4.2 A comercialização da farinha tradicional e a diversificação dos mercados
3.2.1 O mercado da farinha em Bragança
Mercado na atualidade é um tema estudado em várias áreas do conhecimento. A
funcionalidade e característica são discutidas em diferentes esferas da sociedade e
estruturas sociais, tornando seu conteúdo tão relevante na contemporaneidade quanto sua
forma. Mais esta discussão é recente, e ao contrário do que conhecemos a discussão sobre
mercado esteve por décadas sub-teorizada no estreito círculo dos economicistas e outros
cientistas sociais (SCHNEIDER, 2016).
A ausência de estudos, debates e reflexões sobre mercado entre os estudiosos da
sociologia rural foi marcadamente maior, principalmente tratando da categoria agricultura
familiar. O distanciamento da sociologia rural da “problematização dos mercados e
inserção da agricultura familiar” é visto por Schneider (2016, p. 94) com precaução, ao
considerar que a origem é gerada da desconfiança generalizada da visão do mercado como
sinônimo de economia de mercado.
Os conceitos de mercado encontrados na literatura das ciências sociais convergem
para uma tradução da ação econômica como pressuposto das relações sociais e culturais,
nos quais os atores interagem (CASSOL et al., 2016). Mercado pode-se dizer que é o
resultado do processo de construção entre diversos atores sociais economicamente ativos
de uma sociedade.
Com ampliação dos estudos que relacionam mercados e agricultura familiar, é
preciso um olhar direcional sobre os tipos de mercados realizados coletivamente. O
direcionamento da abordagem sobre mercados na pesquisa, busca priorizar os mercados
socialmente construídos que por ocasião distintas, são chamados de mercados sociais.
Os mercados sociais são construídos como espaço de troca, que se realizam por
sua dinâmica em ambiente de encontro de vontades, desejos e principalmente das
necessidades de geração de renda e de consumo de produto de qualidade. Diferenciar
estas características ajuda a situar a abordagem que segue, pois mesmo o estudo
vislumbrando trabalhar mercados sociais, não estará alheia ao mercado global.
As modalidades mercados sociais não obedecem a regras estáticas. São dinâmicas
e de fluxos operacionais bastante heterogêneos, o que diferencia do modelo convencional
de funcionamento mediado por dispositivos “linear, dominante e hegemônico”
(CASSOL, et al., 2016, p. 316).
O município de Bragança é o principal produtor de farinha da região bragantina.
O município funciona como um mercado receptor da farinha produzida nos municípios
do entorno. A posição do município propicia a formação de uma rede de comercialização
complexa composta por atores locais e regionais.
A dinâmica dessa rede ganha “vida” com a chegada da farinha vindo das
comunidades de municípios do território. A via de transporte são os ônibus de
passageiros
28
chamados de horários. A farinha chega embalada em sacos de nylon,
amarrados com barbante (de fibra) e de peso variados. As características descritas
possibilita identificar a falta de padrão das embalagens. Este fluxo acontece durante a
semana (segunda a sexta) na feira livre de Bragança.
A pesquisa no território permitiu identificar as várias negociações estabelecidas
pelos agricultores. Foi então, neste momento que mapeamos o destino (mercado) da
Farinha de Bragança nas escalas regionais, nacional e internacional. Mas a pesquisa in
loco qualificamos as informações sistematizadas, permitindo tipificar os mercados e
operações realizadas por produtores, consumidores e comerciantes de farinha.
As operações de troca são frutos das relações estabelecidas entre os atores que
foram atraídos por objetivos comuns: desejo ou necessidade pelo (s) produto (s) sob a
posse alheia. O interesse proveniente do desejo ou da necessidade pode significar uma
porta para as relações, que designe estágios de confiança ou apenas a obtenção do produto
através da troca.
A figura 4 representa um esquema com os principais atores
29
que atuam no circuito
da comercialização da Farinha de Bragança.
28 Ônibus do horário é o transporte utilizado pelos agricultores moradores das diversas nas comunidades
rurais do município de Bragança e municípios vizinhos. A regularidade do transporte depende da
comunidade, do período do ano, como também das condições das estradas e quantidade de cargas dos
agricultores.
