolvimento geral da moral distinta da religião. Com Sidgwick, o utilitarismo inglês tornou-se uma doutrina acadêmica respeitável. Num movimento crítico-comparativo, ele tentou conciliar “o egoísmo psicológico” (individualismo) ao princípio da “benevolência racional” (bem maximizado) e, por fim, admite o prazer como argumento consistente do utilitarismo.

49Nakai (2007), comentando Os Métodos, observa que Sidgwick, próximo a Mill, critica o intuicionismo dogmático (virtudes particulares, cânones religiosos, costumes arbitrários) e admite o consequencialismo hedonista do utilitarismo, pelo qual o comportamento racional é o que prioriza maximização calculável da felicidade do agente.

50 Gargarella (2008) chama atenção que autores como Dworkin, advogam o igualitarismo como distintivo principal do Utilitarismo. Em tese, no conflito de interesses a equalização de preferências proporciona o critério da maximização do bem-estar majoritário, à revelia do conteúdo e status do propositor. Por esse princípio e parafraseando o exemplo de Gargarella, considere-se que numa dada situação, a escolha majoritária por saneamento básico sobrepõe-se à preferência de uma minoria (mais rica) por um estádio poliesportivo. Então, o esquema: utilitarismo →igualitarismo → bem-estar majoritário, parece justo.

Rawls, entretanto, rechaça a alegada plausibilidade teleológica dos argumentos utilitaristas51. O teor da recusa passa pela seguinte ponderação (RAWLS, 2008, p. 32): “A

maneira mais natural, então, de chegar ao utilitarismo [...] é adotar para toda sociedade o princípio da escolha racional para um único ser humano”. Com efeito, três refutações imediatas são as seguintes: em primeiro lugar, justiça como equidade recusa a perda de liberdade para alguns em nome de um bem maior compartilhado por todos. Destarte, liberdades fundamentais e direitos legalmente justos são inquestionáveis e imunes a negociações e cálculos sobre interesses. Em segundo lugar, os princípios de escolha social, identificados com princípios de justiça, derivam de um acordo original contratualista distinguem em essência, portanto, de escolhas individualistas ou corporativistas. Essa projeção individual ou grupal (algum prejuízo ou dor agora para vantagens futuras) à universalidade social é um aspecto inadmissível. Não parece justo sacrificar uma parte da sociedade em benefício das demais, nem as gerações atuais em prol das futuras, acentua Rawls. O mais agravante nessa “operação ilegítima” privatista na crítica rawlsiana, conforme comentário de Gargarella (2008, p. 8), é o desapreço à independência e à dissociabilidade das pessoas, isto é, “o fato de que cada indivíduo deve ser respeitado como um ser autônomo, distinto dos demais, e tão digno quanto eles.” E em terceiro lugar, a justiça com equidade em vez de teleológica, como o utilitarismo, é deontológica, pois “não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como aquilo que maximiza o bem.”52

(RAWLS, 2008, p. 36). Nesse aspecto, ao contrário do utilitarismo, em Rawls, o justo sobrepõe-se ao bem: primeiro, na inviolabilidade da pessoa (tal como descrito em TJ §1). A respeito Werle (2010, p. 34), comenta que “a autonomia dos indivíduos não pode ser violada por considerações coletivas de bem-estar social, do bem comum ou outro fim coletivo.” Em segundo lugar, no princípio de neutralidade de justificação do Estado perante o fato do

pluralismo, pelo qual veda-se, aos princípios de justiça que regram a vida social, alicerçarem- se em alguma doutrina abrangente específica.

Enfim, no Prefácio da Edição Revista (1990) de Teoria, Rawls é enfático: “Não acredito, acima de tudo, que o utilitarismo consiga oferecer uma teoria dos direitos e das

51Por outro prisma, para um intuicionista como G.E. Moore, a partir da ideia do “valor intrínseco”, os utilitaristas caem na falácia naturalista do normativismo, o qual confunde o bom em si com algo (meio) – o prazer, que se supõe proporcionar o bem. Para uma abordagem dessa crítica, veja-se o inteligente artigo de Denis Coitinho, “Moore e a crítica ao normativismo ético: o papel do valor intrínseco” (COITINHO, 2009).

52 Na Teoria (2008, §3; p. 16), Rawls deixa claro que um dos caracteres da justiça com equidade é “conceber as partes na posição inicial como racionais e mutuamente desinteressadas. Isso não significa que as partes sejam egoístas [...]. Mas são concebidas como pessoas que não têm interesse nos interesses alheios.” E à frente no § 20; p. 144, ele frisa que justamente naquela posição, é que os princípios fundantes dessa categoria de justiça são definidos e acordados.

liberdades fundamentais dos cidadãos como pessoas livres e iguais, requisito da mais alta importância para a teoria das instituições democráticas” (RAWLS, 2008, p. XXVI). Em forma de perspectiva positiva, ele ratifica (RAWLS, 1992, p. 28-29) que a justiça como equidade é “uma concepção de justiça para uma democracia constitucional que é razoavelmente sistemática e praticável, [...] oferece uma alternativa ao utilitarismo predominante em nossa tradição de pensamento político.” Portanto, uma teoria da justiça com equidade apresenta-se melhor plataforma aos princípios constitucionais e às liberdades básicas em relação àquele.

Seguindo O Liberalismo Político, em que a concepção do pluralismo razoável de fundo redimensiona a sobrecarga moral da teoria da justiça como equidade da Teoria, em concepção política de justiça, a questão básica do entendimento de justiça política para uma sociedade política, em Rawls, é condensada da seguinte forma: “Como é possível a existência ao longo do tempo de uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais, que se mantêm profundamente divididos por doutrinas razoáveis, sejam filosóficas, religiosas ou morais?” (RAWLS, 1997, p. 33).

A resposta igualmente central provém da conjugação da liberdade e da igualdade assumidas pelas instituições básicas da sociedade democrática que, atreladas à justiça, incorporam os dois princípios que constituem o âmago e que, portanto, definem a teoria da justiça com equidade:

a) a cada pessoa tem direito pleno a direitos iguais e liberdades básicas as quais extensivas a todos, e devem ter o justo valor garantido;

b) as desigualdades econômicas devem vincular-se, por um lado, aos iguais acessos e oportunidades de posições e cargos às pessoas e, por outro, ao benefício máximo aos menos favorecidos da sociedade (RAWLS, 2007, p. 35; 2003, p. 60).

Certamente pela lealdade ao paradigma liberalista, o filósofo de Baltimore adota uma “ordem léxica” pela qual o primeiro princípio – relativo aos direitos civil e políticos (liberdades fundamentais) sobrepunha-se ao segundo princípio – dos direitos sociais.53 Já em

Teoria (§39, p. 302), ele afirmara: “Ao falar da prioridade da liberdade refiro-me à primazia do princípio da liberdade igual em relação ao segundo princípio de justiça. Os dois princípios estão em ordem lexical, e, portanto as exigências de liberdade devem ser atendidas primeiro.” Kymlincka (2006, p 68) simplifica mais ainda essa hierarquização lexical da seguinte

53Direitos civis: as liberdades de consciência, de pensamento, de associação e de movimento. Direitos políticos: o direito de votar e de concorrer a cargos eletivos, a liberdade de informação, de associação. Direitos sociais (necessidades básicas ou interesses vitais): integridade física, nutrição, água potável, saneamento básico, atendimento médico, educação fundamental etc. No Capítulo 5 da presente pesquisa, trata-se dessa tríplice esfera de direitos.

maneira: “as liberdades iguais têm precedência sobre igual oportunidade, que têm precedência sobre os recursos iguais.”