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Capítulo 2 A psicopatia e o desenvolvimento moral

2.2. O paradigma de Turiel

A capacidade de realizar julgamentos morais tem também sido abordada ao longo dos tempos na literatura através da distinção feita entre a violação das regras morais e das regras convencionais (Nichols, 2002). Esta tarefa de distinção entre o que é moral e o que é convencional foi iniciada por Turiel, e posteriormente seguida por autores como Smetana e Nucci (Turiel, 1978a; cit. por Nucci, 1981; Smetana, 1981), permitindo estudar o desenvolvimento da compreensão moral nas crianças, e as dificuldades existentes na compreensão moral em populações forenses (Kelly, Stich, Haley, Eng, & Fessler, 2007).

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Fazendo uma distinção entre o que é “moral” e o que é “convencional”, Turiel aborda as regras morais como englobando o respeito pelo bem-estar e direitos dos outros, e incluindo exemplos como a proibição de matar ou causar dano a outra pessoa. As regras convencionais, por outro lado, dizem respeito à regulamentação e coordenação de ações, e incluem exemplos como a proibição de usar roupas do sexo oposto, ou falar na sala de aula quando não permitido pelo professor (Maibom, 2005; Kelly et al., 2007; Turiel, 2008).

Nesta perspetiva, as regras morais têm força e não são dependentes da autoridade de qualquer indivíduo ou instituição. São também gerais e não apenas locais, sendo aplicadas universalmente. A violação das regras morais, por norma, resulta numa vítima cujos direitos foram violados e, portanto, tal violação é considerada mais grave e punível do que a violação de regras convencionais (Turiel, 1983; cit. por Huebner, Lee, & Hauser, 2010; Kelly et al., 2007). Em contraste, as regras convencionais são arbitrárias, e podem ser suspensas ou alteradas por uma autoridade. São locais, sendo que podem ser aplicadas em determinadas comunidades mas não noutras, e a violação destas regras não envolve qualquer vítima pelo que, deste modo, a violação das regras convencionais é considerada menos grave do que a violação das regras morais (Kelly et al., 2007).

De uma forma geral, estes dois tipos de regras (morais e convencionais) podem ser consideradas normativamente equivalentes, uma vez que cada uma delas é projetada de forma a inibir a transgressão moral, e para evitar que o indivíduo realize ações que prejudiquem os outros (Glannon, 2008).

Na tarefa criada por Turiel2 de forma a avaliar a capacidade de julgamento moral, são apresentadas ao indivíduo histórias que envolvem transgressões morais e convencionais, tendo este de fazer julgamentos sobre estas transgressões. Estes julgamentos envolvem como critérios a permissibilidade do ato (é mau fazer a transgressão?); a gravidade do ato (quão grave seria fazer a transgressão?); e a influência da autoridade (se não houvesse nenhuma regra, poderia fazer-se a transgressão?) (Smetana, 1993; Turiel, 1983; cit. por Blair et al., 2005).

Desta forma, transgressões morais e convencionais distinguem-se tendo em consideração dois critérios de julgamento: julgamentos sob regras normais, que englobam os aspetos da permissibilidade e gravidade do ato, e julgamentos sob regras modificadas, que englobam a influência da autoridade (Blair, 1997).

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Nesta tarefa são ainda consideradas as justificações dadas pelos indivíduos. Estas têm sido adaptadas ao longo da literatura e envolvem: referência ao bem-estar dos outros, ou seja, qualquer referência ao bem-estar da vítima; referências normativas, isto é, qualquer referência às regras, mesmo que implícita; qualquer referência à impertinência do ato; referência à desordem causada pela transgressão; às implicações a longo-termo da transgressão; e é ainda considerada uma referência que englobe qualquer outra resposta (Blair, 1995; Blair, Jones, Clark, & Smith, 1995).

