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O mínimo existencial e a legitimidade do poder judiciário

Não são os fundamentos constitucionais e legais, os maiores entraves à efetivação dos direitos sociais. O grande questionamento é, diante da escassez dos recursos, é certo o judiciário subtrair dos outros dois poderes, consagrados mediante o voto, a escolha dos programas e investimentos a serem adotados? Não estaríamos, então, diante da quebra do princípio da separação dos poderes, posto que o judiciário, ainda que por vias tortuosas, estaria participando no orçamento, ação não autorizada ao mesmo pelo texto constitucional?

A carência econômica é um argumento que, ainda que pungente, está inserido em uma concepção metapositiva, pois seria inócua uma disposição constitucional que garantisse os direitos sociais a despeito da carência de recursos por parte do Estado. Deste modo, não é de se estranhar que os defensores d implementação dos direitos sociais também se valham de algumas concepções que passam distantes dos dispositivos legais e constitucionais, se aproximando mais de concepções doutrinárias.

A doutrina especializada tratou de concatenar os conceitos necessários à defesa da efetivação dos direitos sociais pela via jurisdicional. Dentre esses conceitos, destacam-se o princípio da proporcionalidade e o primado de respeito aos direitos fundamentais, nos quais está contido o direito às condições mínimas de existência condigna.

O princípio da proporcionalidade parte da idéia da existência de dois tipos de normas: As normas-regras, que são ou não aplicadas de forma

completa; e as normas-princípios, que admitem uma aplicação gradual de seu conteúdo originário, sobretudo quando se chocam com outra norma do mesmo tipo. É o que ocorre, por exemplo, com a norma constitucional que trata da propriedade. De um lado tem-se o respeito à livre iniciativa e à propriedade, que seria uma norma princípio, pois sua aplicação pode ser emoldurada pelo princípio da função social da propriedade. Cabe ao interprete, mediante ponderação, buscar um equilíbrio entre os dois caminhos colidentes consagrados constitucionalmente.

O autor alemão Robert Alexy117 abordou esta questão e propôs que as normas relativas aos direitos sociais fossem enquadradas dentre as normas- princípios, podendo ter sua aplicação limitada à ponderação com outras normas do mesmo tipo consagradas no texto constitucional, tais como a democracia e a separação de poderes:

O modelo não diz quais direitos fundamentais sociais definitivos tem o indivíduo, mas sim quais pode ter [...] Deve-se considerar que uma posição de prestação jurídica está definitivamente garantida jusfundamentalmente se (1) a exige muito urgentemente o princípio da liberdade fática e (2) o princípio da divisão de poderes e o da democracia (que inclui a competência orçamentária do parlamento) bem como (3) princípios materiais opostos (especialmente aqueles que apontam para a liberdade jurídica de outros) são afetados em uma medida relativamente reduzida através da garantia jusfundamental da posição de prestação jurídica e as decisões do Tribunal Constitucional que a tomam em conta.

Mas será que a tão buscada ponderação não seria meramente traduzida em mero subjetivismo por parte do intérprete? Haveria algum parâmetro para o magistrado, por exemplo, escapar da acusação de falta de critérios objetivos e substanciais para decidir um embate entre duas normas-princípio, sob a ótica do respeito aos outros poderes e até mesmo a outros direitos?

As respostas a tais indagações há de ser afirmativa e o caminho a ser adotado é o da teoria dos direitos fundamentais, que aponta para as necessidades mais preciosas para a sociedade e que deveriam ser observadas

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pela administração pública. Esta teoria, evidentemente, parte da premissa, nem sempre pacífica, de que há direitos que se revelam superiores às leis escritas.

O embate entre direitos escritos e não escritos remonta a antiguidade grega. Se tomarmos, como exemplo, a obra Antígona, de Sófocles118, percebemos que o diálogo da personagem principal com Creonte tem como objetivo a supremacia do direito natural frente ao legislado. Na tentativa de sepultar seu irmão Polinice, ato obstaculado por Creonte, Antígona vale-se de uma ira que não se distancia, em momento algum, da tese da supremacia dos direitos fundamentais:

Tuas ordens não valem mais do que as leis não escritas e imutáveis dos deuses, que não são de hoje e nem de ontem e ninguém sabe quando nasceram.

Ainda que bastante pertinente para ilustrar o tema, o discurso de Antígona é entrelaçado pelo poder da religião. Este fundamento metafísico foi seguido por autores ligados ao cristianismo, como São Tomás de Aquino, Locke, Hume e Grotius. Somente com Immanuel Kant, viriam a ser estabelecidas as bases filosóficas, sobrepondo às teológicas, que acabariam por desenvolver a hodiernamente consagrada teoria dos direitos humanos ou direitos fundamentais.

