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O Novo Paradigma Científico e a Biologia da Conservação

5.1. A Biologia da Conservação, a Crise Ecológica Mundial e o Novo Paradigma

5.1.2. O Novo Paradigma Científico e a Biologia da Conservação

Dentro da Ciência, nos últimos 30 (trinta) anos, emerge um novo paradigma (SANTOS, 2000). Trata-se, em verdade do resgate de uma maneira verdadeiramente experiencial de se produzir o conhecimento. Tal método influencia e influenciará a produção de conhecimento no campo da conservação da natureza e da gestão ambiental. Várias são as ciências hoje que procuram a construção de uma epistemologia que busca superar segregações

e dicotomias entre os vários ramos do conhecimento (SANTOS, 2000; LEFF, 2004). A Biologia da Conservação também representa uma das inúmeras manifestações científicas do novo paradigma e apóia reações não apenas epistemológicas dentro da ciência, mas também reações políticas e jurídicas ao denominado “modelo desenvolvimentista”.

O paradigma científico emergente possui quatro características básicas (SANTOS, 2000) e podem ser identificados na Biologia da Conservação. Primeiro funda-se na idéia de que todo conhecimento científico-natural é também científico-social, buscando quebrar a dicotomia que se criou entre homem e natureza.

Depois, segundo o novo paradigma, todo conhecimento é ao mesmo tempo local e total, ou seja, busca evitar a excessiva fragmentação e especialização do conhecimento. Aqui nasce uma epistemologia ambiental (LEFF, 2000; LEFF, 2004), que faz dialogar em vários graus de complexidade (pluridisciplinariedade, interdisciplinariedade e transdisciplinariedade) os vários ramos da ciência e do conhecimento humano (GUSTIN; DIAS, 2000).

Em terceiro lugar, todo conhecimento é auto-conhecimento, isto é, a ciência passa a considerar os valores do cientista e dos financiadores da pesquisa como elementos da pesquisa, variáveis que também devem ser ponderadas. E, por fim, todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum, isto é, deve ser elemento a dialogar com os saberes não científicos, democratizar o saber como possibilidade de evolução cultural e espiritual do homem, sem, contudo, perder o compromisso de uma busca responsável e desmistificada pelo conhecimento.

Pode-se afirmar que a Biologia da Conservação surge como ciência construída nos moldes do novo paradigma científico. Seu próprio objeto lhe impõe essa condição. Não obstante seu objetivo primordial seja a conservação da biodiversidade, o meio social é também é também trabalhado pela Biologia da Conservação, ainda que se trate de um objeto secundário.

O biólogo da conservação por vezes tem de enfrentar, ou ao menos considerar na sua pesquisa, questões sociais e políticas, muitas vezes em parceria com outros ramos da ciência, com os habitantes humanos do ambiente que se estuda e com o Estado, pois são as atividades humanas a maior interferência hoje na biodiversidade, mais precisamente a causa de sua perda. Ademais é possível afirmar que o homem é o problema ecológico do homem. Guardadas as devidas proporções, o biólogo da conservação é também um gestor ambiental de conflitos e recursos materiais indispensáveis à existência humana, mas cujo objetivo principal é a preservação da biodiversidade.

Verificam-se, portanto, todos os pressupostos do paradigma científico emergente, nos termos definidos por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2000) de uma nova epistemologia científica dentro do objeto e do método da Biologia da Conservação. Em primeiro lugar porque o objeto da Biologia da Conservação é definido por um valor ético e econômico claro, qual seja, proteger a biodiversidade seja por seus valores intrínsecos, construções experimentais, éticas e religiosas do homem, seja por seus valores utilitaristas de serviços, bens, informações e estética que servem ao homem e sua qualidade de vida.

Na Biologia da Conservação o cientista não pode se distanciar de si mesmo afirmando uma falsa neutralidade e imparcialidade na produção do conhecimento. Pelo contrário; é pressuposto metodológico do biólogo da conservação buscar uma imparcialidade real, reconhecendo valores no seu processo de pesquisa e lidando claramente com eles. Afirma-se aqui, portanto, que todo conhecimento é auto-conhecimento, pois a ciência assume um valor ético como elemento metodológico e o cientista passa a não se distinguir de seu objeto de estudo (SANTOS, 2000). A ciência moderna tem de considerar que a experiência é um fator indispensável e fundamental para todos os ramos do pensamento humano e não pode resumir a experiência do aprendizado ao conceito de “experimento”, onde o experimentador supostamente poderia permanecer tanto quanto possível fora da experiência. Ao contrário, o experimento é parte da experiência e esta não se resume ao trabalho controlado de laboratório (SHAH, 1977).

Não que o fato de se admitir um objetivo para a ciência a torne “parcial” e, na origem, destituída da isenção necessária para se chegar à verdade. Trata-se de se considerar um elemento objetivo muitas vezes oculto nas pesquisas científicas, que perpassa subliminarmente as ações e direções que são tomadas por cientistas e suas instituições. Trata-se aqui de adotar uma postura de “sóbria indiferença” perante o objeto de pesquisa (VARGAS, 2003). Na Biologia da Conservação a assunção de um valor objetivo lhe dá um norte e a torna mais comunicável ainda (POOPER, 2003). As verdades inicialmente assumidas, seus axiomas, não são dogmas, mas referenciais de pesquisa que por certo irão evoluir com o tempo, à medida que o conhecimento sobre os fatos avança. Por isso, correto se dizer que o conhecimento produzido pela Biologia da Conservação é auto-conhecimento, isto é, auto-conhecimento tanto para o cientista da conservação, como para a própria Biologia da Conservação.

