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CAPÍTULO 2 EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 10.639/

2.4. O multiculturalismo como possibilidade pedagógica

No diálogo entre uma educação para a emancipação na perspectiva da educação para as relações raciais e étnicas positivas que se estabelece neste capítulo, aparece de forma bastante acentuada em nosso estudo a questão da cultura no meio educacional e do multiculturalismo.

A década de 1990 foi palco do processo da expansão da Educação Básica – particularmente do ensino fundamental - para todos os setores da sociedade impulsionada principalmente pelas orientações dos organismos internacionais. No início dos anos 2000, diversas políticas governamentais buscam a ampliação desta expansão para o ensino médio e para o ensino superior. Setores até então excluídos dos bancos escolares passam agora a ocupá-los – pobres, indígenas, negros, mulheres, homossexuais, portadores de necessidades educacionais especiais; enfim, a educação homogênea e monocultural que ocupava a escola republicana até os anos 1980 deu lugar a uma escola heterogênea e multicultural.

Apesar da polissemia, o multiculturalismo é um conceito que ganha importância no campo científico, em particular das ciências humanas e da educação, e tem sido para os pesquisadores das diversas áreas de conhecimento um desafio epistemológico bem mais complexo que a aparente simplicidade da palavra nos sugere.

Uma primeira afirmação é que o próprio conceito de multiculturalismo é em si um conceito multicultural, podendo assumir diferentes significados e significantes dependendo do contexto de sua apropriação e de seu uso: numa determinada região geográfica, por determinado grupo político ou religioso, por determinado seguimento social, ou mesmo por determinada corrente de pensamento no meio acadêmico. Assim, o que entendemos por multiculturalismo, ao contrário de outros conceitos utilizados no universo dos estudos acadêmicos, não tem um significado único, ou o mesmo significado para todos aqueles que se utilizam e se apropriam dele para fundamentar os seus estudos.

Ao debruçarmos sobre o estudo da História e Cultura Africana e Afro-brasileira – onde o conceito de multiculturalismo se apresenta como uma das possíveis vertentes teóricas de análise – se faz necessário problematizarmos sobre as inúmeras possibilidades que a utilização do termo possibilita em nosso meio, bem como este pode contribuir positivamente para o nosso objeto de estudo. É o que intencionamos.

A necessidade de acúmulo de um arcabouço teórico, bem como de elementos para a reflexão destes fenômenos no campo da prática social vivenciada no universo das instituições educativas é uma exigência em nível global.

No que se refere às temáticas relacionadas às diversidades de natureza racial e étnica, o multiculturalismo tem representado no contexto atual uma das principais vertentes teóricas, o qual busca explicar, refletir e apontar caminhos de intervenção no que se refere a realidade social educacional que permeia o estudo deste tema.

Canen (2008) aborda a importância do multiculturalismo como conceito e prática estruturante na formação dos professores e dos formadores que atuam na formação docente, para a qual, devem ser compreendidos como professores-pesquisadores, construtores de conhecimento e sujeitos protagonistas dos seus projetos e propostas de trabalho. Portanto, a dimensão da pesquisa é intrínseca ao trabalho docente e o multiculturalismo um aporte teórico e metodológico que possibilita edificar tanto a identidade profissional dos professores quanto as suas concepções e atitudes acerca da educação.

A primeira dimensão no Trabalho da formação de professores pesquisadores em uma visão multicultural pela sensibilização a diversidade cultural dos professores- formadores-autores-pesquisadores, que constroem/transmitem o conhecimento na área educacional, assim como dos futuros professores e dos estudantes com que vão interagir (...) a visão multicultural da pesquisa leva a necessidade de valorização das formas diferenciadas de realizar pesquisa, respeitando-se os paradigmas dos pesquisadores e os critérios de rigor e relevância inerentes aqueles paradigmas (CANEN, 2008, p. 300).

Para a autora, um dos principais desafios da pesquisa na área de educação no contexto atual é o respeito e valorização da pluralidade de métodos e paradigmas que constituem a prática científica dos professores. Este desafio, inerente a visão multicultural da pesquisa, contribui significativamente para a superação do pensamento único como norteador das pesquisas educacionais e na ampliação das metodologias, teorias, temas, problemas e abordagens das pesquisas em educação – “pluralidade paradigmática”.

Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2002) em “O Jogo das Diferenças: o multiculturalismo e seus contextos” abordam o multiculturalismo a partir de uma perspectiva que ambos denominam “jogo” das diferenças. Neste estudo, os mesmos afirmam o caráter plural do multiculturalismo e a sua perspectiva não meramente política, mas de engajamento neste jogo que envolve inexoravelmente a função da educação enquanto construtora de sentidos e significados, não para os sujeitos abstratos, mas para os sujeitos “excluídos” da sociedade – negros, mulheres, homossexuais, indígenas etc. Portanto, o multiculturalismo, na perspectiva destes autores, representa um instrumento efetivo a serviço da luta contra todas as formas de exclusão social, particularmente, contra a exclusão do negro nos espaços escolares.

Para Gonçalves e Silva,

o multiculturalismo enquanto movimentos de ideias resulta de um tipo de consciência coletiva, para a qual as orientações do agir humano se oporiam a toda forma de centrismos culturais, ou seja, de etnocentrismo (...) seu ponto de partida é a pluralidade de experiências culturais, que moldam as interações sociais por inteiro. (GONÇALVES & SILVA, 2002, p. 14).

Na epigrafe, os autores afirmam além da perspectiva de engajamento inerente ao multiculturalismo contra toda forme de afirmação de “centrismo”; particularmente, o etnocentrismo, o engajamento em defesa da pluralidade de experiências culturais como o ponto de partida que molda as interações multiculturais. Portanto, é correto afirmar que, no entendimento destes autores, a pluralidade não é somente de culturas, mas de relações sociais mais amplas, que constituem a base sobre a qual deve assentar-se a perspectiva multicultural. Trata-se, portanto, não de produzir novos centrismos de natureza racial, étnica, cultural, ou

mesmo social, mas de assumir a diversidade e as diferenças de diversas naturezas, como o instrumento fundamental de novas práticas sociais fundadas na promoção do respeito e valorização destas diferenças.

Os autores apontam ainda que, tanto no Brasil como na América Latina, “os grupos que reivindicam o reconhecimento de seu patrimônio cultural são justamente aqueles que construíram as nações nas quais vivem”. Neste sentido, o multiculturalismo, muito além de um conceito, representa “um principio ético que tem orientado a ação destes grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito de preservarem suas características culturais”, estes que “agem por meio de suas organizações políticas para serem reconhecidos e respeitados quanto aos seus direitos civis”, bem como direitos sociais (grifo nosso) (GONÇALVES & SILVA, 2002, p.15-20).

A questão central definidora do multiculturalismo enquanto um conjunto de princípios éticos que norteiam a ação humana na direção do respeito à diferença é a “diversidade cultural” – haja vista que, esta constituiu-se no principal problema de uma sociedade onde a convivência humana é marcada por conflitos sociais motivados pelo preconceito e pelas discriminações “étnicas, de gênero, de preferências sexuais, de gerações” e raciais34 (grifo nosso) (Idem, p. 25).

Estes autores evidenciam que o multiculturalismo não interessa à toda sociedade, mas aos grupos sociais que são e que foram excluídos dos centros de decisão e poder por diversas questões e, sobretudo, por questões culturais. Neste sentido, “a integração de negros, índios e mestiços se faz por mediação de um estado altamente interventor, onde o racismo é dissimulado pelo mito da democracia racial”; sendo assim, o multiculturalismo não se institucionalizou na esfera do Estado e, só recentemente, aparece como instrumento mobilizador destes e de outros agentes sociais. Esta mobilização caminha na direção das orientações e reformulações pelas quais têm passado a educação brasileira, e que apontam para uma concepção de currículo escolar que leve em consideração o caráter pluriétnico, pluricultural e plurirracial (grifo nosso)35 de nossa sociedade. (Ibidem). Assim afirmam que,

34 Nosso grifo faz-se necessário para explicitar que esta é uma intervenção que vem do nosso entendimento já anunciado anteriormente de que, o conceito de raça, muito além de uma perspectiva meramente científica, foi um termo histórica e socialmente construído no seio da sociedade moderna, e neste momento, apesar das ambigüidades que permeiam este conceito, faz-se necessário enquanto instrumento conceitual e político de desconstrução do que foi pejorativamente construído em seu nome. Portanto, se o conceito de raça serviu historicamente para construir o racialismo e o racismo, entendemos que o mesmo é importante instrumento para desconstruir estes instrumentos de exclusão do negro da sociedade, pois a sua negação, pode ideologicamente promover também a negação dos seus males e a necessidade de superá-los, o que a nosso ver, constitui-se num erro de natureza teórica e também, político-ideológico.

