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O olhar da autora: a autoconstrução em seus processos

Sementes: Diagramas

1.2 O olhar da autora: a autoconstrução em seus processos

Meu olhar advém de minha experiência em relação ao tema da autoconstrução e da assistência técnica. Trata-se de uma experiência empírica no universo molar (macro) do mundo da representação, no âmbito da Macropolítica da Objetivação.

Existem distintos modos de fazer arquitetura, e em sua essência arquitetura é abrigo dentro de um processo cultural59, vou ver a

autoconstrução como um desses modos de fazer, que advém dos

saberes astuciosos apreendidos da prática pela necessidade de se abrigar. E para além do abrigo, a autoconstrução pode materializar desejos e sonhos das pessoas que a realizam. A autoconstrução é entendida aqui tanto como o “processo” de construir quanto como o resultado, “é uma autoconstrução”.

A palavra autoconstrução vem do composto da palavra auto, que vem do grego autós que “Exprime a ideia de próprio, de si mesmo” (MICHAELLIS, 1998, p. 263), com construção, do grego tékton que tem diversos entendimentos: “1. Ação de construir. 2 Arte de construir. 3. Edificação, edifício. 4. Modo como uma coisa é formada” (MICHAELLIS, 1998, p.568).

Mesmo tendo o significado “de próprio, si mesmo” o seu processo quase sempre não é individual, é de uma única pessoa, mas de diversas pessoas, de diversas mãos. No entanto, posso indicar que vem de uma pessoa no sentido que esta toma à frente, que leva a cabo aquele processo longo: é uma necessidade de abrigar-se, que é atravessada por um desejo de construir, um sonho a ser realizado,

59 RAPOPORT, Amós. Vivienda y cultura. Barcelona: Gustavo Gili, 1972. Alguns

autores relacionam o “saber popular” à arquitetura vernácula, que vem do latim

vernaculu, que significa “próprio do país a que pertence, nacional. Próprio da região em que está” (LEMOS, 1979, p.16). Outros autores relacionam a autoconstrução com a “arquitetura popular” (WEIMER, 2005). A palavra popular que vem do latim populare que significa “pertencente ou relativo ao povo; próprio do povo; comum,

dela que tomou a iniciativa, ou mesmo para satisfazer desejos e

sonhos de pessoas a que tem afetos.

A autoconstrução vai acontecer a partir dos saberes das pessoas e, não necessariamente, somente dela, mas com a ajuda e participação da família, parentes mais distantes, amigos e vizinhos com alguma prática, e também com a contratação de mão-de-obra “especializada”, uma técnica mais apurada do que a do morador/ moradora: pedreiros, pintores, eletricistas, e mestres de obras. A autoconstrução é um processo complexo dentro de sua condição.

Da afirmação de que “a autoconstrução é solução e não problema” (TURNER apud Kapp, 2005) a muitos outros autores que afirmam ser “problema”, “precariedade”, vejo-a num intermezzo, onde ela é isso

e aquilo. Cara e coroa. Problema e solução são dois lados da mesma

moeda. Esta tese quer mostrar o outro lado moeda, já que até então muitos estudos pesaram por um lado, o do “problema” das autoconstruções, que é fato. Não que não seja problema, mas prefiro ver e aspirar soluções que se apresentam ao investigar a autoconstrução.

Outra constatação é que nos debates que assisti no URB Favela (DENALDI, 2014), ouvi coisas parecidas como: “...não se conhece a favela...”; “não se sabe as regras”; “as regras são outras”...”os mesmos dispositivos, já conhecidos, não funcionam ali”.

É assim que chego ao estudo pioneiro de “assistência técnica” por

Carlos N. F. Santos (1982) no Rio de Janeiro, no final da década de 1970. Ele vai ver potência nos territórios “dos pobres” e nos modos de construir desses. Segundo o arquiteto:

Os moradores mais pobres das favelas criaram suas expressões vernaculares, capricharam em gramáticas e sintaxes que desandaram a escrever de forma certa (dadas suas premissas e necessidades) nos lugares errados. (SANTOS, 1982, p. 86)

Segundo Santos, errados na perspectiva dos donos do poder, que reconheceram que não eram onipotentes no controle do discurso espacial urbano, para o autor os arquitetos teriam o papel de reforçar

“o poder criativo dos pobres e o de ajudar a empurrá-lo para cima e a impô-lo como inspirador básico de políticas. Teríamos de ajudá-los com os registros de memória e com os aparatos de legitimação que manejamos (...)” (SANTOS, 1982, p.89).