É também possível se verificar a atuação do novo paradigma científico emergente na Biologia da Conservação, uma vez que dentre seus princípios de atuação mais importantes está o de que a presença humana, as necessidades humanas, as correções de rumo e valor que devem ser discutidas pelo homem na sua relação com o meio ambiente, devem ser incluídas no planejamento da conservação (MEFFE et al, 2005; RICKLEFS, 2003).

Confirma-se aqui também que todo conhecimento científico-natural é também científico-social e, como o sucesso do objeto dessa ciência é o conhecimento sobre a biodiversidade e a sua proteção, isso implica dizer que ela deverá constituir-se em senso comum social, ou seja, numa nova postura cultural da sociedade frente ao meio ambiente, e não apenas um conhecimento restrito à academia. A Biologia da Conservação é, por exemplo, fonte de conhecimento e parte do fundamento teórico da educação ambiental e cidadã do indivíduo privado e coletivo. Exemplo claro disso são os inúmeros projetos de conservação hoje existentes que não se limitam à investigação e observação da interferência das atividades humanas nos processos ecológicos e biológicos, buscando ir além e entender e enfrentar as causas sociais, políticas, econômicas e jurídicas que afetam esses processos e, desse modo, incentivar novas posturas e criar novos mecanismos econômicos, jurídicos, sociais que levem a sociedade à adoção da preservação efetiva da vida em todas as suas formas (FELFILI et al, 2005; MEFFE et al, 2005).

Por fim, trata-se de uma ciência total e local. A Biologia da Conservação é uma ciência, em primeiro lugar, interdisciplinar, ou seja, que busca a coordenação dos princípios e dos métodos de várias outras ciências e ramos do conhecimento como forma de enfrentar problemas teóricos específicos e da sua aplicação prática (GUSTIN; DIAS, 2000). Em segundo lugar, porque não só faz interagir campos do conhecimento acadêmico, como também do senso comum popular, isto é, do conhecimento e práticas efetivamente realizadas pelo cotidiano social (SANTOS, 2000). Desse modo ela busca influenciar o comportamento social e por ele é influenciada, não de forma passiva, mas crítica, objetivando a autocrítica e a revisão das teorias e práticas diante de novas constatações e problemas empíricos e teóricos, vez que, toda ciência, para ser ciência, deve se reconhecer falível e passível de evolução (POOPER, 2003, MAGNUNSSON, 2003).

A Biologia da Conservação, assim como outras ciências, nasce em resposta à fragmentação do conhecimento (sem diálogo com o todo) e ao mesmo tempo busca evitar a sua homogeneização (valorização dos saberes especiais e locais). Trata-se de uma ciência interdisciplinar que, tendo como ponto de partida as ciências naturais, sobretudo a Ecologia e a Biologia, busca fundir o objeto científico de disciplinas “naturais” com “sociais”, evoluindo para uma ciência cujo objeto será de tal forma próprio, que demandará uma epistemologia peculiar, formando uma ciência transdisciplinar (LEFF, 2000; LEFF, 2004; GUSTIN ; DIAS, 2000). Boaventura de Sousa Santos (2000) lembra que muitas são as ciências que estão a representar esse novo paradigma e cita, como exemplo de ciências que possuem epistemologia muito própria e desafiadora, semelhante à Biologia da Conservação, a Psicologia, a Geografia, a Ecologia, a Astronomia, a Arqueologia e a Paleontologia e Paleoecologia, ciências, aliás, em estreita ligação com a Biologia da Conservação.

A Biologia da Conservação possui ainda uma característica que lhe é própria: é uma ciência criada para enfrentar uma crise, a crise da biodiversidade. Ela muitas vezes tem de desenvolver teorias e testá-las em face da urgência e da iminência da destruição de uma espécie, população ou habitat sobre os quais não há ainda informação suficiente. Por essa

razão os autores e teóricos da Biologia da Conservação e os ecologistas18 desenvolveram princípios de ação e cuidado fundamentais para o desenvolvimento de seus trabalhos, princípios esses que acabaram por ser incorporados às legislações nacionais e internacionais, como é o caso dos princípios da precaução e da prevenção e do valor intrínseco da biodiversidade (MACHADO, 2008; ANTUNES, 2008; MILARÉ, 2007; MEFFE et al, 2005). Aqui a Biologia da Conservação mostra sua interação com a Ética, com a Ciência Política e com o Direito. Vê-se, portanto, que a Biologia da Conservação é uma ciência extremamente revolucionária, seja por seu objeto, seja pelo seu método ainda em construção, seja pela relação que estabelece com outras ciências e com os conhecimentos não científicos (senso comum).

No bojo dessa nova ciência, cujos desafios não diminuem suas potencialidades, é que se constrói a base teórica e prática para a criação e gestão de uma série de estratégias de conservação, que visam combater as principais causas de perda de biodiversidade do planeta, além de outros problemas ecológicos e sociais.

Dentre essas estratégias estão as unidades de conservação da natureza e seus instrumentos de gestão, quais sejam, os planos de manejo e os conselhos gestores. As unidades de conservação, portanto, juntamente com seus instrumentos de gestão compartilham o mesmo destino da ciência que lhes orienta, qual seja, promover a proteção da vida em todas as suas formas, descobrindo e promovendo, para tanto, a construção de novos valores sociais e a adoção de novos padrões de vida para a sociedade atual, seja no campo tecnológico, seja no campo das relações humanas.