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O PLANO E REGULAMENTOS DOS ESTUDOS DE 1789 E AS LEITURAS

2 CULTURA ESCRITA E AS GENTES DO LIVRO NA BAHIA DO SÉCULO

3.1 O PLANO E REGULAMENTOS DOS ESTUDOS DE 1789 E AS LEITURAS

A competência de ler não era uma prática exclusivamente individual no interior do mosteiro. Pelo contrário, a leitura, na maioria das vezes, ocorria de maneira coletiva. Para a compreensão desta prática, é relevante lançar mão de dois conceitos de Chartier − “comunidade de leitores” e “tradições de leitura”25

. Muito embora a experiência de leitura monástica seja compartilhada e esteja baseada em uma tradição anunciada e resguardada ao longo dos séculos, isto não significa que os membros desta comunidade de leitores fossem portadores de estilos de leitura idênticos e das mesmas estratégias de interpretação. É possível definir os beneditinos na Bahia, do século XIX, como uma comunidade marcada por tradições de leitura que se manifestavam através de normas e convenções, envolvendo diversos usos do livro, maneiras de ler e procedimentos e instrumentos de interpretação. Contudo, Chartier chama a atenção para as diversas clivagens que realizam a mediação da leitura dentro de uma comunidade. No caso específico aqui analisado, é necessário considerar que convivem no mosteiro leitores com pleno domínio da leitura e também leitores menos hábeis assim como pode haver uma variação dos interesses e expectativas frente à leitura.

Luís Antonio de Oliveira Ramos destaca as influências do Iluminismo na produção e na difusão do conhecimento entre os beneditinos portugueses no século XVIII e afirma que essa “corrente de cultura” permanece entre os membros da ordem ainda no século XIX. Muito embora seu estudo situe a problemática apenas em Portugal, suas conclusões auxiliam o entendimento da atuação beneditina no Brasil em razão de a província brasileira ter estado sob a jurisdição lusitana até 1827 e ao fato de os hábitos ligados à congregação lusa terem se mantido mesmo após a separação.26 Aponta o autor que os beneditinos adotaram a Filosofia Moderna e os novos métodos pedagógicos, antes mesmo dos princípios educacionais definidos pela reforma do ensino do Marquês de Pombal, em 1772: “no âmbito da ilustração, os monges de S. Bento foram, desde cedo, presos de evidente curiosidade especulativa que em detrimento dos objectivos estritamente religiosos, os levou a estudar para consolidar, no

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CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. UnB, 1999. p. 13.

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RAMOS, Luís A. de Oliveira. Os beneditinos e a cultura: ressonâncias da ilustração. Revista da Faculdade de Letras – História. Porto, 2ª série, v. I (1984), p. 159-186.

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contexto do tempo o seu potencial de cultura”27

. Indica, ainda, evidências da ressonância do Iluminismo entre os padres bentos, apontando suas ricas bibliotecas, chamadas, na altura, “livrarias”, em particular aquelas que funcionavam no Colégio de Coimbra, no Convento de São Bento da Saúde, em Lisboa, e no Mosteiro de Tibães, casa-mãe dos beneditinos do Brasil. Ao examinar as listas de aquisição das referidas bibliotecas e os documentos que registram as suas despesas, Ramos atesta a riqueza de seus acervos com obras de várias áreas da Teologia, da Filosofia e das Humanidades adquiridas no período de 1707 a 1801.

Outro estudo, em que Ramos desenvolve a mesma ideia analisa os efeitos das reformas pombalinas sobre os estudos monásticos. Segundo ele, os beneditinos foram os primeiros a ensinar a Filosofia Moderna em Portugal, pois a publicação do Plano de Estudos, em 1776, atesta a filiação com a Teologia contrária à Escolástica e uma inspiração na reforma da Universidade de Coimbra.28 Para embasar sua tese, são apresentados três exemplos. O primeiro se refere às aulas do frei Antônio de São Bento, na Universidade de Coimbra, que já utilizava a doutrina de Santo Anselmo, em 1725. Alega o autor que, antes mesmo da expulsão dos jesuítas, em 1759, e da adoção do manual Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, professores e colegiais beneditinos tinham acesso à “teologia polemica”. Além disto, nos colégios, seguia-se um sistema baseado na leitura das doutrinas cristãs diretamente das escrituras sagradas e da patrística com o estudo da história e do direito eclesiástico. O segundo exemplo da preconização dos estudos filosóficos modernos pelos beneditinos é o caso do frei João Baptista de São Caetano que lia autores franceses e italianos em 1738. O terceiro exemplo mencionado é frei Joaquim de Santa Clara que passou a ministrar um curso preparatório de matemática e filosofia para o ingresso na Universidade de Coimbra reconhecido e comparado por Pombal aos estudos do primeiro ano da universidade, em 1772.

