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EXPRESSOS PELOS PRETÉRITOS PERFEITO E IMPERFEITO

1. Português: Da classe aspectual à forma aspectual

1.1. Uma tipologia de predicadores em função das suas propriedades inerentes

Como referi na Introdução, embora a investigação tenha dedicado particular atenção ao estudo do Aspecto Verbal, não existe, até ao momento, uma teoria geral que reúna um certo consenso. Daí que a terminologia seja abundante, caótica e nem sempre adequada a uma determinada língua. Estes factores ocasionam, como facilmente se pode imaginar, enormes dificuldades para quem inicia estudos nesta área.69

Recordemos o que foi dito sobre o aspecto inerente. Vimos que alguns verbos, como adormecer ou acordar, funcionam como fronteira inicial ou final de outros, como dormir. Eles expressam mudanças de estado e fazem-nos perceber que certos eventos, e os signos que os denotam, estão intimamente ligados a outros; enquanto que verbos como tossir ou

soluçar não envolvem qualquer resultado.

Moens e Steedman (1988) levam mais longe esta ideia e afirmam que uma teoria sobre as relações temporais entre eventos, para além de primitivos puramente temporais, tem de ter em conta noções de causa e de consequência. Um evento não pode ser visto isoladamente, mas sim como um núcleo, ele deve ser pensado como a associação de um evento que é o objectivo, ou culmination, com um preparatory process e com um consequent state. Acrescentam ainda que os eventos podem ser tipificados em função de duas dimensões: uma relacionada com o contraste entre pontualidade e extensão temporal, a outra através da associação ou não de um consequent state.

69Na maior parte das classificações, sobretudo nas primeiras e mais tradicionais, nem sempre é muito fácil distinguir se se está

a falar de verbos, situações ou de formas.Um certo número de distinções clássicas pode ser referida a par de outras menos divulgadas, mas que podem dar a noção da variedade existente e da consequente dificuldade que enfrenta um leitor menos experiente e avisado.

Ryle (1949) distingue resultative de irresultative; Garey (1957) faz a distinção, a que já fiz referência, entre télico e atélico; no mesmo ano, Vendler (1957) estabelece um esquema classificatório que se impôs até hoje: dentro das situações dinâmicas, distingue achievements, accomplishements e activities.

Mittwoch (1982: 114) diz em nota:"1 Vendler's four-part classification into 'achievements', 'accomplishements', 'activities' and 'states' has been replaced in most recent work by one representable in the form of a binary-branching tree using for it major categories the three terms 'events', 'processes' and 'states'. Following Kenny (1963), Monrelatos (1978) groups Vendler's 'achievements' and 'accomplishements' together as subcategories of 'events'. On the one hand, in Comrie (1976, 41ff) Lyons (1977: 483, 711), and implicitly in Mittwoch (1980), 'accomplishements' and 'activities' are grouped together under 'processes' /.../ I have chosen nevertheless to retain Vendler's terms because I now believe that only a return to a four-part classification (not representable in one binary-branching tree) can do justice to all aspects of the problem".

C. Smith (1983) distingue: states, acrivities-arbitrary end point e activities-natural end point.

Mateus et alii (1983) distinguem entre predicadores estativos, de processo e de evento. L. C. Travaglia (1981, 1985) distingue estados, processos, processos télicos e eventos.

Veja-se o QUADRO: EVENTS STATES atomic extended + cons. CULMINATION recognize, spot, win the

race

CULMINATED PROCESS build a house, eat a sandwich

- cons. POINT

hiccup, tap, wink

PROCESS

run, swin, walk, play the piano

understand love know resemble

Observando o QUADRO, poderemos constatar que esta proposta integra e relaciona os quatro parâmetros a que fiz referência no Capítulo 5: a distinção de base - presença ou ausência de dinamismo (events/states); a implicação ou não de um resultado (+consequent/-consequent); a simplicidade ou complexidade da acção (atomic/extended) e a sua duração (culmination, point/culminated process, process).

Os autores, no entanto, não defendem que os verbos com que exemplificam cada classe mantenham os seus perfis aspectuais quando em contexto, mas observam que eles transportam consigo indícios de outros eventos ou estados com os quais estão associados. O que fazem outras categorias linguísticas, como o tempo verbal ou advérbios temporais/aspectuais é transformar entidades de um determinado tipo em outras entidades relacionadas por contingência. Exemplificando: o verbo hiccup é na classificação pontual -

consequent. Na frase Sandra was hiccupping, o verbo é "coagido", pela construção was -ing a de point passar a um processo iterativo e só então pode ser definido como um progressive state,

mas em caso algum poderá implicar um consequent state.

Esta teoria, como se vê, presta particular atenção a propriedades inerentes aos predicadores e às consequências que elas podem ter aquando da associação do verbo com outras "entidades transformadoras" ao nível do discurso. Ela adequa-se, portanto, bastante bem aos objectivos deste trabalho: analisar o papel que desempenham as propriedades inerentes ao predicador na selecção do morfema de Pretérito Perfeito ou de Imperfeito. Além disso, os autores mostram, em seguida, qual o comportamento de cada um destes tipos de verbos quando no contexto proposicional.

Não havendo nos textos-estímulo verbos da categoria point, parto dos outros quatro tipos propostos por Moens e Steedman: (1) states; (2) culmination; (3) process; e (4) culminated

process, o que, pelos exemplos (build a house, eat a sandwich), nos leva a constatar que a tipologia

tem em conta o verbo em situação.

