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ASPECTO, TEMPO, MODO E AQUISIÇÃO

1. Uma hipótese para o estudo

Retomemos o desabafo da estudante alemã:

"Pensei? Pensava? Estes verbos são horríveis!"

Observemos agora algumas frases com o verbo pensar: (1) Penso, logo existo.

(2) Pensava que ele era mais novo. (3) Pensar dá muito trabalho!

(4) Estou a pensar na aula péssima que dei hoje. (5) Já pensei o esquema do artigo para o jornal. (6) Ontem, passei pela 'Brasileira', e pensei em ti. (7) Quando passo pela 'Brasileira', penso em ti. (8) Quando passava pela 'Brasileira', pensava em ti.

Na frase (1), pensar refere-se a uma capacidade própria do ser humano e só por brincadeira se poderá assistir a um diálogo do tipo:

"- O que estás a fazer? - Penso, logo existo."

No entanto, a frase (4) Estou a pensar na aula péssima que dei hoje pode muito bem ser uma resposta adequada à mesma pergunta. Assim (4) "estar a pensar na aula péssima que dei hoje" ou (5) "pensar o esquema do artigo" são actividades que, às vezes, até (3) "dão muito trabalho", e que ocupam exactamente a capacidade de pensar que, como seres humanos, temos. O mesmo não se poderá dizer de (2): "pensar que uma pessoa é nova ou velha". Neste caso, não se trata de uma actividade, mas de uma opinião ou de uma convicção que se mantém inalterada até evidência contrária.

Mas, se voltarmos a (4) e (5), verificamos que também apresentam uma diferença importante entre si. (4) "Pensar na aula que dei hoje" e (5) "pensar o esquema do artigo" também não são a mesma coisa. Posso pensar nessa famigerada aula durante uma hora ou cinco minutos, posso continuar a pensar ou deixar de pensar nela e o resultado será o mesmo; mas se deixar de (5)

"pensar no esquema do artigo" antes de o considerar satisfatório, e isso pode demorar cinco minutos ou três dias, então não terei o esquema pensado.

Quanto a (6), (7), (8), "pensar em ti", exige também que disponibilizemos a nossa capacidade de pensar e que, pelo menos durante um certo tempo e a propósito de qualquer outra ocorrência, como parece ser aqui o caso, nos "lembremos" da pessoa em questão. Esse acto pode ser único, como em (6), pode ser repetido, como em (7) e (8), e pode ser presente (7) ou não, (6) e (8).

É claro que o verbo pensar pode ocorrer num número infinito de situações que, por sua vez, podem implicar também um número infinito de formas. É claro também que cada língua codifica de modo diferente cada um destes níveis. No entanto, a representação mental que diferentes seres humanos adultos terão de uma mesma situação será idêntica. A diferença fundamental está na forma que cada língua consagrou para fazer referência a essa situação. Por exemplo, o Português "escolheu" a oposição Perfeito/Imperfeito, para, entre outras funções, marcar a oposição evento único no tempo passado ((6) pensei em ti) e evento múltiplo no mesmo tempo ((8) pensava em ti).

E é por isso que só ao nível da forma e não da situação podemos distinguir entre a situação (4) e ((6), (7), (8)).

Isto é, um único predicador, pensar, pode constituir o núcleo de uma série de situações que, por sua vez, podem conduzir a diversas formas aspectuais.

Na Introdução ao Capítulo 1, optei por considerar que a dificuldade manifestada pela estudante alemã poderia resultar de duas formas verbais co-ocorrerem num mesmo tempo deíctico - o passado. Daí concluí que elas codificavam um outro conceito: o aspecto verbal. Vimos entretanto, à luz de Slobin e de Andersen, que havendo mais do que uma forma para codificar uma mesma função e não sendo a sua distribuição evidente, a aquisição resultará difícil e demorada.

Vendler (1957 : 110) afirma: "There is /.../ a group of verbs with conceptual divergences of their own /.../ The group of verbs I have in mind comprises philosophically notorious specimens like to think, to known, to understand, on the one hand, and to see, to hear and their kindred on the other".

Num estudo sobre a aquisição de verbos mentais, feito com crianças entre os 2 e os 4 anos, Shatz et alii (1983) concluem que os verbos mentais são inicialmente usados com uma função comunicativa e não de referência mental. Nenhuma criança observada usou verbos mentais antes dos 2;6 e todas aquelas que os usaram já antes o tinham feito com funções conversacionais (isto é, como bordões: "you know..."; ou para modalizar um pedido: "I think I want a cookie").

A afirmação de Vendler pressupõe a existência de outros grupos, provavelmente sem ou com menos "divergências conceptuais" e com outras características.

É possível então que a estudante se estivesse a referir (também) a propriedades deste lexema que, tornando-o tão vulnerável à situação, contribuam para dificultar a distribuição dos morfemas de Perfeito e Imperfeito, isto é, dificultem a produção da forma aspectual.