Na Bahia do século XIX, predominou a transição do pensamento filosófico pautado no Classicismo para a Dialética Moderna, marcada por uma “cultura enciclopédica” que terminou por evoluir para uma “escola eclética”, muito criticada pelos setores mais tradicionais da Igreja.29 No estudo empreendido por Francisco Pinheiro Lima Júnior e Dinorah d`Araújo Berbert de Castro, são apresentadas as academias, sociedades literárias,

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RAMOS, Os beneditinos e a cultura..., cit., p. 162.

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RAMOS, Luís A. de Oliveira. Pombal e a reforma dos estudos monásticos (o caso beneditino). Revista de História das Ideias, v. 4, t. II, p. 113-124, 1982.

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LIMA JÚNIOR, Francisco Pinheiro; CASTRO, Dinorah d`Araújo Berbert de. História das ideias filosóficas na Bahia (séculos XV a XIX). Salvador: CDPB, 2006, p. 52. Os autores realizaram um inventário das bases a partir das quais se disseminou o ensino de Filosofia no Brasil ao longo dos séculos XVI e XIX, em particular na Bahia, destacando a atuação das ordens religiosas e dos livros empregados nas escolas conventuais.

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jornais, bibliotecas, mestres e compêndios que estavam a serviço do ensino de Filosofia na Bahia. A pesquisa, baseada na carta do cônego Antonio Joaquim das Mercês ao abade do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro padre mestre Amaral, escrita em 1851, versa sobre o ensino de Filosofia na Bahia no século XIX.30 A obra é extensa e procura se fundamentar em fontes, mas o seu caráter avultado, por vezes, obriga os autores a tratar de forma noticiosa alguns fatos. Na seção sobre os livros e bibliotecas, são apresentadas breves notícias sobre a Biblioteca Pública e as livrarias das ordens religiosas – jesuítas, franciscanos, beneditinos, carmelitas – limitando-se a comentários gerais sobre a aquisição das obras por compra, a circulação das ideias filosóficas e a destruição e dispersão dos livros, ao longo do tempo, em razão das guerras aos holandeses, no século XVII, e aos portugueses, no século XIX.

Lima Júnior e Castro salientam que a matéria filosófica, ou seja, o conjunto da obra que foi produzida ou circulou na Bahia desde a colônia até o Império, é dividida em “saber da salvação”, quando da aproximação entre a Filosofia e a Igreja Católica, e em “saber ilustrado”, quando da aproximação entre a Filosofia e a Ciência. Longe de ser uma oposição maniqueísta, a identificação dos dois campos é um esquema de enquadramento do pensamento brasileiro, sabendo-se que diferentes épocas e autores podem se enquadrar em um ou outro campo. Tendo em vista essas ressalvas, apresentam alguns autores cujas obras se converteram em manuais pedagógicos: Alexandre de Gusmão, História do predestinado