De acordo com Turiel, a tarefa de distinção entre as regras morais e convencionais está relacionada com vários domínios do desenvolvimento, pelo que crianças com um desenvolvimento normal conseguem distinguir entre transgressões morais e convencionais (Turiel, 1983; cit. por Fine & Kennett, 2004; Fine & Kennett, 2004). Assim, e de acordo com a investigação empírica, é possível observar que a distinção entre o que é moral e o que é convencional surge em crianças a partir da idade pré-escolar, mantendo-se durante a adultícia, e ocorrendo transculturalmente. Verifica-se ainda que as crianças reconhecem as transgressões morais como mais graves do que as transgressões convencionais, e entendem as regras convencionais como dependentes da autoridade, podendo ser aceitáveis caso essa autoridade seja retirada, mas não acontecendo o mesmo com as regras morais, sendo as transgressões morais encaradas como erradas e não permissíveis com ou sem remoção da autoridade (Smetana & Braeges, 1990; cit. por Maibom, 2005; Nucci, 1981; Smetana, 1981; Blair, 1997; Nichols, 2002; Fine & Kennett, 2004; Huebner et al., 2010; Turiel, 2008). Esta distinção pode ainda ser encontrada em crianças com dificuldades ligeiras de aprendizagem, história de abuso físico, autismo, e Síndrome de Down (Smetana & Braeges, 1990; cit. por Maibom, 2005; Smetana, Kelly, & Twentyman, 1984; Blair, 1996).

Em suma, vários estudos defendem que crianças, adolescentes e adultos fazem julgamentos no domínio moral, distintos de julgamentos que fazem noutros domínios (Helwig, Tisak, & Turiel, 1990; Nucci, 2001; Smetana, 1995; Tisak, 1995; Turiel, 1983, 2008; cit. por Bacchini, Affuso, & Angelis, 2012). Regras morais que resultem da necessidade de evitar desigualdades, dano, injustiça, são julgadas como universais e não dependem de normas ou da autoridade. De igual modo, as justificativas englobam o dever de evitar danos, e garantir a justiça, os direitos e o bem-estar dos outros. Contrariamente, regras não morais, ou convencionais, já não são consideradas universais, e dependem de leis, normas, ou seja, dependem de uma autoridade. As justificações subjacentes englobam a necessidade de preservar a organização social e melhorar as interações (Turiel, 2008).

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Investigações que apontam para a capacidade dos indivíduos distinguirem moral e convencional desde cedo na infância, são um marco nas pesquisas do raciocínio moral. Contudo, isto não permite aos investigadores afirmar que todos os indivíduos interpretam os eventos morais da mesma forma. Por exemplo, os adolescentes que julgam as transgressões morais de forma menos rigorosa em termos morais encontram-se mais envolvidos em atos antissociais (Bacchini et al., 2012). Tal não significa que os indivíduos não consigam distinguir entre moral e convencional, apenas que alguns indivíduos são mais propensos que outros a dar importância a aspetos morais de eventos morais, e que essa tendência apresenta uma influência relevante no comportamento antissocial (Bacchini et al., 2012).

2.2.1. O paradigma de Turiel no comportamento antissocial e na psicopatia

Durante as últimas duas décadas, estudos têm sido desenvolvidos no sentido de observar e perceber o desempenho de indivíduos com psicopatia, ou crianças e adolescentes com tendências psicopáticas, na tarefa de distinção entre as regras morais e convencionais, criada por Turiel. Crianças e adultos com traços de psicopatia mostram ter dificuldades consideráveis na realização desta tarefa (Blair, 1995, 1997; Blair et al., 1995; Blair, Monson, & Frederickson, 2001).

Blair, pioneiro neste tipo de investigação, em colaboração com outros autores, comparou um grupo de indivíduos com psicopatia com um grupo de indivíduos sem psicopatia, de forma a analisar o seu desempenho na tarefa de distinção entre moral e convencional. Na investigação foram consideradas as transgressões, bem como os atos morais e convencionais positivos. Como critérios de julgamento foram utilizados a “permissibilidade”, a “gravidade do ato” e a “influência da autoridade”. Ainda se consideraram as “justificações” dadas por ambos os grupos (Blair et al., 1995).