Sendo a classificação feita em função das situações em que os verbos podem ocorrer, da intersecção destes quatro tipos resultam oito subtipos com as seguintes características: (1) states; (2) culmination, ou seja, télicos instantâneos resultativos; (3) verbos de

processo; (4) culminated process, que são os télicos durativos; (5) verbos de processo que em

situação télica se comportam como os da classe (4); (6) verbos que, conforme a situação podem ser estativos, de processo ou podem equivaler a um culminated process; (7) verbos que são geralmente estativos, mas que nalgumas situações podem denotar uma culmination; e (8) verbos de processo, atélicos mesmo em situação (classe 3) mas que, quando com um sujeito inanimado, se comportam como estativos.

Assim, por exemplo, o verbo ter (classe 7) tanto pode denotar uma culmination (ter

um filho = dar à luz; ter um ataque de coração) como um estado (ter filhos = ser pai; ter quinze anos),

por isso encontra-se na intersecção dos espaços 1 e 2. Um verbo como comer tanto pode ser (3) um processo (comer muito) como um culminated process (comer um bife); quando, numa situação como esta última, o verbo comer equivale a um verbo da classe (4), pode equivaler a almoçar (almoçar é, se quisermos, a lexicalização de comer um bife e deixa-nos perceber o porquê de tantos falantes não-nativos em fase inicial de aprendizagem do Português o ignorarem e usarem a forma pragmática "comer almoço").

O verbo pensar, como muitos outros de actividade mental, encontra-se num espaço (6) onde se cruzam as várias possibilidades.

É portanto previsível que os falantes não-nativos experimentem maiores dificuldades no que respeita à produção de formas verbais construídas sobre verbos mais vulneráveis à situação.

E depois de analisarmos o corpus, talvez possamos dar alguma contribuição em relação às perguntas formuladas por McShane et alii (1986) e citadas na Introdução ao Capítulo 5 .

Antes de passar adiante, gostaria de fazer uma ressalva quanto a esta proposta de classificação. Se fizermos um levantamento dos verbos utilizados pelos diferentes autores para exemplificarem um dado tipo, verificamos que a escolha recai invariavelmente sobre

verbos e situações que não apresentam dúvidas quanto à representação mental que qualquer um de nós tem deles. Ninguém duvida que win the race/ganhar a corrida é uma culmination ou que built a house/construir uma casa é um culminated process. No entanto, quando se trata, como é aqui o caso, de classificar um conjunto de verbos não previamente seleccionados, muitos são os que apresentam propriedades menos bem definidas.

É verdade, como afirma C. Smith (1983 : 499) que "idealized situation types do not vary for the speakers of different languages". É exactamente por isso que podemos adoptar uma tipologia feita, neste caso, para o Inglês, adaptá-la ao Português e com ela testar um

corpus produzido por falantes de línguas maternas muito diversas. Mas também é verdade

que, de muitos verbos e situações, qualquer falante, seja qual for a sua língua materna, não tem uma representação ideal, clara e definida. A propósito, qual é a sua representação mental do verbo subir?

I. Bonnotte (1988) seleccionou nove verbos franceses, com os quais formou três grupos em função da sua duração e resultatividade intrínsecas: (1) verbos arresultativos (AR) (marcher, jouer, danser); (2) verbos resultativos durativos (RD) (avancer, monter, preparer); (3) resultativos instantâneos (RI) (renverser, exploser, casser). Pediu a uma população de 42 estudantes universitários que representassem graficamente (um traço +longo para a duração; uma barra vertical/ausência de barra vertical para a resultatividade) a sua representação mental da acção denotada por cada um dos verbos. Concluiu a autora que a variável duração "não põe problemas". Obteve claramente duas categorias: uma durativa (AR e RD) e outra não-durativa (IR). Pelo contrário, no que diz respeito à variável resultatividade, concluiu que é difícil opor apenas duas categorias. Com base nos resultados obtidos, a autora conclui que a categoria RD é uma categoria intermédia já que monter parece ser percepcionado como não-resultativo, enquanto que os resultados para preparer e avancer não são conclusivos.70

O problema da duração não se pôs aos informantes de I. Bonnotte porque os verbos seleccionados, sobretudo os da categoria RI, são ideais. No entanto. ele ter-se-ia posto, com certeza, se se vissem confrontados com verbos como enforcar-se, esquecer-se,

lembrar-se ou mandar (enviar).

70A propósito do conceito de relevância, Bybee (1985: 13) refere três tipos de verbos de movimento, identificados por L.

Talmy (1980): um tipo que lexicaliza o modo como o movimento acontece (andar, voar, nadar, escorregar, saltar, etc.); um outro que especifica o tipo de material que cai (chover, cuspir, pingar, etc.); e ainda um outro que inclui o curso ("path") do movimento (entrar, sair, subir, passar, voltar, etc.). Talmy chama assim a atenção para o curso e não para o resultado do verbo subir.

Há, por conseguinte, alguns verbos incluídos nesta classificação cuja representação mental varia muito de indivíduo para indivíduo, mas já nos habituámos a que um maior ou menor grau de "fuziness"/indefinição também seja uma propriedade inerente a qualquer categoria semântica. Contudo, isso não invalida a operacionalidade desta proposta e a possibilidade de ela nos fornecer informação válida exactamente porque a dificuldade que o investigador sente ao classificar os verbos não é com certeza muito diferente daquela que o falante não-nativo experimenta quanto à relação predicador/morfema.