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O período da Sobrevivência: o tatear constante de uma nova realidade

CAPÍTULO 3 FORMAÇÃO INICIAL E A CONSTRUÇÃO DA BASE DO CONHECIMENTO PARA O ENSINO: O INÍCIO DA ESTRADA

4.1. O período da Sobrevivência: o tatear constante de uma nova realidade

Huberman (1992) constrói sua teoria sobre o ciclo de vida profissional dos professores a partir da perspectiva da carreira. Dessa forma, ocorreriam "sequências" ou "maxiciclos" entre pessoas de uma mesma carreira e em profissões diferentes. Segundo o autor, isso não significa que todas as pessoas

Olívia 2008 (ensino

fundamental)

Escola do Ensino Fundamental, na rede pública de São Carlos, em uma 1ª série.

Sofia 2008 (ensino

fundamental)

Escola do Ensino Fundamental, na rede pública de São Carlos, em uma 1ª série.

passem pelas mesmas etapas na mesma ordem ou que em uma determinada profissão se viva todos os elementos.

Ele indica que o início da carreira é marcado pela fase de exploração e depois de estabilização. Na fase de exploração o ingressante investiga a profissão, experimentando um ou mais papéis. Se essa exploração for positiva, ocorrerá a fase de estabilização, na qual se estabelece o compromisso pela profissão e as pessoas centram a atenção no domínio das características do trabalho. Nessa fase, pode-se buscar desempenhar cargos com maiores responsabilidades ou considerados prestigiados.

Ainda que Huberman (1992) destaque essas duas fases como presentes na maioria dos casos, ele adverte para o fato de que há pessoas que se estabilizam mais rápido, outras demoram mais e ainda outros não se estabilizarão. Aponta que a relação entre idade cronológica e fase inicial da carreira é verdadeira, mas não é completa ou homogênea. O autor centra seu estudo na carreira pedagógica, ou seja, em professores que atuavam no nível secundário.

A entrada na carreira docente é descrita como o contato inicial com a sala de aula, marcados pelos estágios de "sobrevivência" e de "descoberta".

Com relação ao estágio de sobrevivência, Huberman (1992, p. 38) o considera como o "choque do real", o confronto com a complexidade da docência, levando a um tatear constante e a uma preocupação consigo próprio, a contradição entre os ideiais e a realidade da sala de aula, a fragmentação do trabalho, a dificuldade em relação à transmissão de conhecimentos e a relação pedagógica, as dificuldades com os estudantes, com as relações íntimas e distantes.

Marcadas por diferentes contextos históricos, sociais, de culturas escolares e de inserção à docência, as professoras experientes apresentam em suas narrativas semelhanças e algumas diferenças nesse processo.

Nas narrativas percebemos o movimento dos contextos históricos e das influências das políticas públicas para o "chão da sala de aula", como exposto pela professora Verônica:

Novas concepções pedagógicas adentravam o universo dos professores itirapinenses e dos que iniciavam pelo concurso. Duas formadoras do PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) inseriam naquela realidade inovações teóricas, que demandariam mudanças na prática docente. O município se

adequava a Lei da Municipalização prevista pela União e, com o concurso público, recebeu bastante professores de São Carlos, que deslocaram muitos de seus conterrâneos – professores itirapinenses que trabalhavam nessas escolas de Ensino Fundamental, antes estaduais. (Professora Verônica- Relato do primeiro ano de docência- Módulo 2- Início da Docência, 2016).

Esse trecho explicita o impacto de uma política nacional de formação

docente para a alfabetização – o PROFA - se materializando na escola e

demandando outro tipo de prática pedagógica.

O movimento histórico do processo de municipalização do ensino, a partir de 1999, também representa uma política educacional organizacional com o objetivo de repensar o sistema de ensino. Assim, a União ficaria com o Ensino Superior, os Estados com o Ensino Fundamental 2 e Médio e os Municípios com Ensino Fundamental 1 e Educação Infantil, como disposto na LDB 9.394/96.

As professoras com inserção na docência no período de 1994 a 2002 revelam as marcas daqueles contextos históricos específicos, com processos de transformação pelas quais as redes municipais de modo geral e a de São Carlos, em específico, vêm passando. Esses processos se misturam aos movimentos de mudanças com relação à formação exigida para a inserção na carreira docente e pelas políticas de formação docente no Brasil.

Assim, temos o momento vivenciado pelas três professoras (Ana Luiza, Ana Carolina e Verônica) que iniciaram suas carreiras no período de 1994 e 2002. Essas possuíam o magistério como formação inicial e, posteriormente, a Pedagogia como formação continuada.

Esse contexto de 1994 a 2002 é importante para pensarmos as políticas de formação docente dessa época: coexistiam, e ainda hoje coexistem em alguns Estados, o Magistério (como ensino profissionalizante de nível Médio) e as instituições de ensino públicas e privadas que formavam professores em cursos de graduação. Nesse caso específico, temos duas professoras iniciantes à época, Ana Luiza e Verônica, que estudavam à noite, ou seja, um percurso marcado pela dura rotina de estudos e de trabalho.

A escolha pelo curso de Pedagogia, como via de formação continuada, não foi a primeira opção para as professoras Ana Luiza e Verônica, como já analisado anteriormente. Ambas, escolheram o curso de Pedagogia por ser o que se apresentava em suas realidades imediatas e possíveis. A opção pela

Pedagogia ressalta o que Gatti (2010) indicou em seu estudo: a licenciatura como marca registrada das escolhas das classes populares.

