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O D ISSENSO EM RELAÇÃO À CARTA DE CRÉDITO

Projeto 5: Rua Carmelitas,

3.5 O D ISSENSO EM RELAÇÃO À CARTA DE CRÉDITO

Como notamos no início do Capítulo 2, os movimentos sociais que lutam por habitação e exercem pressão pelas respectivas políticas públicas, divergem em relação à forma de ação política e, diante desta incompatibilidade, foram geradas dissidências. O mesmo ocorre com as organizações não governamentais, com as diversas instituições, intelectuais, artistas, enfim, o conjunto dos ―atores‖ que os apóiam.

Acreditamos, porém, que é a qualidade e a intensidade destas relações que pode determinar as diretrizes desta luta. Certamente o contrário, a desunião, é o que os tornam vulneráveis. Observamos, ao longo desta dissertação, que no momento em que a relação do grupo de moradores com seus elos de apoio ficam frágeis, os acordos não se concretizaram, pois perdem a força política.

A qualidade destas relações é algo a ser observado com o máximo de atenção, os apoios oferecidos por intelectuais e artistas foram importantes no momento em que estavam dentro do prédio, mas a partir do momento que saíram, estes elos perderam sua força e deixou o grupo suscetível.

Conforme percebemos, estes ―atores‖ não estão presentes na prática, assessorando o movimento. A ajuda que obtiveram na procura dos prédios foi insuficiente. A própria exigência do programa PAR, que delega ao beneficiário a procura pelos imóveis e o insere dentro de uma burocracia com a qual não está preparado para lidar, dificulta o processo. Eximir o poder público desta tarefa, de auxiliá-los na procura dos imóveis, pode ser apontada como uma das principais razões pela qual este grupo de sem-teto ainda não encontrou suas moradias definitivas.

Para a promotora Fernanda Leão,

A Prestes Maia foi uma ocupação realizada por movimentos sociais. Ela foi empreendida, ela foi engendrada por movimentos sociais. (...) Há partidos que são mais abertos para trabalhar com movimentos sociais e há partidos que não são, independentemente de siglas. (...) Na área da habitação, o embate ideológico em função do princípio de atendimento da função social da propriedade, é mais significativo e mais acentuado. Não é que este atual governo

não esteja aberto. Está aberto, tanto é que terceiriza várias prestações que seria de obrigação do Estado, com possibilidade de convênios, através de contratos, enfim, de repasse para a iniciativa privada realizar os serviços de obrigação do Estado. E isto já é uma realidade, de todos os governos. Veio da linha de enxugar o Estado, da linha contraposta do welfare state128, ou seja, diminui o papel do

Estado já que o Estado não pode dar conta de tudo. (Cf. anexo IV)

O próprio secretário adjunto do Estado nos explica que as cartas de crédito são um instrumento clássico para aquisição de crédito, mas são inadequadas ao atendimento da demanda de sem-teto. Muitas são as dificuldades em sua operação segundo ele:

Passou a usar este instrumento (carta de crédito) para dar a um merecedor do atendimento habitacional. Você dá a carta de crédito e ele se vira. Toma 50 mil, 20 mil, 30 mil. Toma e se vira no mercado para achar um apartamento ou uma casinha que valha 50 mil reais. Evidentemente nós queremos nos assegurar que você não vá comprar um barraco na favela. Então você recebe sua carta de crédito e encontra o apartamento e você tem que vir aqui trazer a matricula e toda documentação e nós mandamos uma pessoa vistoriar e coisa e tal.

Esta estrutura ela tem alguns problemas, avançamos bastante, mas temos alguns problemas. O primeiro problema é que a estrutura esta relacionada com a sua renda. Nós temos por norma esta associação que é assinada com o BID e tal. Tem umas inércias, a administração pública é cheia de inércias. Pode mudar? Pode, mas fazer uma negociação com o BID leva anos. E nós vivemos num país estranho, as coisas levam anos.(...) Então a carta de crédito tem um mecanismo complicado. As pessoas conseguiram adquirir esta carta de crédito e fazem uma boa propaganda, mas eu não acho bom. Fazem uma propaganda, mas é difícil! Você tem que correr atrás, não é para uma pessoa humilde. A

128 ―A definição de welfare state pode ser compreendida como um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa ‗harmonia‘ entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente‖.

