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4 AS TEORIAS DELIBERATIVISTAS DE FISHKIN, BOHMAN, COHEN

4.4 COHEN E O PROCEDIMENTO DELIBERATIVO IDEAL

4.5.4 O nexo entre direito, política e legitimidade procedimental

O ponto de partida é a perspectiva de reconstrução do direito tal como Habermas propõe em Direito e Democracia, na qual advoga que, no contexto de sociedade pós- metafísica e pós-tradicional, o sistema de direitos constitui e suporta a legitimidade de uma comunidade jurídica134. Segundo Habermas (1997a, p. 154), “esse sistema deve contemplar os

direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo.” No texto Direito e

Moral, está claro: “Se em sociedades do nosso tipo, a legitimidade deva ser possível através da legalidade, [...] que perdeu as certezas coletivas da religião e metafísica, tem necessariamente, de se apoiar na ‘racionalidade’ do direito, de uma forma qualquer”. (HABERMAS, 1999, p. 53-4).

Assim, uma vez que desapareceu – ou pelo menos, perdeu consideravelmente a força integradora – qualquer autoridade absolutamente verticalizada, a legitimidade, em tempos modernos, enraíza-se no entrelaçamento justificável entre o direito, a moral e a política. No argumento seguinte (1997b, p. 233-234), Habermas explicita o sentido dessa transformação:

Conforme nos ensina a antropologia, o direito prece o surgimento do poder político, organizado no Estado, ao passo que o direito sancionado pelo Estado e o poder do Estado organizado juridicamente surgem simultaneamente na forma de poder político. [...] é possível mostrar que determinadas estruturas da consciência moral deve ter desempenhado um papel importante na simbiose entre direito e poder do Estado. [...]. Esse momento de indisponibilidade, que no direito moderno forma um contrapeso evidente à instrumentalização política do médium do direito, resulta do entrelaçamento entre política, direito e moral.

No processo de execução do princípio do discurso, é possível perceber também essa junção entre moral, direito e política. Quando discursos referem-se a normas comportamentais que regulam as interações, aquele princípio se especifica como argumentações morais; quando discursos são relativos à prescrição de normas da ação que encorpam forma jurídica, introduzem-se, com efeito, diversos questionamentos políticos. Como diz Habermas (1997a, p. 199): “À lógica desses questionamentos correspondem diversos tipos de discursos e formas

134 Sociedades comerciais, Estados federativos, comunidades internacionais etc. são exemplos de comunidades jurídicas

de argumentação.” E isso se justifica em função do pluralismo e da complexidade hodierna que impõem profusos interesses ou urgências.135

É nesse contexto de conflitos que os problemas precisam ser enfrentados coletivamente sob a motivação genérica da questão “o que devemos fazer?”, de modo que a formação racional da opinião e da vontade, no calor das discussões sobre preferências e axiologias distintas, não possam ser coordenadas pelas estratégias teleológicas, mas pelo princípio do discurso que melhor favorece possível acordo idealizado entre cidadãos razoáveis e cooperantes. Assim sendo, no solo das questões ético-políticas, segundo Habermas (1997a, p. 201) impõe-se a “perspectiva de membros que procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida.”

A perpetuação do reconhecimento recíproco dos direitos exige a instauração funcional de um poder estatal, ou seja, os direitos subjetivos são implementados por instâncias autorizadas a estabelecer obrigatoriedades coletivas em função daqueles direitos. Na contrapartida, a legitimação dessas obrigações precisa da formalização jurídica. De outra maneira, a garantia do direito às liberdades concretiza-se nos direitos básicos positivos, que dependem das sanções possíveis aos transgressores das normas, legitimadas, instituídas e aplicadas pelo Estado referido a uma comunidade limitada no tempo e no espaço. Portanto, para constituir-se como coletividade de direito, há necessidade de uma instância central capaz de sistematizar a convivência jurídica daquela comunidade que, ao mesmo tempo, autoriza ações institucionais do Estado. Para Habermas existe então, a necessidade de relação específica entre direito e política:

O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados. (HABERMAS, 1997a, p. 171).

