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4.1 O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO LIVRO DO DEUTERONÔMIO

4.1.2 O lugar do decálogo no livro do Deuteronômio

De acordo com López (2004, p. 247), o bloco central do livro do

Deuteronômio é o que está situado em Dt 4,44-28,68 que é composto por uma

introdução geral e também três seções: 5,1-11,32; 12,1-26,16; 26,17-28,68. Este

“discurso de Moisés” faz parte do código legal que se constitui como o grande

núcleo do livro. As expressões “mandatos de decretos” assumem condição

estruturante ao longo dos textos que compõem esse bloco. Pode-se observar em:

5,1; 11,32; 12,1 e 26,16.

Dentro deste grande bloco, encontra-se a seção que compreende Dt

5,1-11,32, onde há predominância de dois gêneros diferentes: o narrativo (Dt 5 e

9,7-10,11) e o parenético (Dt 6,1-9,6 e 10,12-11,32). Observa-se que o primeiro bloco

narrativo, tanto no início quanto no final, apresenta a exortação em ouvir e colocar

em prática os mandamentos.

O contexto/cenário do capítulo cinco é o Horeb, onde Deus se revela ao seu

povo e onde o decálogo se constitui como lei fundamental da aliança. Segundo

López (2004, p. 250), no Deuteronômio existe uma diferença muito importante entre

o decálogo e as demais leis. Um dos pontos básicos de diferenciação é que ele é

promulgado diretamente por Deus e se dirige a todos israelitas, independentemente

de onde estiverem (Dt 5, 1.6). As outras leis são dirigidas e atribuídas

especificamente aos israelitas que estão situados em Israel.

Um dos fundamentos da necessidade de obediência aos mandamentos está

no fato de YHWH ter sido o libertador da escravidão. Tanto que, na versão dos

mandamentos presente no Deuteronômio, a memória do repouso sabático está

associada ao êxodo e não à criação como se percebe em Ex 20,8.

Apesar do decálogo ter sido elaborado diretamente por Deus, na perspectiva

hebraica, Moisés assumiu a condição de mediador entre Deus e o povo, exercendo

um protagonismo singular, fundamentando assim sua autoridade e também da lei

deuteronômica.

De acordo com Otto (2011, p. 177), as diferenças existentes entre o

decálogo presente em Ex 20 e na versão do livro do Deuteronômio favoreceram a

que os pesquisadores se questionassem sobre a relações histórico-literárias

diacrônicas entre essas duas versões dos mandamentos. Assim sendo, o autor

continua dizendo que desde a crítica literária mais antiga se reconheceu que o

decálogo é um texto tardio e foi atribuído à fonte Eloísta, bem como foi datado no

século VIII a.C.

Por esta perspectiva, Alt (1953, p. 50), na busca de resolver o problema da

legitimação teológica do decálogo na qualidade de direito divino, interpretou os

proibitivos “tu não deves” como conteúdos apodíticos dos tempos primitivos do

protoisrael no deserto. Uma das consequências desta interpretação foi a

possibilidade de manter a datação tardia e defender o decálogo como direito divino

do tempo primitivo.

A fim de fortalecer os proibitivos como fruto da experiência do protoisrael no

deserto, segundo Otto (2011, p. 177), até os anos 1970 foram empreendidas

inúmeras tentativas de encontrar dentro do texto situado em Ex 20 uma espécie de

decálogo primordial que continha proibições breves e com uma estrutura uniforme e

um processo posterior de complementação de justificativas consideradas

literariamente como secundárias.

Em contrapartida, Hossfeld (1982, p. 72) rejeitou tal interpretação concluindo

que os mandamentos em Deuteronômio serviram de modelo literário para Êxodo 20

e tal versão teria surgido apenas na época do exílio num processo de releitura da

versão do Deuteronômio. Assim sendo, a versão deuteronômica precisava ser vista

como parte da teologia deuteronomista. Porém, o debate não se encerrou aí. Otto

(2011, p. 177) afirma que nos anos seguintes continuou-se debatendo de forma

acalorada se Ex 20 teria preservado a forma mais antiga do decálogo ou se teria

sido Dt 5.

Por esta lógica, o mesmo autor avança dizendo que apenas com o fim da

hipótese mais nova dos documentos se pode estabelecer que a série de

mandamentos presentes em Deuteronômio 5,6-21 é mais antiga do que a série de

Ex 20,2-17. Assim sendo, o decálogo em Deuteronômio foi integrado no contexto da

história e teologia deuteronomista no tempo do exílio pela redação do Horeb. Já no

caso da modificação pós-exílica do Sinai, teve-se como fonte de um lado a tradição

sacerdotal e de outro a própria moldura do Deuteronômio, o que favoreceu o

estabelecimento de semelhanças, mas também de diferenças entre os escritos.