Em suma a educação multicultural propõe a reforma das escolas e de outras instituições educacionais, com a finalidade de criar iguais oportunidades de sucesso escolar para todos os alunos, independentemente de seu grupo social, étnico/racial (...) Inicialmente a educação multicultural foi vista como um esforço de combate ao racismo, mas logo transformou-se em um movimento de reforma do ensino e dos ambientes escolares ao tentar resolver questões étnico-raciais, socioeconômicas, relações de gênero, relações entre deficientes e não deficientes, ao ensino para pessoas cuja a língua materna não é a inglesa e assim por diante (GONÇALVES & SILVA, 2002, p. 55-56).

E complementam com uma síntese sobre o multiculturalismo,

o multiculturalismo tampouco a educação multicultural constituem corpo único de ideias e práticas (...) decorrem de concepções múltiplas, construídas a partir, entre outras, de referencias étnico-raciais, políticas, de gênero e de classe. (...) Buscar compreender o multiculturalismo e suas repercussões na educação implica destrinchar referencias ideológicas, elucidar encaminhamentos teóricos, descobrir práticas sociais, ressignificar práticas pedagógicas, posicionar-se politicamente e situar-se socialmente (GONÇALVES & SILVA, 2002, p. 60-71).

Colocam o multiculturalismo na dinâmica de um duplo movimento que vai da teoria à prática e vice-versa e apontam para a caminho da educação como o lugar onde este corpo de ideias ganha efetividade e lugar; e, por meio das práticas pedagógicas dos professores e profissionais da educação, torna-se instrumentos vivos da luta contra o racismo, o etnocentrismo, a violência de gênero, e toda forma de discriminação excludente, no contexto do jogo das diferenças.

Uma constatação é que o desafio de superação de uma educação racista começa pela fase inicial de escolarização, em particular na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Neste sentido, os professores que lecionam nesta etapa da escolarização inicial devem ter uma maior atenção dos poderes públicos na formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a implementação dos estudos de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, bem como das relações raciais positivas; porém, o que se vê na maioria dos casos ainda é descaso e a omissão. É preciso autonomia e protagonismo dos docentes na formulação e implementação de políticas de apoio e suporte pedagógico, das quais as políticas de formação de professores, de produção de materiais didático-pedagógicos e de reformulação curricular são pilares deste processo.

As Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História da África e Afro-brasileira, instituídas por meio do Parecer CNE/CP n. 03/2004 e da Resolução CNE/CP n. 01/2005, apontam setas para o caminho de superação dos desafios: o desenvolvimento de uma reeducação positiva das relações raciais e étnicas da Educação Básica ao ensino superior. Resta-nos saber o que e como as instituições e os

poderes públicos, principalmente nas esferas estaduais e municipais, se posicionarão, tendo em vista deslocarem-se do espaço da omissão rumo ao espaço da ação.

Se o professor é um dos protagonistas nos processos de mudanças ou de permanências que ocorrem na educação, os saberes e práticas próprios do fazer docente deve constituir-se no foco da implementação de políticas públicas de formação inicial e continuada dos profissionais da educação, de organização e reestruturação curriculares, de mudanças das teorias, métodos e processos pedagógicos, bem como das investigações científicas que buscam refletir sobre as mudanças necessárias no campo da educação.

Nossa pesquisa, como já foi anunciado, assenta-se sobre esta perspectiva, compreender como os saberes dos professores são ressignificados ou não por meio das ações de formação continuada de que participam, com vistas a mudanças e/ou permanências das práticas pedagógicas e curriculares.

PARTE II