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Sementes escolhidas – diagramas Qualquer narrativa que se pretende formular, se caracteriza pela

Sementes: Diagramas

1.3 Sementes escolhidas – diagramas Qualquer narrativa que se pretende formular, se caracteriza pela

forma de pensar. Ao longo de minha trajetória docente, e mais recentemente, pelo processo de doutoramento me aproximei de uma nova forma de pensar, uma vertente filosófica que emergiu na revolução cultural da década de 60 do século XX: o pensamento rizomático adotado pelo meu orientador. A revolução cultural ocorrida na década 60 do século XX e na qual, novas vertentes filosóficas, científicas e artísticas emergiram no sentido de “descontruir” a herança cultural da Modernidade, e isso, não no sentido de destruir esse importante legado, que permanece coexistindo com as novas formas de pensar e criar, mas de reconhecer o limite e o alcance da forma de pensar dialética, com seu plano de Imanência (filosófico), seu repertório conceitual e sua lógica binária. Pensamento este ainda hegemônico pelo mundo afora, caracterizando o processo de globalização desenvolvido pelo capitalismo pós-industrial das atuais “Sociedades de Controle”. O pensamento Rizomático foi criado pelo filósofo Gilles Deleuze, em parceria com o pensador e psiquiatra Félix Guatarri, autores da seminal obra “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia” (DELEUZE&GUATARRI, 1997).

Trata-se de um pensamento que é uma pragmática, pois procura resolver questões e problemas. É ao mesmo tempo uma Estratoanálise, pois parte do acúmulo, sedimentação de saberes poderes, enquanto estratificações antropomórficas históricas, e também é uma Esquizoanálise, pois, caracteriza a segmentariedade, a fragmentação, a descontinuidade existente entre as práticas sociais. Pode ser também uma cartografia, um mapa aberto conectável em todas as suas dimensões, reversível e suscetível de receber modificações constantemente, ele pode ser rasgado,

revertido, adaptar-se à montagem de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social.

O pensamento rizomático é uma micropolítica, diferente da macropolítica da objetivação - do Real e do Possível, pois a micropolítica da subjetivação, se caracteriza pela relação conceitual Virtual e Atual. A macropolítica e a micropolítica coexistem, todavia são de natureza diferente. Enquanto a macropolítica do mundo da representação lida com o “Fora”, ou seja, com os saberes enquanto estratificações antropomórficas, e os poderes como ações, forças que têm a capacidade de afetar e ser afetado. Deleuze&Guatarri abordam a essa questão do “Fora” em sua dimensão coletiva e consideram o que se diz e o que se faz enquanto “agenciamentos coletivos de enunciação e agenciamentos coletivos maquínicos”.

O “Fora” expressa um conjunto de atividades humanas em diferentes graus e níveis da relação saberes/poderes (estratificações e agenciamentos). Contudo o “Fora” não se esgota em si mesmo, mas dá sequência, pois ele se “Dobra” no “Dentro” de indivíduos ou em uma coletividade de diferentes indivíduos, promovendo o “Processo de Subjetivação”, ou seja, a construção, a fabricação de subjetividades, e isso, tanto individualmente quanto coletivamente, no sentido molecular (micro) do Virtual e do atual, caracterizando assim o lugar da micropolítica, particularmente a Micropolítica da Subjetivação” (MAGNAVITA, 2019, p.6)

No pensamento da macropolítica não há linhas de fuga, não foge, não se desterritorializa, ele apenas resiste. Na micropolítica o pensamento rizomático evita “linhas duras” do consenso ou dissenso do Fora do mundo da representação da macropolítica da objetivação, porém adota “linhas de fuga” para um novo território. Além de resistir, coexistindo com as linhas duras, e acompanhando a macropolítica, o indivíduo procura criar, pois a subjetividade é o lugar da criatividade. Na autoconstrução, e na maioria das vezes, trata-se de recriações, interpretando sobre coisas já criadas.

Essa “dobra do fora no dentro” permite a construção de “territórios existenciais autorreferente” individuais ou coletivos, e isso, enquanto estratificações agenciadas, a exemplo de experiências existenciais acumuladas ao longo da vida por um indivíduo.