A conclusão a que Otto (2011, p.178) chega é de que a série de

mandamentos em Deuteronômio 5 foi relida e reinterpretada não apenas no âmbito

da redação pós-exílica do Pentateuco em Êxodo 20, mas que também tomou como

base para sua produção a forma do decálogo que já existia antes mesmo da

redação do Horeb no livro do Deuteronômio.

Pelas discussões acima apresentadas e numa análise diacrônica do

decálogo, é possível perceber que ele se originou não nos inícios da história de

Israel, mas no seu fim. É o que também afirma Graupner (2001, p.62), “o decálogo

encontra-se não no começo da história do direito e da ética em Israel, mas sim no

seu término”.

Do ponto de vista etimológico, a palavra “decálogo” é uma tradução da

expressão hebraica: םי ִרָב ְד ָה ת ֶר ֶשֲע (‘asheret hadevarim) bem como do termo grego

δεκάλογος (decálogos) que significa “dez palavras”. Isso aparece claramente tanto

em Êxodo (“Deus pronunciou todas estas palavras”, Ex 20,1) quanto em

Deuteronômio (“tais foram as palavras que, em alta voz, YHWH dirigiu a toda a

vossa assembleia no monte”, 5,22). É interessante notar que tanto em Êxodo quanto

em Deuteronômio não se encontram termos que geralmente são associados aos

textos legais do Pentateuco, como por exemplo, “mandamento”, “lei”, “prescrição”,

“proibição”. Destaca-se, em contrapartida, a expressão: “Palavra de Deus” dirigida

diretamente ao seu povo.

Uma das formas de legitimação dos mandamentos foi dizer que foram

escritos diretamente por Deus em duas tábuas de pedra. Apesar da mediação de

Moisés, mas Deus é visto com a fonte direta para a produção dos mesmos e que,

portanto, desobedecê-los implica em infidelidade à aliança.

Tal legitimação pode ser exemplificada na passagem de Dt 10,4 quando se

refere ao caso da reescrita dos mandamentos em função do fato de as primeiras

tábuas terem sido quebradas: “Ele (Deus), então, escreveu sobre as tábuas o

mesmo texto que havia escrito antes, as dez palavras que vos tinha falado na

montanha, do meio do fogo, no dia da assembleia.”

Outro fundamento importante para a exigência de seguimento do decálogo é

a memória da ação de Deus em relação à libertação da escravidão, conforme

menciona anteriormente. Como se lê em Dt 5,6: “Eu sou Iahweh teu Deus, aquele

que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão.”

Segundo Kramer (2016, p. 104), nesta passagem Deus faz sua

auto-apresentação e se proclama como Deus libertador. Por esta lógica, rememorar o

Deus que liberta da escravidão no contexto de apresentação dos mandamentos,

implica em enfatizar que para que povo tenha sua liberdade preservada e a vida

esperada seja imprescindível o seguimento destas exigências que, no fundo se

constituem como base ética de cumprimento da aliança.

Em outras palavras, ainda segundo o mesmo autor, as palavras e exigências

de YHWH presentes no decálogo tem por objetivo evitar que aqueles que foram

libertos da escravidão egípcia recaiam em condições semelhantes de opressão e

dominação. Mesters (1986, p. 20) chegou a comparar Ex 20,2 e Dt 5,6 como um

prego que sustenta as dez palavras de YHWH. Se acontecer de o prego sair da

parede e o quadro terminar caindo no chão, então este se quebrará e só sobrará

pedaços. Assim, é extremamente importante e urgente substituir a compreensão de

um Deus que é “imperador” e que prescreve mandamentos, por um Deus que age

como libertador e que, ao exigir o cumprimento dos mandamentos, está propondo

um caminho para que as pessoas e a sociedade em geral encontrem sempre

liberdade.

De acordo com Otto (2011, p. 180), o decálogo não teve uma reformulação

total no tempo do exílio, mas em sua composição foram utilizados elementos

“pré-moldados”. Dentre os argumentos que justificam essa posição, encontra-se o de que

há a mudança do discurso de Deus na primeira pessoa, no caso do primeiro

mandamento para o discurso sobre Deus na terceira pessoa no caso dos

mandamentos seguintes.

Além disso, em Dt 5,17-20 a combinação das proibições de homicídios,

adultério, furto e também o próprio testemunho falso, já se via contemplada na série

de legislações sobre pena de morte (Ex 21,12-17), também no código da aliança e

em formulação profética, como se vê em Os 4,2. Segundo Otto (2011, p. 180), isso

significa que tal combinação era transmitida de forma autônoma e independente no

decálogo.

Por tudo que foi apresentado nesta seção da presente tese, observa-se a

complexidade de interpretação sobre os textos do decálogo e seu processo de

formação redacional, mas que aponta para a riqueza de possibilidades de estudo e

reflexão sistemática desse material que sem dúvida foi tão crucial para normatizar as

relações dos israelitas entre si e com YHWH.