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ASPECTO, TEMPO, MODO E AQUISIÇÃO

4. O nível proposicional 1 Espaço e tempo deíctico

Até aqui não fiz mais do que ocupar-me da primeira alínea da minha hipótese de trabalho, isto é, investigar as propriedades inerentes ao predicador que podem estar relacionadas com a categoria aspecto. No entanto, qualquer adulto tem do tempo uma concepção intuitiva que vai muito para além do tempo interno a uma situação.

Observemos de novo as frases:

(1) Moro a 10 minutos da Faculdade. (2) Daqui a 3 dias, vou-me embora. (3) Dali a 3 dias, fui-me embora.

Qualquer uma delas nos mostra que existe uma profunda relação entre o tempo e o espaço. Na frase (1) "medimos" o espaço que vai de casa à Faculdade recorrendo a uma expressão de tempo e em (2) usamos uma expressão espacial - "daqui"- para nos referirmos a uma certo momento, momento esse que está necessariamente contido no presente, visto que o deíctico aqui corresponde a um ponto do espaço em que está posicionado o falante no momento da enunciação.47 Podemos substituir daqui por de agora ou de hoje, tal como na frase (3) podemos substituir dali por de então ou de aquele dia e estaremos outra vez a usar um deíctico.

47 Ver a este propósito: Leitão (1986: 107-127).

O tempo é assim uma categoria deíctica, representável por uma linha contínua, mas que, contudo, e "para fins psicológicos e linguísticos, é conveniente ser pensada como uma sequência de momentos" (Miller e J. Laird, 1976 : 415).

_____________________________A___________B___________

Se ao ponto A fizemos corresponder agora e neste preciso momento for dita a frase (2), à direita desse ponto situar-se-á um outro - B - que poderemos imaginar que corresponderá a 3 dias

mais tarde. No dizer de Reichenbach (1947) A é o tempo do discurso ("speech time" - ST) e B é o tempo do evento ("event time" - ET).

Mas se quisermos representar a frase (3), sentimos necessidade de um outro momento, isto é, 3dias antes.

(3) Dali a 3 dias, foi-se embora.

A este outro tempo chamou Reichenbach tempo de referência ("referencial time" - RT). Percebemos agora que a boa representação da frase (2) será:

(3) Daqui a 3 dias, vou-me embora.

e que estes três pontos estão sempre em jogo, embora possam coincidir, quando produzimos discurso.

Identificámos, portanto, na frase, um tempo não-deíctico, interno à situação - o aspecto, e um outro, deíctico, que lhe é externo e que situa os estados ou os eventos uns em relação aos outros conforme são simultâneos, anteriores ou posteriores.

Os estudos sobre a aquisição da temporalidade por crianças muito jovens têm-se desenvolvido na sequência dos trabalhos de Piaget (1969) e de E. Clark (1971).48

Segundo Munro e Wales (1982 : 176) as duas correntes de estudo partilham pressupostos comuns: (1) a aquisição do tempo apoia-se em bases cognitivas não linguísticas e (2) a referência linguística ao tempo deriva de conhecimento espacial.

E. Clark (1970) observou registos de fala de crianças, feitos no início do século (Decroly e Degan, 1913; Stern e Stern, 1928; Leopold, 1949). Esses registos mostraram-lhe que os primeiros advérbios temporais usados pelas crianças inglesas, francesas e alemãs se referem ao presente e que só mais tarde começam a referir-se ao passado e ao futuro. O desenvolvimento das marcas nos tempos verbais parece seguirem o mesmo curso: as crianças usam primeiro formas verbais não marcadas para se referirem a qualquer tempo e depois continuam a usar essas formas para se referirem ao presente e ao futuro, ao mesmo tempo que o passado ("past tense") começa a ser marcado. E. Clark desenvolve trabalho experimental que confirma estes dados.