Gomes, Fábio Guedes. Conflito social e welfare state: Estado e desenvolvimento social no Brasil. RAP Rio de Janeiro 40(2):201-36, Mar./Abr. 2006 acessado em 14/01/2010 no endereço: http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n2/v40n2a03.pdf

humildade está relacionada com os problemas que teve na vida e até um pouco a experiência, a formação. Então, não é uma questão preconceituosa. Não estão preparadas para enfrentar estas questões. É extremamente difícil pela burocracia que envolve. (Cf. anexo IV)

Mas o Dr. Manuel Del Rio, no entanto, não concorda com a hipótese de se atribuir à burocracia tamanha responsabilidade,

Não é incapacidade de um burocrata ou uma coisa assim, é para não dar certo porque não pode dar certo. Porque se der certo o que é que acontece? Não dá certo também porque seria transferência de renda. Eles teriam que transferir renda para os trabalhadores. Então, o Brasil, você vê, esta questão dos cinco prédios, eu fui ver todos eles. Fui no Carmelitas, fui na Eduardo Prado, nós andamos em centenas de prédios por aí. Bom, tudo bem, tem o dinheiro, o proprietário quer vender, por que é que não saiu? Não saiu porque é para não dar certo. O projeto de desenvolvimento econômico do Brasil não conta pobre.

(Cf. anexo IV)

Como observamos, o atendimento através das cartas de crédito mostrou-se inadequado a este grupo e o papel do poder público revelou-se insuficiente, minimizado diante de suas responsabilidades.

Notamos que os movimentos sociais, por meio da pressão política que exercem através das ocupações, pleiteando políticas habitacionais que os atenda, movimentam o sistema em direção à concretização dos seus direitos previamente adquiridos, mas, como presenciamos, não realizados. Na opinião do advogado Manuel Del Rio:

A luta singela do sem-teto, com interesse muito concreto e específico, acaba sendo uma luta que tem um impacto político e social amplo. Porque interfere nas leis, obriga o Estado a criar leis, a regulamentar determinadas coisas, obriga a limitar... Hoje nós temos uma legislação avançada, o plano diretor de São Paulo é avançadíssimo, o Estatuto da Cidade, a própria Constituição, é muito avançada, só que é uma coisa que fica no papel, mas é também resultado desta luta direta, que eu chamo, ação direta dos trabalhadores. Que ele só se mobiliza se ver que ali tem a possibilidade de ter sua casa. Se você falar assim: „- vamos lutar pelas áreas de interesse social‟, você não leva ninguém! Porque claro,

não dá para condenar o povo, ele tem uma vida sofrida, a luta pela sobrevivência dele, ele gasta as energias todas para sobreviver. E uma sobrevivência péssima.

(Cf. anexo IV)

Vendo estes problemas, o Sr. Reinaldo Iapequino, quando ainda estava à frente desta negociação com o grupo Prestes Maia, resolveu mobilizar internamente a CDHU para a resolução deste problema de uma outra forma, com uma outra modalidade de aquisição de imóveis. Ele nos explica:

Nós tentamos outra modalidade. Começamos a desenvolver dentro do programa do Ministério das Cidades: já que a gente não conseguia obter prédios para reformar, a gente idealizou um trabalho que era fazer um crédito associativo como o que a Caixa Federal faz. Ou seja, tentar buscar no mercado esses prédios, através da industria da construção civil, e a gente, CDHU na época, entraria como credora desse negócio, financiando a produção disso. Era basicamente lançar um edital de chamamento, dizer ‗- Olha, preciso de moradias de tais e tais condições, pode ser reformada, pode ser isolada, pode ser em prédio pronto, pode ser em prédio novo…‘. Enfim, era um negócio mais aberto, e a gente utilizaria a carta de crédito não naquela modalidade em que a unidade tem que estar pronta e registrada, mas ela entraria num ciclo de produção. As empreendedoras passariam por um prévio cadastro, para ver a questão de qualificação, para não ter problema de descontinuidade de uma eventual obra. Então seriam empresas com experiência prévia. Inclusive um dos requisitos que a gente tinha idealizado era colocar empresas que já tinham cadastro na Caixa Econômica Federal, que é o cadastro que habilita as empresas... O objetivo era encontrar no mercado a solução.