As professoras que ingressaram na docência após 2003 também trazem as marcas daquele momento histórico e das políticas docentes da época.

As professoras Olívia e Sofia que iniciam a docência em 2008 na rede municipal de ensino de São Carlos, bem como a professora Paula que ingressou em 2003 no contexto de escola particular de educação infantil, revelam um outro momento histórico. Até a nomenclatura utilizada por essas professoras para indicar a atuação profissional (1º, 2º ou 3º ano) revela um momento de transformação: o ensino fundamental de 9 anos, iniciado em 200627.

Para além de uma questão de nomenclatura, o ensino fundamental de 9 anos inaugurou um novo momento de concepção de ensino e de aprendizagem. Essa alteração na LDB, tornando obrigatória a matrícula de crianças de seis anos no ensino fundamental, ampliou a escolarização obrigatória e gratuita. A entrada dessas crianças no fundamental forçou uma reflexão sobre o quê e como ensinar, atingindo principalmente o processo de alfabetização.

As professoras Paula, Sofia e Olívia não cursaram Magistério, pois houve uma política educacional que extinguiu esse curso em várias cidades: São Carlos foi uma delas. A formação inicial se deu em Pedagogia nas graduações cursadas em universidades públicas.

A respeito da contribuição da formação inicial, a professora Paula explicita em seu relato esta fase como o seu início à docência:

Quando penso no início da minha experiência como professora, a primeira coisa que me vem à mente é minha experiência no curso de Pedagogia. É por esse motivo que vou começar meu relato pela minha experiência como aluna do curso de Pedagogia da UFSCar no ano de 2003. (Professora Paula Relato do primeiro ano de docência- Módulo 2- Início da Docência, 2016).

Mizukami (2003, p. 27) aponta a formação inicial como "um momento formal em que os processos de aprender a ensinar e aprender a ser professor

27 LEI Nº 11.274, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2006. Altera a redação dos arts. 29, 30, 32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade.

começam a ser construídos de forma mais sistemática, fundamentada e contextualizada".

Ainda que a formação inicial seja entendida como a primeira fase do desenvolvimento da carreira, ao ingressarem, de fato, na profissão, pode-se ter a percepção de que essa foi insuficiente, como apontado pela professora Paula:

A sensação que eu tinha no primeiro ano em que estive na sala de aula como professora é de que eu não sabia nada. Dessa forma, percebi que meus conhecimentos profissionais estavam sendo colocados em xeque e aos poucos fui me dando conta de que a formação inicial era só o começo de uma grande jornada. (Professora Paula. Relato do primeiro ano de docência- Módulo 2- Início da Docência, 2016).

Contudo, percebemos um movimento interessante na expressão das seis professoras: o local de inserção à docência pode funcionar como gerador de mais ou menos sensações/sentimentos de incertezas, medos, insegura.

Dessa forma, as professoras Ana Luiza, Ana Carolina e Verônica indicam em suas narrativas, contextos menos favoráveis à inserção de iniciantes do que aqueles apontados pelas professoras Olívia, Paula e Sofia.

As narrativas revelam que os contextos de inserção e as condições de trabalho (infraestrutura, material, apoio institucional, remuneração) podem ser mais ou menos tortuosos dependendo de onde e em qual situação isso ocorre. De toda forma, as narrativas sugerem que houve o "choque da realidade" (VEENMAN, 1984), mas ele não afetou a todas da mesma forma. Assim, podemos afirmar que há uma relação entre contextos mais difíceis, logo inserção mais dificultosa, como evidenciado nos relatos de duas professoras:

A escola era a mais afastada e de mais difícil acesso. Eu não sabia onde era e nem como chegar lá [...]. A escola atendia alunos do ensino fundamental I (da 1ª à 5ª série). Por ser uma região periférica muito carente, as salas contavam com muitos alunos retidos, pois ainda havia a retenção na 2ª série. (Professora Ana Luiza- Relato do primeiro ano de docência- Módulo 2- Início da Docência, 2016). Para o primeiro dia havíamos programado uma dinâmica de apresentação, com a entrega dos crachás. Fui conhecendo cada aluno... Um momento prazeroso para uma professora iniciante. A próxima etapa da aula seria iniciar as atividades do dia. As crianças demonstravam prazer e alegria para começar. Materiais novos, comprados pelos pais no período de férias... Como é gostoso! Todos pegaram seus caderninhos e estojos. E eu fui para a lousa. Com letra de forma maiúscula (bastão) passei o cabeçalho do dia: nome da cidade e data, nome da escola, nome da professora, nome do aluno, quantidade de meninos e meninos, que contamos e registrei na lousa.

As mãozinhas trabalhavam... Foi quando caminhei pela sala e, para meu desespero, as crianças não sabiam nem pegar no lápis. Cadernos de ponta cabeça, outros virados de lado, folhas do meio do caderno, a pauta era como se não existisse... Letras? Não! Rabiscos. Pouquíssimos conseguiam reproduzir algumas letrinhas. (Professora Verônica- Relato do primeiro ano de docência- Módulo 2- Início da Docência, 2016).

Foi em meio ao caos de inserções em escolas com pouca estrutura que essas três professoras iniciam a docência. Os sentimentos de angústia, medo e frustração se fazem mais presentes nessas condições descritas. Ou seja, os fatores externos impactam a construção da docência. Como construir uma base de conhecimento para o ensino em meio ao caos? Como exercer a função de ensinar sem condições básicas para isso? Apresentamos algumas respostas nas seções a seguir.

4.2. A construção da base de conhecimento para o ensino: desafios e