29 A montagem do fluxograma com os principais atores do circuito de comercialização da farinha possível
devido o campo exploratório realizado em outubro de 2017. A colaboração de membros da diretoria da
COOMAC foi fundamental para consolidação das informações.
Figura 3. Atores atuantes no circuito da comercialização da Farinha de Bragança
Estados (AP, PI, DF. ES,
RJ, MA, CE) e municípios
de Castanhal, Marabá,
Parauapebas, Capanema
Ananindeua.
Belém (Rede de
supermercado Belemzão),
feiras e pontos comerciais.
Bragança
Consumidores
internacionais
Japão, Argentina e Portugal.
Agricultores de
produtos diversos:
Bragança, Tracuateua,
Augusto Corrêa,
Santa Luzia do Pará,
Viseu.
Restaurante do Rio de
Janeiro, aeroportos e
Macapá
Agricultor fabricantes
de farinha: Padilha,
Davi, Santino, seu
Bené, seu Tapinha,
Zé Martins.
São Paulo (mercadão)
Parceiros
internacionais (sem
fluxo continuo)
Produtores de farinha Agentes de
comercialização
Consumidores
intermediários e finais
A rede de atores constitui um sistema complexo. Compreender a lógica de
funcionamento da rede ajuda a interpretar a dinâmica geral do fluxo da farinha e os
principais atores, sendo eles: i) produtores (especializados e gerais); ii) comerciantes
locais; iii) comerciantes externos; iv) cooperativa Coomac; v) instituto manioca vi)
parceiros internacionais; vii) consumidores intermediários; e ii) consumidores finais.
i) Agricultores de produtos diversos: são famílias, residentes nas comunidades
rurais dos municípios de Bragança, Tracuateua, Augusto Corrêa, Viseu e
Santa Luzia do Pará. A produção de farinha se destaca entre as atividades
agrícolas.
ii) Agricultor fabricante de farinha: são famílias que tem a produção da farinha
lavada como atividade principal. Guardadas as proporções são consideradas
as melhores farinhas do município ou as mais conhecida. Estes agricultores se
especializaram na fabricação da farinha, que confere domínio de técnicas,
quantidade da farinha produzida, níveis de incorporações de tecnologia e
relação estável com diferentes mercados. As entrevistas revelaram – em
alguns casos – que parte da matéria prima utilizada na produção da farinha é
adquirida de terceiros, o que gera dependência.
iii) Comerciantes Locais: são pessoas da região, muitos deles descendentes de
agricultores e/ou de famílias que residem atualmente na sede do município de
Bragança. Este grupo se divide em três subgrupos: a) os proprietários de
depósitos; b) os feirantes de pontos comerciais na feira livre em Bragança; e
c) comerciantes proprietário de pontos comerciais nos bairros. Os
comerciantes proprietários de depósitos vendem a farinha no atacado para
pontos comerciais de Bragança. Também exportam para municípios paraenses
como Castanhal, Marabá, Parauapebas, Capanema, Ananindeua e Belém, tal
como para estados do Nordeste, Sudeste, Centro Oeste do país. Alguns
proprietários de depósitos têm pontos fixos de venda de farinha em bairros e
feiras livres de Ananindeua e Belém. Já os feirantes e comerciantes
proprietários de pontos locais compram em menor quantidade e vendem a
farinha no varejo para os consumidores na feira livre, nas feiras localizadas
nos bairros e em pontos no centro comercial de Bragança. Estes dois últimos
disputam a compra da farinha com os proprietários de depósito.
iv) Comerciantes Externos: são pessoas de fora do município de Bragança, em
Apesar de comercializarem farinha para estados do Nordeste do Brasil, a
maior parte da farinha comercializada tem como destino o mercado de
Castanhal, Ananindeua e a capital paraense. Os proprietários de depósitos
demonstram preocupação com a atuação dos comerciantes externos. Em dias
de pouca oferta de farinha os externos aumentam o preço pago pela saca
dificultando a negociação dos comerciantes locais. A presença dos
comerciantes externos como concorrentes exercem uma pressão sobre a
dinâmica de regulação dos preços da farinha, obedecendo a “lei de quem pagar
mais leva”.
v) Cooperativa: a COOMAC foi criada em 2010 com o intuito de prestar
serviços aos agricultores familiares e extrativistas da região do Caeté através
do desenvolvimento de atividades em cumprimento aos objetivos sociais, de:
beneficiamento de produtos, cultivo dehortifrutigranjeiro, coleta de sementes,
extração de sementes e óleos, fabricação de cosmético e produção. A
comercialização é item dos objetivos estatutários da Cooperativa. A
Cooperativa desenvolve um trabalho de melhoria da qualidade da farinha
restrita aos seus associados, além da melhoria no processo de produção
também desenvolveu embalagens com marca própria para os produtos. A
farinha é comercializada diretamente em redes de supermercados da capital.