Então, essa responsabilidade imputada à correlação entre poder político e direito significa que se integram, pois “o poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais.” (HABERMAS, 1997a, p. 171). Nesse contexto, interessa a interdependência, de modo que se possa compreender a institucionalização procedimental que parece imprescindível à concepção habermasiana de democracia deliberativa. Pode-se, assim, interpretar que a soberania popular não pode, desde

135 Questões como aborto, casamento homossexual, punibilidades radicais como a pena de morte, políticas de imigração, deportações, proteção étnico-cultural, problemas ambientais etc. são exemplos de interesses que integram essas complexas discussões.

Rousseau, ser simplesmente delegada; as pessoas não podem abrir mão do exercício da razão pública, isto é, da sua autarquia, como defendera Kant. Porém, ao mesmo tempo, sem o individualismo liberal nem o secundarismo republicano, a consistência dos procedimentos deliberativos, como pensa Habermas, precisa estar ancorada na institucionalidade, não por conta de qualquer recusa ou abjeção, mas para que, levando-se em conta o ordenamento normativo, a esfera pública tenha paridade política com as esferas do poder nas instâncias e nas articulações decisivas de deliberação.

Contudo, o Direito, que embasa procedimentos políticos, inclusive a deliberação democrática pública, é aquele cuja legitimidade se fundamenta na teoria do discurso – o que implica reformulação ou transformação136 da própria natureza do direito, levando em conta a

tensão entre facticidade e validade, tal como Habermas propõe em Direito e Democracia. O caminho pode ser remontado ao normativismo jurídico hobbesiano, que é modelado na propriedade mediante a liberdade dos contratos. Kant, por sua vez, partindo dos direitos subjetivos, fixa que a legalidade valida o direito positivo imposto pelo Estado. Nesse caso kantiano, conforme Habermas (1997a, p. 48-49), “a relação entre facticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma relação interna coerção e liberdade, fundada pelo direito.” Essa é a forma em Kant de resolver o paradoxo entre a exigência de comportamento conforme normas e a necessidade de reconhecimento destas.

Mas a perspectiva inovadora ancorada na teoria do discurso, recusa essa rigidez da tradição do direito formal, em favor do direito como processo incessante elaboração. Assim, de acordo com Moreira (2004, p. 189),

[...] como paradigma procedimental, somente a liberdade comunicativa reveste-se de caráter prescritivo, de continuamente proceder às melhores razões postas na dança entre a facticidade objeções e proposições e a idealidade contida na pretensão à aceitabilidade universal. (grifo do autor).

A precedência teórica é que, desde que a linguagem analítica superou a clássica oposição entre ideia e realidade, a facticidade correlaciona-se ao ideal de universalidade do significado e da validade de uma verdade; mas essa verdade é, a rigor, pretensão a ser validada, ou não, por meio de processos linguísticos. Segundo Habermas (1997a, p. 56), “[...] a dimensão da validade constitui-se através de uma tensão entre facticidade e a validade: a

136Essa transformação abrange três aspectos: a) normativo – diferentemente da razão prática kantiana, cuja orientação moral tem categoria imperativa, a razão comunicativa é processual é constituída na articulação argumentativa; b) a normatividade do direito tem validade falível – aberta a problematização, revisão, revogação; e c) complementariedade entre direito e moral efetivada na prática legislativa sem que uma sobreponha-se à outra.

verdade e as condições discursivas para a aceitabilidade racional das pretensões de verdade esclarecem-se mutuamente”. Por conseguinte, a tensão em torno das pretensões de validade137 se estenderá para as práticas comunicativas compartilhadas no âmbito da

integração social.