(Cf. anexo IV)

Como informou Sr. Reinaldo Iapequino, o Ministério das Cidades tinha aceitado essa modalidade, tanto é que a incluiu no seu plano de trabalho do PAC. Isso acabou não evoluindo, mas afirmou que acreditava que essa poderia ser uma forma desta questão, relativa à transformação dos prédios vazios no centro em habitações, se resolver. Atribui a incapacidade da CDHU de buscar prédios a não prioridade dada a este tipo de ação, ―principalmente no centro, como na Nova Luz‖. Não colocou que está preocupação era secundária, mas sim que ―não era o

foco principal‖ da companhia. Porém, esclareceu, em seguida, que tinham uma ―preocupação muito grande em resolver a questão do Prestes Maia efetivamente‖. Reiterou que haviam alguns prédios indicados de fato, mas nem todos eram viáveis devido ao prazo que necessitariam para serem efetivamente transformados em moradias, devido à própria legislação do Município. Então, apontamos que um dos problemas indicados pelo representante do poder público municipal, o Sr. Walter Abraão, foi justamente em relação à dificuldade de desmembramento dos edifícios na área central e à exigência das cartas de crédito estarem atreladas a estas matrículas individualizadas. Sr. Reinaldo reafirmou que,

Pra carta de crédito individual sim, mas pra carta de crédito coletiva, que é o que a gente queria fazer, e depois dentro do processo de ocupação você faria a individualização, era possível fazer. Não havia precedentes, como não há na CDHU, mas era possível. O que a gente precisaria ter? É o tal AVCB (AVCB – Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros) do Corpo de Bombeiros e a matrícula do imóvel regularizada, a propriedade, titularidade do imóvel regularizada. O próprio Secretário, com toda razão, não iria fazer nada em prédio que não fosse regularizado ou regularizável. [...] O caminho seria a desapropriação, porque aí você resolve isso também, mas o caminho da desapropriação não atendia a interesses privados, ele ia fazer contestação de valores, e ia acabar havendo retardamento. É só pegar o histórico das desapropriações da CDHU que você vê o problema. [...] Demora no mínimo quatro anos.

(Cf. anexo IV)

Ele também revelou que havia uma dificuldade por parte dos técnicos da CDHU em aceitarem esta modalidade coletiva, até mesmo da parte jurídica. Mas atribuiu a uma falta de compreensão do corpo técnico da companhia. E esclarece que a Lei de Incorporações (4.591/64)129 permite que se poça faça um edifício para

alugar sem que as unidades precisam estar individualizadas.

Muita gente não sabe disso. Eu só preciso individualizar se eu precisar vender. Um prédio comercial que eu vou alugar, eu não preciso individualizar. Se for alugar, para vender preciso individualizar. Olhando para a figura da Associação,

129 Lei 4.591/64 o Novo Código Civil Lei 10.406/02 derrogou o Título I da Lei, os demais continuam valendo.

a Associação pegaria o prédio inteiro, então a Associação é dona do prédio. A CDHU adquiriria e passaria por uma carta de crédito… Pensa bem, se eu posso dar uma carta de crédito individual para você comprar uma unidade habitacional, eu posso dar uma carta de crédito para uma entidade comprar um prédio inteiro para alojar os seus (integrantes). O que eu tenho que garantir? Tenho que garantir que aquelas unidades habitacionais têm condições de habitabilidade, quer dizer, cumprem os requisitos de seguranças e outros. Feito isso, adquiriu o prédio e alojou as pessoas, aí você pode entrar no registro de imóveis, fazer uma especificação de condomínio, individualizar as unidades, quer dizer, é um processo que se pode fazer com gente dentro.

(Cf. anexo IV)

Nos revela que saiu do cargo antes de conseguir implementar esta modalidade e que o processo não evoluiu dentro da CDHU,

Tinha uma resistência do corpo técnico da CDHU que era em relação às pessoas que estavam envolvidas nesse processo. A Neti, por exemplo; tinha gente que achava que a Neti era uma ―persona non grata‖ dentro da companhia. Eu não fiz nenhum juízo de valor, nenhum julgamento, porque o que estava em foco era a ameaça de um conflito grande. Quando a prefeitura resolveu fazer a desocupação do prédio, e eu acho que tinha ser feito, naquele momento houve uma tensão muito grande. Tanto é que a Inês Magalhães, que era a secretária nacional veio a São Paulo, teve uma reunião com o secretário municipal, com o prefeito porque a situação estava muito tensa. As idiossincrasias internas e externas, a mim enquanto diretor, não eram relevantes. O relevante era tentar encontrar uma solução. Uma primeira parte a gente conseguiu destinar, acho que 160 ou 180 apartamentos na região leste, isso amenizou o problema, ajudou, e nós partimos para tentar solucionar o restante. Havia também um pouco de preconceito em relação a atender… estou falando o que é uma opinião minha, nem sei se é verdadeiro ou não, mas é a percepção que eu tinha.

(Cf. anexo IV)

Colocamos então que estes edifícios avaliados continuam vazios, fechados, sem cumprir sua função social de propriedade, apesar de não estarem mais disponíveis no mercado, principalmente depois da crise financeira mundial