Foi então observado que, ao contrário dos indivíduos sem psicopatia, os indivíduos com psicopatia não só tinham dificuldades em fazer a distinção entre transgressões morais e convencionais, como muitos não faziam sequer essa distinção, considerando muitas vezes as transgressões morais como permissíveis perante o consentimento da autoridade. Também se demonstraram incapazes de justificar as transgressões morais como erradas fazendo referência ao bem-estar dos indivíduos. Esta falta de capacidade de fazer a distinção entre as transgressões morais e convencionais, bem como de fazer referência ao bem-estar dos outros, não só se relacionou com as pontuações obtidas na Psychopathy Checklist – Revised (PCL-R;

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Hare, 1991), instrumento utilizado pelos autores para avaliação dos traços de psicopatia, como com o item “falta de remorso/culpa”. Relativamente aos atos morais e convencionais positivos, ambos os grupos falharam na tarefa de distinção, não apresentando diferenças nos critérios de julgamento e nas justificações, embora, surpreendentemente, o grupo com psicopatia considerasse estes atos morais e convencionais como preferíveis às transgressões (Blair et al., 1995).

Noutro estudo, seguindo uma metodologia idêntica, Blair (1995) observou que o grupo sem psicopatia fez uma distinção entre transgressões morais e convencionais tendo em consideração os critérios de julgamento, contudo, tal não ocorreu com o grupo com psicopatia. Tendo em conta o critério da influência da autoridade, quando esta era retirada, os indivíduos com psicopatia não consideraram as regras morais como iguais às convencionais, pelo contrário, consideraram as regras convencionais como iguais às morais. Aqui o autor considera que o grupo experimental não estava a ser sincero nas suas respostas pois, uma vez que se encontravam encarcerados e pretendiam ser libertados, queriam demonstrar que os tratamentos estavam a ser eficazes e que tinham aprendido as regras da sociedade (Blair, 1995; Fine & Kennett, 2004). Porém, da mesma forma que no estudo anterior, não foi feita referência ao bem-estar dos indivíduos pelo grupo com psicopatia para justificar as transgressões morais (Blair, 1995).

Em crianças e adolescentes estudos semelhantes foram replicados. Blair (1997) desenvolveu uma investigação de forma a analisar o desempenho de crianças com traços de psicopatia na tarefa de distinção entre moral e convencional, e observou que estas crianças, comparativamente ao grupo de controlo, eram menos sensíveis à distinção entre transgressões morais e convencionais, considerando as transgressões morais permissíveis perante a ausência da autoridade. Tais resultados vão ao encontro dos descobertos por Nucci e Herman (1982). Relativamente à consideração do bem-estar dos indivíduos, diferenças entre ambos os grupos não foram encontradas (Blair, 1997).

De forma semelhante, Fisher e Blair (1998) observaram que, perante a remoção da regra de proibição da transgressão, crianças com traços de psicopatia consideraram tanto as transgressões morais como as convencionais permissíveis.

Mais recentemente, outros estudos observaram que crianças com problemas comportamentais e com valores elevados no Psychopathy Screening Device (PSD; Frick & Hare, 2001), demonstraram um desempenho mais pobre na tarefa de distinção entre moral e convencional perante a modificação das regras da autoridade, não fazendo, de igual modo,

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alusão ao bem-estar dos outros de forma a justificar a proibição das transgressões morais (Blair, et al., 2001).

Contrariamente a estes resultados, Dolan e Fullam (2010), numa investigação realizada com adolescentes, observaram que, embora o grupo com traços de psicopatia, de uma forma geral, tivesse um desempenho mais pobre na tarefa de distinção entre moral e convencional, diferenças não foram encontradas em ambos os grupos na tarefa perante regras normais e modificadas. Neste estudo também não foram encontradas diferenças relativamente à referência ao bem-estar dos indivíduos, logo, uma correlação significativa entre traços de psicopatia e a distinção entre moral e convencional não foi encontrada.

É possível então verificar que, apesar de os resultados nestes estudos entre grupo experimental e grupo de controlo serem semelhantes na tarefa de distinção entre moral e convencional tendo em conta o critério da permissibilidade e a gravidade do ato, indicando que as transgressões morais são consideradas mais graves e menos permissíveis que as convencionais, tal já não se verifica sempre que se modifica a influência da autoridade, sendo que as transgressões morais se tornam geralmente mais permissíveis pelo grupo experimental. Também é visível a falha pelo grupo experimental em considerar o bem-estar e os danos causados aos indivíduos.