A avaliar pelo comportamento do verbo pensar, podemos constatar que um mesmo

predicador pode, em diferentes situações, apresentar potencialidades que variam consoante essa

mesma situação e, consequentemente, evidenciar um comportamento sintáctico-semântico muito variado. Dito de outro modo: para além do predicador, outros factores podem concorrer para a "constituição temporal interna da situação" (Comrie, 1976 : 5).

Timbarlake (1982 : 309-310) vê a estrutura semântica de um evento, como o resultado de "um certo número de níveis encaixados uns nos outros" ("nested levels"):

a base (a semântica inerente à base lexical)

o verbo (a base + certas operações semânticas, por exemplo, a marcação do início da acção

ou a estativização)

o predicado (o verbo + os seus argumentos sintácticos, incluindo sujeito e complementos)

a proposição (o predicado + a sua posição no espaço temporal e modal)

e a narrativa (a proposição + a sua relação com outros eventos dentro da narrativa)

E acrescenta: "Na prática, não é necessário (ou fácil) distinguir todos estes níveis de forma rigorosa. Geralmente é suficiente aludir aos dois macroníveis da estrutura semântica que podem ser denominados como o lexical (incluindo base, verbo e predicado) e o proposicional (incluindo a proposição

in stricto senso e a narrativa)".

Isto quer dizer que, para abandonarmos uma qualquer forma aspectual (pensei em ti, por exemplo), temos de ter em conta, não só o predicador (pensar) mas também o predicado ou situação (pensar em ti ) e as suas propriedades e todos os outros elementos que, ao nível da frase ou até do texto, concorrem para a definição dessa forma.

Com certeza por tudo isto, tem sido repetidamente afirmado que o verbo é a área mais complexa da gramática de qualquer língua. Isso porque, na maior parte das línguas, ao nível do enunciado, ele é o elemento do léxico que mais informação pode fornecer.

O grande número de trabalhos que a Linguística e a Psicolinguística lhe têm dedicado mostra a importância que lhe é atribuída.

J. McShane et alii (1986 : 275), no seu artigo "Verbs and Time" apontam algumas questões

que, segundo eles, ainda não obtiveram uma resposta satisfatória, em relação ao verbo, na área do desenvolvimento da linguagem:

"Nos primeiros estádios de aquisição da linguagem, que tipos de verbos são aprendidos primeiro?

O facto de certos verbos serem aprendidos primeiro resulta da frequência que têm no input ou resulta de limitações conceptuais?

Que curso segue o desenvolvimento até se estabelecer a denotação correcta de um verbo? Os primeiros verbos a serem aprendidos estão organizados numa única categoria ou em várias subcategorias?

Se, como alguns defendem, há uma organização subcategorial, será que esse facto afecta a forma como a flexão é aprendida?

Que tipos de reorganização fazem com que o sistema se desenvolva?

Como é que as crianças aprendem os princípios de concordância gramatical que governam a relação entre os verbos e os outros componentes do discurso?"

E mais adiante (p. 277):

"Quando as crianças começam a aprender a flexão, elas juntam esses morfemas a um verbo qualquer ou só a determinadas subcategorias?"

Já vimos, a propósito de alguns Princípios Cognitivos Operatórios que os investigadores têm procurado respostas para estas questões na área da aquisição de línguas maternas.

No entanto, as mesmas questões são transponíveis para a área da segunda língua e é desejável que também a elas procure responder a investigação nesta área, apoiada, como é desejável, pelo trabalho já realizado para as línguas maternas.

Concretamente para o caso do Português, o facto de as crianças brasileiras inicialmente restringirem o morfema Pretérito Perfeito a verbos como cair, acabar ou quebrar para exprimir acções completas, como constataram Simões e Gammon (1979), pode dar-nos uma pista de trabalho importante. Ora, como disse na Introdução, também os estudantes de Português língua não- materna parece associarem preferencialmente a certos verbos morfemas de Perfeito e a outros verbos morfemas de Imperfeito.

Estes factos levam-me a pensar que a relação predicador-morfema escolhido não é completamente indiferente.

Contudo, guiada pela minha experiência de contacto com falantes não-nativos, guiada pelo modelo escolhido e pelos trabalhos de Slobin que o antecedem, também não tenho dúvidas de que a língua materna do falante não-nativo tem de ser tomada em consideração, bem como a língua em aquisição.

Sendo assim, parto para o estudo da aquisição dos aspectos verbais por falantes não- nativos de Português da seguinte hipótese:

A MAIOR OU MENOR DIFICULDADE DE AQUISIÇÃO MANIFESTADA PELO FALANTE NÃO

NATIVO, NO QUE RESPEITA À AQUISIÇÃO DOS ASPECTOS VERBAIS EXPRESSOS PELOS PRETÉRITO

PERFEITO E IMPERFEITO, ESTÁ RELACIONADA COM

(1) PROPRIEDADES INERENTES AO PREDICADOR,

COM (2) A LÍNGUA MATERNA DE CADA UM

E COM (3) CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DO PORTUGUÊS.

Começarei então por tentar fazer o levantamento das propriedades inerentes aos predicadores que podem ser relevantes para a estrutura semântica de um evento.