A referência a eventos simultâneos, no presente, ocorre mais cedo do que a referência a eventos ordenados, no presente ou no passado; quanto ao vocabulário, as crianças inglesas produzem primeiro and, and so, and then, a que se segue when e because e só mais tarde before e after,

until e while. Em 1971 (Clark 1973), numa experiência com crianças de três anos e meio, observa que after é mais facilmente adquirido do que before. Nessa altura chama a atenção para os aspectos

pragmáticos: sendo after muito mais usado em inglês do que before, este facto deve ter algum peso nesta ordem de emergência.

Na linha de Piaget (1969), que estuda a compreensão da simultaneidade e sequência pelas crianças, Ferreiro (1971) desenvolveu uma série de experiências destinadas a determinar em que momento a criança exprime as relações temporais recorrendo aos tempos verbais. Os resultados obtidos demonstram que as crianças só a partir dos 7 ou 8 anos recorrem a este modo de expressão e que, entretanto, outros elementos são utilizados para produzir e compreender as relações de anterioridade e posteridade.

Estudos posteriores têm continuado a investigar a aquisição da relação entre a ordem dos acontecimentos e a ordem de enunciação (Johnson, 1975; Keller-Cohen, 1987; Stevenson e Pollitt, 1987); a subordinação e a utilização de conectores e de advérbios de tempo - muito particularmente,

before e after (Amidon e Carey 1972; Harner, 1975; Johnson, 1975; R. Starc e M. L. Mammano, 1987;

Keller-Cohen, 1987); a relação espacio-temporal (Munro e Wales, 1982; Carranza et alli, 1984); e ainda alguns trabalhos de ordem metodológica que discutem a adequação do material linguístico utilizado no desenho experimental (Johnson, 1975; Crain, 1982; Stevenson e Pollitt, 1987).

4.2. Tempo deíctico e aspecto

Mas, perante as conclusões de Ferreiro (1971), Bronckart põe a questão:

Qual é então a função dos tempos verbais utilizados pelas crianças até aos 8 anos? (ver Bronckart, 1977 : 65-66).

Bronckart (Bronckart e Sinclair, 1973; Bronckart, 1976) inicia investigação para dar resposta a esta questão e conclui que os tempos verbais "servem preferencialmente para exprimir um momento do desenvolvimento da acção ou o seu grau de "accomplissement" (Bronckart, 1977 : 65-66). Estava assim lançada a opinião segundo a qual as crianças nos primeiros estádios de aquisição da linguagem usam as formas verbais para exprimir valores aspectuais e não relações temporais. E a discussão, que se mantém até hoje, com os que acham que as formas verbais produzidas pelas crianças exprimem as duas dimensões da temporalidade, ia começar.

Ora, qualquer sistema linguístico (ou interlinguístico), para que a comunicação se efective e ultrapasse o contexto imediato - 'ego -hic -nunc' - tem de dispor de recursos capazes de codificar conceitos elementares entre os quais se contam o tempo, o modo e o aspecto. E, se um adulto tem do tempo uma concepção intuitiva, as crianças, como diz Harner (1980 : 182), "têm de aprender não só o sistema conceptual das relações temporais, mas também as múltiplas formas através das quais o sistema linguístico as codifica".

Mas, como é sabido, a expressão das relações de temporalidade tem aos seu dispor, em qualquer língua natural, um intrincado e infinito número de combinações possíveis de recursos lexicais, sintácticos e morfo-sintácticos, impondo cada item restrições à sua combinação com outros e cada combinação possível ocupando o seu lugar na totalidade do sistema.

Bronckart (1977 : 51) dá-nos, em esquema, uma ideia da rede de meios de que, por exemplo, o Francês dispõe para exprimir a temporalidade.

Basta olhar para um esquema como este para vermos que o tempo deíctico e o aspecto, pelo menos em línguas como o Francês (ou o Português) são indissociáveis porque codificados pelos mesmos elementos e para vermos também que o verbo e os tempos verbais são "o maior mecanismo gramatical para exprimir relações temporais" (Miller e J.-Laird, 1976 : 412).

Estas relações temporais intrincadas têm duas consequências de natureza diversa: (1) a relativa lentidão com que as crianças desenvolvem capacidades para incluir referência temporal nos enunciados que produzem e (2) a dificuldade que os investigadores têm tido para atribuir essas referências à expressão do tempo ou do aspecto.