Na autoconstrução os saberes/poderes (quem sabe pode) do proprietário/a ou de um mestre de obras, ou mesmo de um pedreiro, de um pintor passa pelo processo subjetivo de conhecimentos (saberes) em relação ao processo construtivo e que são práticas acumuladas, registrada nas atividades mentais (memória) e que são virtualidades (Virtual) e que se atualizam (Atual) nas práticas reais- os estratos. Portanto, o processo subjetivo tem importante papel na edificação de uma casa em relação à condição econômica que evoca a distinção social em um mundo altamente competitivo.

Na autoconstrução, ou de uma outra edificação, toda pessoa proprietária/o e ou moradora assume ou delega a outrem as questões e soluções (do asseio), da alimentação, do descanso, e dispositivos que afetam as atividades relacionadas com o corpo (equipamentos, eletrodomésticos, móveis) entre outras exigências de conforto ambiental e funções, e que dependem do saber dobrado no processo subjetivo do proprietário. Inclusive, toda as preocupações com o corpo e seus saberes, seu poder econômico. Dependendo dessa última condição, resta a “dobra da espera”, ou seja, o que o proprietário espera.

Para Gilles Deleuze :

Diagrama é uma exposição de relações de forças: relações multipontuais e difusas. Uma carta de densidade e intensidade que procede por ligações não-localizáveis, passando a todo instante por todos os pontos. Apresentação das relações de forças próprias de uma formação, a repartição do poder de afetar e de ser afetado, a amarração de funções não-formalizadas e matérias não-formadas. O poder é diagramático: mobiliza matérias e funções não- estratificadas. Não passa pelas formas, mas por pontos, que marcam a aplicação de uma força (ação e reação), um efeito sempre local e instável. O diagrama é uma emissão: por isso as relações são ligações móveis e não-localizáveis. As relações de poder constituem uma estratégia, exercício do não- estratificado, pois escapam às formas estáveis. A instabilidade

das relações de poder define um campo estratégico, não estratificado. Essa disjunção de formas é o lugar onde se dá o diagrama informal. Os agenciamentos concretos são portanto cortados pelo interstício pelo qual se efetiva o dispositivo. (1986 apud SILVA, 2015)

Os territórios existenciais são atravessados por diferentes linhas (ou geodésias) que são basicamente, três linhas que atravessam esses territórios, sejam elas molares ou moleculares: linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga (linhas de desterritorialização).

Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não tem a mesma natureza. São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou, antes, conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar por uma dessas linhas mais do que pelas outras, e talvez, com efeito, haja uma que seja não determinante, mas que importe mais do que as outras...se estiver presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-os efetivamente, na vida. As linhas de fuga-não será isso mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão jamais. Certos grupos, certas pessoas não possuem essa espécie de linha, ou a perderam. ” (DELEUZE&GUATARRI, 2012, p. 83). Neste estudo indico pelas materialidades das casas autoconstruídas e pelas falas dos indivíduos que as realizam, indícios do que resulta o processo da “Dobra” do “Fora” - linhas duras- no “Dentro” de cada indivíduo, ou coletivo que autoconstrói – “diagramas de forças” de cada casa atualizada. Esses diagramas refletem a produção de singularidades- de agenciamentos concretos.

As forças duras são aquelas que reforçam o consenso ou o dissenso em relação ao Fora. As forças recorrentes, portanto, sempre presentes na forma de pensar dialética, marcando a bipolaridade existencial. Escolhi aqui a linguagem gráfica para representar essas “forças” como forma de entender o que estava sendo refletido, de tornar o pensamento mais claro possível. Utilizei-me da linha para representar cada força, mas poderia ser representadas por ”espirais, geodésias” como descreve Deleuze&Guatarri, ou mesmo tentáculos, teias, etc.

A linha não é uma linha exata, desenhada com esquadro, régua, ela é desenhada à mão livre, sem instrumento, com tinta aquarela. Pra mim foi o que me pareceu mais fácil, prático, e prazeroso, além de ser um material que tinha a minha disposição, que gosto de trabalhar e por ser a uma das linguagens da arquitetura - o desenho. Talvez outro profissional consiga entender as reflexões sem o desenho e Figura 1: Linhas de forças

atravessando os territórios existenciais de indivíduos ou de coletivo de indivíduos, aqui as pessoas que autoconstroem. Fonte: Elaborado pela autora, nov.2019.

dispense-o. As forças por serem móveis, instáveis, podem ter diferentes potências em diferentes tempos, são representadas aqui em três graus: leve (tênue, escasso), médio, denso.