A COOMAC é uma das instituições envolvidas no processo de criação do selo
de Indicação Geográfica para a Farinha de Bragança como entidade
proponente.
vi) Instituto Manioca
30
: é uma entidade que intermedia relações com a rede de
restaurante do Rio de Janeiro, São Paulo e lojas nos aeroportos. Através do
instituto a farinha de Bragança tem sido exposta em gôndolas de grandes
redes de supermercados como pão de açúcar.
vii) Parceiros Internacionais: são organizações e pessoas interessadas ou que já
realizaram transações esporádicas de compra da farinha dos agricultores
familiares. Para que as transações comerciais se estabeleçam e se consolidem
30 O Instituto Manioca é uma associação sem fins lucrativos que se iniciou com o Projeto Mandioca quando
as chefs Teresa Coração e Margarida Nogueira, membros do movimento Slow Food iniciaram um projeto
de Oficinas de Tapioca para crianças da rede de ensino público no Rio de Janeiro. Três mil crianças, ao
longo de oito anos, aprenderam a importância da mandioca, através de conteúdos ecléticos como a lenda, a
música, e a culinária da tapioca (https://www.institutomaniva.org/manifestomissao).
entre essas organizações e os produtores instituições como EMATER,
SEMAGRI, SEBRAE, entre outras atuaram como mediadoras. Existem
atualmente grupos da Argentina, Japão e de Portugal interessado na compra
da farinha da comunidade de Camutá (Santino e Padilha), do grupo do seu
Bené e o Davi. Uma das características desse tipo de comércio envolvendo a
comunidade de Camutá, grupo do seu Bené e consumidores estrangeiros é a
preservação dos aspectos culturais e originais da Farinha de Bragança. A
embalagem dessa farinha exportada é a mesma que os agricultores utilizavam
no passado, o paneiro feito de fibras da guarimã e revestido com as folhas do
mesmo vegetal. No caso do seu Davi e família, produzem (na agroindústria
familiar Sabor de Bragança uma farinha Gourmet (sabor açaí, jambu, charque)
respondendo uma tendência do mercado. O caso do seu Tapinha se diferencia
dos demais, como não tem contrato fixo de comercialização se articula com o
seu Bené, o que permite fornecer farinha dentro dos padrões sempre que o
contrato tem demanda considerável. O Zé Martins segue uma linha de
produção com as características tradicionais, porém, em escala superior a
cento e cinquenta sacos/mês para atender o mercado da capital paraense e
Macapá-AP.
viii) Consumidor intermediário: são ambientes – entreposto – para
comercialização do produto ao consumidor final, cuja operação comercial é
realizada por terceiros. Também usamos como exemplo a comunidade
Camutá (Santino), Seu Tapinha no Jararaca e grupo do seu Bené na
comercialização direta para rede de restaurantes do Rio de Janeiro. O Davi
também tem contrato de fornecimento, assim como a família do Zé Martins.
Provavelmente, outros produtores operam na mesma modalidade.
ix) Consumidores finais: são todos os consumidores que adquirem a farinha dos
intermediários, dos comerciantes locais ou direto do produtor nas diversas
modalidades de compras.
A movimentação do mercado da farinha na cidade de Bragança inicia com a
chegada do produto em ônibus de linha. Os compradores de farinha ficam a postos com
o furador (figura 5)
31
a espera do produtos.
31 Instrumento pontiagudo de ferro ou aço com centro ocado, usado com a finalidade de furar os sacos
(embalagem) da farinha para obtenção visual da qualidade e sabor pelo paladar.