Pode-se, a essa altura, ressaltar que o mérito de Habermas é ter posto o princípio do discurso como conector entre o direito, a moral e a política. De modo geral, pode-se dizer que a validade ou a pretensão de validade baliza ou suporta a facticidade mediante processos discursivos. No sentido da autonomia e da complementariedade entre direito e moral, a síntese pode ser expressa naquela supracitada prescrição do princípio “D”. É ela que orienta reconhecimentos intersubjetivos diante de proferimentos mútuos que visam à validade no interior da correlação entre direito e política, em que a mediania jurídica viabiliza os direitos, dentre os quais, o de liberdade. E Habermas (1997a, p.156) explica que a “liberdade comunicativa só existe entre atores que desejam entender-se entre si sobre algo num enfoque performativo e contam com tomadas de posição perante pretensões de validade reciprocamente levantadas.”

Em um argumento mais extenso, ele exprime o seguinte:

Uma vez que sujeitos agem comunicativamente se dispõe a ligar a coordenação de seus planos de ação a um consentimento apoiado nas tomadas de posição recíprocas em relação a pretensões de validade e no reconhecimento dessas pretensões, somente contam os argumentos que podem ser aceitos em comum pelos partidos participantes. (HABERMAS, 1997a, p. 156).

Habermas atribui, como já se frisou anteriormente, ao princípio do discurso a “prerrogativa” relevante de delinear validades dos fundamentos, práxis e legitimidade da política e do direito, na condição de conexos.138 Desse modo, a essência da democracia

consiste, como também já se apontou nesta tese, em uma soberania popular efetivada nos processos comunicativos em que se formam a opinião e a vontade políticas, nos “pluriespaços” destituídos de personalidades (cidadãos) específicas. E o direito alcança seu sentido pleno não pela forma ou pelo conteúdo estabelecido a priori, mas pelo procedimento que o instaura e legitima. A normatividade do direito, porque passa pelo crivo do consenso,

137 “Os argumentos devem sua força racionalmente motivadora a uma relação interna com a dimensão do significado e da validade das expressões linguísticas.” (HABERMAS, 1997a, p. 57)

138 “O exercício da autonomia política significa a formação discursiva de uma vontade comum, porém não inclui ainda a implementação das leis que resultam desta vontade. [...]. Por isso sugiro que se considere o direito como

médium através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo. Pois a transmutação do poder comunicativo em administrativo tem o sentido de uma procuração no quadro das permissões legais.” (HABERMAS, 1997a, p. 190).

isto é, constituído a posteriori, por conseguinte, distingue-se daquela normatividade ao estilo kantiano. Nas palavras de Habermas:

Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do poder político, e sim, a ligação como o direito legitimamente estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade.” (1997a, p. 172).

Desta forma, a racionalidade comunicativa situada no Estado democrático de direito, subjaz à validade do direito que, por sua vez, está implicado no processo de legitimação do processo político deliberativo que, na expressão de Habermas, “constitui o âmago do processo democrático.” Então, da racionalidade (comunicativa), emanam as regras da argumentação que normatizam a validade das ações intersubjetivas voltadas ao entendimento em torno de questões políticas do bem comum.

Ora, se as questões e as discussões políticas em torno do bem comum situam-se no entrelaçamento de interesses, valores e perspectivas heterogêneas, naturalmente característicos nas sociedades modernas complexas, esse fato do pluralismo origina uma realidade desafiante e, ao mesmo tempo, estimulante à teoria deliberativa. Os procedimentos deliberativos em contextos amplos encontram a dificuldade dos acordos sobre justificação do interesse comum; ao mesmo tempo, entretanto, excluem qualquer legitimação monolítica, sob a exigência, nesse caso, das normas da imparcialidade vinculada à neutralidade. Essa é uma questão que suscita controvérsias entre liberais e comunitaristas; porém, interessa a esta tese, de modo particular, apreendê-la de forma vinculada ao procedimento deliberativo.