As forças são instáveis, móveis, tendo, portanto, potências de graus diferentes no decorrer do tempo. Num certo momento elas podem ter potência de grau leve, mas podem tornar-se densas, e vice-versa. Daí, tem-se períodos de maior ou menor materialização da autoconstrução, pois se a força permanecer leve por um longo tempo ela vai se materializar no congelamento do tempo-espaço autoconstruído. A força leve vai representar a escassez dentro da escassez: Escassez de área do terreno para autoconstruir, escassez econômica para comprar materiais e pagar mão-de-obra; escassez técnica, tanto em quantidade quanto em qualidade da mão-de-obra e do material; escassez de astúcia, de iniciativa, de coragem nos indivíduos.

A casa autoconstruída é um estrato, um agenciamento concreto.

Os agenciamentos concretos (descontínuos, fechados) se comunicam no dispositivo abstrato, que lhes confere uma segmentaridade mole e difusa. Um diagrama é uma sobreposição de mapas: ao lado dos pontos que conecta, outros pontos ficam livres, de criação e mutação. As relações de força são só potenciais, instáveis, enquanto não entram num conjunto macroscópico que lhes dê forma. Uma Figura 3: Linha de forças – diferença de

grau.

Fonte: elaborado pela autora, 2019.

Figura 2: Feixe de linhas.

Fonte: elaborado pela autora, 2019.

atualização que se faz por integrações progressivas, locais e depois globais. As relações de poder acabam integradas (estratificadas) localmente. Como se faz a integração? Através da curva que une os pontos singulares.

O diagrama (emissão de singularidades) se opõe à curva (que as reúne passando pela vizinhança). A curva regulariza e alinha as relações de força em séries. Dois modos de fixar relações de força instáveis, de localizar e globalizar as difusões: o quadro e a curva, as duas potências heterogêneas de formalização. Estruturas históricas se contrapõem às configurações de poder, relações de forças num elemento informal e não-estratificado. O diagrama se distingue do estrato, formação que lhe dá estabilidade. O diagrama existe sempre fora dos estratos. Não há encadeamento por continuidade, mas por cima das rupturas e descontinuidades. O diagrama remete a um fora que não tem forma, visa chegar ao não-estratificado. Se faz no interstício, na disjunção, sob a intrusão de um fora que abre um intervalo. Não é o composto (estratificado) que transforma, mas as forças de composição, relacionadas com outras forças de fora (estratégias). O mundo é feito de superfícies sobrepostas, estratos. As relações de forças informais se atualizam em duas formas heterogêneas, as curvas e os quadros. Mas eles saltam a fissura que os separa, se diferenciando sem deixar de se integrar. (Giles DELEUZE apud SILVA, 2015, p. 56)

O diagrama representa as tensões de forças. Essas forças poderão ter quantidades diferentes de cada condicionante, no sentido de que um condicionante que se mostra “ideal” naquele momento não necessariamente terá em sua companhia um outro condicionante também ideal. Assim, um [diagrama] pode representar as relações de forças de condicionante econômico potente, mas com uma força de subjetivação não “potente”, e essa tensão resultara num tempo- espaço congelado, fechado, sem mudanças. Esses [diagramas] vão ser construídos pelas diversas condições de que cada indivíduo/ coletivo parte para realizar aquela ação, aqui no caso, a ação de construir. A condição de vida vai ser entendida aqui sendo atravessada por condicionantes de diversos vieses: o econômico, o técnico, o do lugar/terreno e o do “gosto”/estético.

Os diagramas são múltiplos numa mesma casa autoconstruída porque vão acontecer em temporalidades diferentes da trajetória de vida dos indivíduos, e pode acontecer que num outro momento os condicionantes mudaram pois as forças ganharam ou perderam

potência, pois eles não são necessariamente permanecem fixos: o trabalho/emprego, que alimenta a linha econômica pode ter fim; a mão-de-obra que nem sempre está disponível, ou ainda, mesmo que a própria pessoa moradora tenha saberes para realizar, ela pode não ter tempo “sobrando” para além das outras atividades que realiza. Essa característica do “móvel” vai ser uma marca das linhas duras que atravessam esses indivíduos, e os diagramas vão ser reflexos dessa condição inconstante. Como? A força econômica é uma das mais importantes para a realização da materialidade da arquitetura e no caso da autoconstrução, ela está da escassez, da instabilidade do acesso ao emprego, isso se refletirá na autoconstrução. Dependendo da composição da família, a linha econômica será potencializada. Como? A renda de 1 Salário Mínimo que pode servir para sustentar 3 indivíduos terá uma potência, mas se esse mesmo 1 SM for para sustentar 8 indivíduos, sua potência será diferente no diagrama de forças de um certo recorte daquela casa autoconstruída.