A doutrina clássica já definira os direitos de primeira geração, ou os chamados direitos liberais, que também estão contidos no conceito de direitos fundamentais. Estavam abrangidos, pois o direito à vida, à liberdade, à igualdade formal, à participação política e à incolumidade física.

Entretanto, essas garantias passaram a se revelar insuficientes, sob o prisma da doutrina social que ganhou força no século XX e que pregava o reconhecimento de caráter jusfundamental aos direitos sociais e econômicos.

Mas será que a tão buscada ponderação não seria meramente traduzida em mero subjetivismo por parte do intérprete? Haveria algum parâmetro para o

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magistrado, por exemplo, escapar da acusação de falta de critérios objetivos e substanciais para decidir um embate entre duas normas-princípio, sob a ótica do respeito aos outros poderes e até mesmo a outros direitos?

A crítica aos direitos fundamentais de segunda geração por vezes é caracterizada por ofídica fleuma. Muitos autores advogam que os direitos fundamentais só podem ser negativos, sendo meio de defesa contra os excessos do Estado e de terceiros, o que, conseqüentemente, excluiria os direitos sociais.

Há, inclusive, em parte da doutrina, uma atitude debochada em relação aos festejos da contemplação constitucional dos direitos sociais, pelo fato de que os mesmos, ainda que contidos na Carta Magna, dependeriam, para sua efetivação, de vontade política e recursos financeiros. Para esta tese, a proliferação dos direitos sociais nas constituições levaria a não efetivação de nenhum deles, pois a implementação de suas prestações restaria prejudicada.

Para que tal previsão não venha a se tornar realidade, deve-se recorrer á noção de mínimo existencial, caracterizado pela preexistência à ordem positiva, a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a eficácia erga omnes, o caráter absoluto e a possibilidade de auto-aplicação e que engloba as prestações sociais que seriam primordiais para que se efetivassem os direitos de primeira geração, tais como o direito à saúde básica, educação fundamental, abrigo, alimentação, dentre outros, sem os quais não há como se ter por garantida a existência do ser humano.

A auto-aplicabilidade, a preexistência e a inalienabilidade dos direitos fundamentais encontra oposição na escassez econômica e tal enfrentamento só pode ser dirimido com a adoção de prioridades, condicionadas pela reserva do possível, somente assim torna-se possível cotejar estas alocações de recursos, de modo a aferir se há título de prioridade em favor de uma determinada prestação que se deixou de realizar.

Diante do quadro apresentado, a administração pública só poderia esquivar-se de proteger um direito social fundamental, vinculado à noção do

mínimo existencial, se conseguir provar que há escassez de recursos e que foi priorizada outros objetivos de igual hierarquia. A exigência judicial da implementação de um direito social fundamental é plenamente aceitável quando se verificar a existência de recursos para tanto, o que parece evidente quando o Estado utiliza-se de recursos públicos para projetos não prioritários.

Ressalte-se que a teoria do mínimo existencial não se revela uma novidade para o ordenamento jurídico pátrio. Destaque-se, por exemplo, a determinação de que o Estado, quando da execução do direito de punir aqueles que transgridem as normas, o faça de maneira a não se deixar influenciar pela reação negativa que advém do cometimento de certos crimes.

É certo que há crimes que deixam a população perplexa e que por seus detalhes sórdidos, muitas vezes fazem aflorar o sentimento de vingança proporcional por parte dos demais componentes da sociedade. É nesse momento, que deve aflorar a força da ação estatal, no sentido de garantir punição ao infrator na medida exata do que determina a Lei, restringindo qualquer reação que tenha como único fulcro a indignação da população e o desejo coletivo das formas mais execráveis de vingança.

Em assim sendo, deve-se garantir ao acusado a possibilidade de defender-se mediante ativa participação no processo, como também a não ser forçado a falar contra a sua vontade, a proibição de penas cruéis, tendo em vista a necessidade de se respeitar os pressupostos básicos de uma existência individual e social do condenado, em virtude de pressupor que o Estado tem como da mais alta importância, a missão de ressocializar o delinqüente.

Todas estas linhas de ação estatal servem para exemplificar o quanto a lei preocupa-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, com o escopo de impedir que a atividade punitiva que lhe é peculiar, manifestada sob o interesse de velar pela segurança da coletividade, resulte como justificativa à depreciação do indivíduo.

Vale lembrar que, para os casos apresentados, as vozes que defendem a intervenção estatal parecem bem mais fortes que quando se pretende a implementação dos direitos sociais pela via jurisdicional. Ora, o Princípio

parece ser o mesmo: Cabe ao Estado – nas suas três esferas de atuação quanto ao poder – intervir para garantir um mínimo existencial aos cidadãos. A omissão em produzir tal intervenção pode ser motivo para um questionamento de qual, seria, de fato a missão do Ente estatal.