Figura 4. Comerciante atestando a qualidade da farinha durante negociação
Fonte: arquivo do autor, crédito para Ana Raquel Leite (2018).
Na chegada dos ônibus a farinha é desembarcada e empilham no chão (figura 6)
em cima de lonas, sacos, papelão ou mesmo no asfalto sem proteção alguma. A partir
daí, se inicia a negociação de preço.
Figura 5. Exposição da farinha e início da negociação
Fonte: Arquivo do autor, créditos para Ana Raquel Leite (2018).
A análise da qualidade feita pelos compradores “podem ser apreendidos pelos
sentidos, tais como o sabor, a consistência, a coloração e, em menor escala, o aroma”
(VELTHEM e KATZ, 2012, p.453). Este processo ocorre após o comprador furar o saco,
expor a farinha na palma da mão e em um gesto habilidoso sacode na boca sem deixar
cair nenhum caroço no chão. Processo que se repete a cada desembarque da farinha, como
um ritual antes da negociação.
Não encontramos fonte que permitisse fornecer dados com a quantidade de farinha
que circula no município de Bragança. As instituições que atuam no município, como a
Secretaria Municipal de Agricultura, Emater, instituições de ensino e pesquisa, sindicatos
e cooperativas não dispõem de nenhum banco de dados que permita quantificar a
produção e o fluxo de farinha no município. Da mesma forma, os órgãos do governo do
estado não dispõem destes tipos de dados.
Apesar do aparente sucesso da Farinha de Bragança nos diferentes mercados,
alguns produtores passam por dificuldade perante as mudanças micro e macro as quais
estão submetidos. A desvalorização da farinha no mercado convencional tem provocado
mudanças na atividade, caso da comunidade do Camutá onde as famílias estão se
especializando na venda da mandioca in natura para produtores
32
de farinha da região
com maior estrutura de produção.
Os depoimentos retratam bem essa situação. Para Euclides Machado (37 anos,
entrevista concedida em 08 de setembro de 2018) diz que “dá muito trabalho, se botar no
bico da caneta não se consegue recuperar o que se investiu”; o senhor Tapinha (64 anos,
entrevista concedida em 24 de setembro de 2018) afirma “não ter condições, tenho até
pena de nós que produzimos”; o senhor João Farias (60 anos, entrevista concedida em 23
de setembro de 2018) demonstra total indignação ao dizer “não compensa! Às vezes um
saco de farinha se acaba em duas sacolinhas plásticas de supermercado”.
Os três relatos são carregados de descontentamento com custo benefício da
produção da farinha. Os dados da pesquisa mostram que o preço da farinha varia no
mercado convencional local (quadro 5)
33
.
Quadro 4. Variação do valor da farinha
Tipo de farinha Variação do valor da saca de 60 Kg em R$
Farinha comum R$ 100,00 a 180,00
Farinha lavada R$ 150,00 a 240,00
Fonte: Dados da pesquisa de campo (2018).
O preço do saco (60 kg) da farinha lavada, considerada de melhor qualidade, varia
de R$ 150,00 (Cento e cinquenta reais) a R$ 240,00 (Duzentos e quarenta reais). Já o
preço do saco (60 kg) da farinha comum, considerada de qualidade inferior, varia de R$
100,00 (Cem reais) a R$ 180,00 (Cento e oitenta reais). O valor pago pela farinha é
considerado baixo diante do trabalho exigido.
A oscilação nos preços praticados no mercado local levou os agricultores a buscar
alternativas como os mercados socialmente construídos. Em todo caso, a figura 6
32 Produtores de farinha vizinhos que por alguma razão tem pouca ou não tem mandioca suficiente para dá
conta da demanda de farinha.
33 Estamos chamando mercado convencional local as operações realizadas livremente entre comerciantes e
produtores de farinha largamente conhecidos por ambos em locais estratégicos na cidade.
representa a diversidade de formas de comercialização praticada atualmente pelos
agricultores familiares do território Bragantino.
As transações comerciais na modalidade circuito curtos são subdivididas em
vendas diretas e vendas indiretas, sendo que a primeira acontece numa relação direta entre
produtor e consumidor, enquanto o segundo a transação é mediado por um agente
comercial.
No documento
Universidade Federal do Pará
(páginas 67-75)