Seriam “outras as lógicas de construir” que regem o processo de autoconstrução. A pergunta que me veio então na época e me instigou a reestruturar o meu caminho de pesquisa foi: Por que não

seguem as mesmas regras? Por que não estão dentro dos padrões já conhecidos das normas e leis urbanísticas? Por que elas acontecem?

Cheguei à conclusão que era preciso entender de onde elas partem, de que condições as autoconstruções são pensadas, são elaboradas. As condições de onde nascem os saberes das pessoas que autoconstroem não são as mesmas de onde partem os saberes dos arquitetos (PELA, 2015).

Mas por que são outras lógicas de construir? Porque os condicionantes são diversos dos que condicionaram as normas, as regras, as leis até então vigentes. E também, porque no ensino de arquitetura os condicionantes apreendidos pela maioria dos arquitetos para pensar, elaborar e ver a arquitetura brasileira ainda são de referências fora no lugar, como alerta Marina Waisman. Ainda o pensamento da cidade moderna e tudo que ela representa, como os conceitos de lote, quadra, rua com medidas padrões para um homem, que era o homem ideal moderno, o modulor. Daí as normas brasileiras vão ser definidas a partir desse único homem (europeu, culturalmente diferente) com condições ideais para fazer uma arquitetura ideal, e o que é daqui de dentro de nossa condição se torna “ilegal”.

A autoconstrução é um processo de que se transforma de momento a momento, em um tempo aberto aos fatos cotidianos que se compõem com e a partir de uma multiplicidade de forças que atravessa quem autoconstrói. Essas forças em tensão podem ser lidas por uma multiplicidade de diagramas, que as representam. A condição pode ser lida pelas forças econômicas, do solo/terreno, de necessidades, de saberes, do “gosto” estético, de afetos, de romances, de conforto, de ventilação, de solidariedade, de amizades, de vizinhança, de racismos, de machismos, de violências, de sustentabilidade, de reciclagem, de reutilização, redução (RRR), etc. Enfim, uma multiplicidade de forças pode atravessar as pessoas que autoconstroem.

No processo as pessoas que autoconstroem em diferentes arranjos sociais como família, indivíduo, coletivos, ou sociedades agem com afetos e percepções para construírem uma casa. Meu olhar atualiza oito casas autoconstruídas num processo de consolidação de 15 a 30 anos, dentro de um território autoconstruído já consolidado. A casa autoconstruída é entendida aqui como um estrato, em um jogo de forças em tensão. Os diagramas de forças acontecem em um tempo aberto. E por ser em um tempo aberto as forças, que têm potências de diferentes graus, vão expor múltiplos diagramas de acordo com os momentos recortados.

Esta tese tem como argumento que os processos de autoconstrução realizam-se partindo de “premissas e necessidades” que advém de uma condição de vida diferente das consideradas pelos saberes dos arquitetos, e que por ser diferente produz modos de fazer próprios. Para entender esses processos considero que a autoconstrução é uma obra aberta. Aberta a que? Aberta a múltiplos diagramas que, sendo uma exposição de relação de forças, possibilita delinear caminhos para a compreensão tanto da condição de que partem as pessoas que autoconstroem quanto compreender os processos e as autoconstruções que deles resultam: uma obra aberta!

Alguns estudos sobre a autoconstrução nas cidades brasileiras quase sempre pautaram a abordagem no âmbito da materialidade dessas, identificando-as com a precariedade. É fato também, que seus construtores, sempre estiveram dentro de uma condição de escassez econômica, a qual nenhum estudo pode negar, e que a materialidade da autoconstrução tem traços de precariedade, mas não é só isso. Considero que precariedade também é uma autoconstrução aberta, e por ser aberta, a casa autoconstruída está precária, e não é. A autoconstrução pode ser melhorada, ampliada, cuidada, reformada, a partir do momento que as linhas de forças se modifiquem em suas potências e exponham uma condição favorável às melhorias. Evidentemente que a linha econômica é umas das mais importantes que pode modificar a condição e torna-la favorável à melhoria, mas não é a única. Pois como é assumido aqui, a casa autoconstruída resulta de múltiplos diagramas de forças que acontece em um tempo aberto e que atravessam os indivíduos que são seus moradores e moradoras.

1.3 Sementes escolhidas – diagramas