Representam as linhas duras de uma multiplicidade de forças que tencionam a condição das pessoas que autoconstroem.

Figura 4: [Diagramas de forças] das linhas duras que tencionam a condição dos indivíduos/coletivos que autoconstroem Fonte: elaborado pela autora, 2019.

Figura 6: Reflexões sobre diagramas. Fonte: elaborado pela autora, 2019.

Figura 5: Reflexões sobre diagramas e linhas de força. Fonte: elaborado pela autora, 2019.

Se as forças econômicas são potentes elas possibilitam agenciamentos potentes, mas se a autoconstrução é um agenciamento dentro da escassez econômica, quais potências poderiam se dar ali? Somente linhas de mesmo grau? Não, supomos que são múltiplas e móveis. Qual poderia ser o diagrama dessa condição? Será que ela é uma só? Considerando o que diz Deleuze de forças instáveis, móveis, posso indicar que a condição de escassez não é um diagrama de uma só potência, mas de múltiplas potências. Pois a autoconstrução aqui é agenciamento que se quer de múltiplas forças, abertas ao cotidiano e tensões que essas promovem e se dobram sobre os que autoconstroem.

Linha da condição econômica está forte, tenho a possibilidade de potencializar as ações e a materialização do tempo-espaço autoconstruído. Se a linha de natureza econômica for de potência leve - levemente potente terei dificuldade de comprar um terreno. Essa dificuldade, não ´é uma só, é um feixe de linhas, terei que ocupar, ou, se consigo adquirir um terreno, esses serão com áreas escassa, mas possíveis: 10, 15, 20 metros quadrados. Esses terrenos estão evidentemente em territórios autoconstruídos, não regularizados pelas leis urbanísticas que aí estão, mas são um fato. Dessa força econômica fraca se impôs o limite da potência da linha de natureza do terreno, da propriedade da terra. E por corolário, terei limites em materializar a casa autoconstruída digna, pois a área de ocupação será escassa, mas isso não impede, não limita a fazê-la, a verticalização será a solução. O tempo será longo, paciente, demorado. Essa força econômica fraca acarretará limites também à potência da linha de natureza técnica. A linha fraca colocará limites à possibilidade de contratação de mão-de-obra e à compra de materiais - a linha técnica será afetada e limitada. No entanto, esse limite afetará diferentemente essa linha, que é na verdade duo. Como? Se os próprios proprietários e seus afetos (parentes, amigos, namorados) tiverem saberes práticos ou mesmo trabalharem na área

de construção. Se essas pessoas tiverem astúcias se tornarão a mão- de-obra necessária. Aqui teremos uma linha potente não tão limitada pela linha econômica fraca. Por outro lado, os materiais serão adquiridos em parcelas a perder de vistas, ou de pouco a pouco, estocadas em casa, até a oportunidade da construção. Aqui entra o tempo disponível de cada pessoa, que fará o serviço por afeto e não por dinheiro. Esse tempo será possível nos dias à noite depois de um dia de trabalho, ou nos finais de semana, onde os amigos podem contribuir com a presença.

O tempo-espaço da autoconstrução é movimento num tempo-longo de materialização. Então para quem observa de relance pode pensar que é aquilo que se viu, geralmente de fora da autoconstrução. Mas, aquilo é uma temporalidade dentro de um tempo longo de materialização - da biografia da casa. Ela se movimenta dentro e fora: às vezes fora e não dentro, às vezes, dentro e não fora. Ela é espaço- tempo movimento. A escada astuciosa – a criação da linha flexível Aqui, os processos de subjetivação de cada indivíduo atualizam-se, e dá potência à materialização das casas. Os indivíduos estão numa condição parecida, mas como eles lidam com as forças – linhas duras advindas da macropolítica - em seus processos de subjetivação, a potência das ações tem graus diferentes.

CAPÍTULO 2.

Campo: trajetórias e autoconstruções