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Os autores apresentam a biografia do padre Antonio Joaquim das Mercês, que foi monge beneditino na Bahia e no Rio de Janeiro de 1807-1810 e teve como professor frei Manoel da Conceição Neves, que ensinava geometria e física. Antonio das Mercês foi professor de filosofia no mosteiro de São Bento da Bahia e frade carmelita. Tornou-se padre secular em 1835 e depois cônego. Além dos dados biográficos, Lima Junior e Dinorah de Castro apresentam a transcrição da carta do cônego Antonio ao abade do Rio de Janeiro, Padre mestre Amaral de 12 de agosto de 1851, publicada na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia de 1932. O conteúdo da carta versa sobre os primeiros professores na Bahia, Alagoas e Paraíba, cujo relato se fundamentou na tradição, pois as livrarias existentes nas casas religiosas jesuítas, carmelitas e beneditinas da Bahia foram destruídas ao longo do tempo, em especial com a expulsão dos jesuítas em 1759 e a ocupação das tropas portuguesas em 1821: “as livrarias que de certo continhão em guarda as Postillas, e Canhenhos literários dos antigos Mestres, que nesta Bahia ensinarão as Sciencias, quer Philosophicas quer Theologicas”. Sobre a livraria dos beneditinos, Antonio das Mercês informa: “no tempo em que no seu mosteiro esteve abarracada a tropa lusitana em 1821, soffreo a sua livraria m. perda de manuscriptos antigos, que nos poderiam fornecer simelhantes memorias.” O cônego admite ainda que do mesmo modo os jesuítas, carmelitas, beneditinos e franciscanos dedicaram-se, em seus claustros, a ensinar tanto aos colegiais quanto a mocidade de fora, através das aulas de latim, retorica e filosofia. Sobre os professores beneditinos, são citados, no século XVIII, os freis Roberto de Jesus e Manoel do Nascimento; e no século XIX, os freis Borba, Santa Escolastica e Manoel da Conceição Neves. A carta do padre afirma ainda que os professores ensinavam pelos compêndios de Heinecio (Lógica e Ética), Genuense (Metafisica), Euclides (Geometria), Muschembroeck (Fisica), Altiere (Aritmetica e Geomatria). Cf. CASTRO, Dinorah Berbert; LIMA JUNIOR, Francisco Pinheiro. Padre mestre cônego doutor Antonio Joaquim das Merces 1786-1854. Mestre de Filosofia. Salvador: Mensageiro da Fé, 1977.

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peregrino (Lisboa, 1682, 1724); Nuno Marques Pereira, O peregrino da América (1728);

Bruno Henrique de Almeida Seabra, O alforge da Boa Razão, livrinho para meninos ou

“Conto do alforge” (Bahia, 1869); e Benjamin Franklin, A ciência do Bom Homem Ricardo

(1732 a 1757), considerada uma cartilha de educação moral muito popular e difundida no ensino baiano do século XIX. Em um segundo grupo, os autores incluíram as obras sobre Cristianismo e Escravidão, como Antonil e Benci, padres jesuítas.

Na transição do século XVIII para o XIX, a circulação das ideias e livros franceses nas revoltas baianas, desde 1798 até 1837, e as ideias de D. Romualdo, expressas em suas cartas pastorais, são reveladoras dos quatro sistemas filosóficos predominantes no ensino brasileiro. O primeiro era a Segunda Metafísica, que consistia no alinhamento entre os pressupostos teocêntricos medievais e antropocêntricos renascentistas baseados nos princípios tridentinos e difundidos pelos jesuítas e pela Universidade de Coimbra. O segundo sistema era o Empirismo Mitigado, que admitia a origem empírica do conhecimento, mas tolerava, ainda, o esquema conceitual. Tratava-se de uma tendência eclética e, a partir de 1764, se tornou o modelo de Verney, com a abertura das faculdades de Matemática e Filosofia (Ciências Naturais, Física Experimental e Química) de caráter utilitário. O terceiro sistema, denominado Escola Escocesa, trazia influências cartesiana e eclética, a exemplo das obras de Reid, e, na França, ganhou matizes mais psicológicos com as obras de Royerd-Collard, Cousin e Jouffroy. O quarto e último, o Tradicionalismo, que se fundava na defesa da revelação divina para a compreensão da verdade, poderia ser moderado ou radical e se desdobrava nas tendências do Fideísmo (fé) e do Ontologismo (ser). Mais do que tentar enquadrar as tendências filosóficas, o mapeamento desses sistemas na Bahia é revelador da circulação de livros de diferentes abordagens teóricas e mesmo daqueles considerados menos ortodoxos, o que confirma o que já foi ressalvado anteriormente e nos permite perceber as matrizes filosóficas que inspiraram as escritas beneditinas analisadas no último capítulo desta tese.

Tendo esse quadro geral como referência, podemos agora voltar nosso olhar para o

Plano e Regulamentos dos Estudos para a Congregação de S. Bento de Portugal, publicado

em Lisboa no ano de 1789.31 A obra é dedicada à rainha D. Maria I, lembrando a vocação da

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Plano e Regulamentos dos Estudos para Congregação de S. Bento de Portugal. Primeira parte. Lisboa, na Régia Officina Typografica. MDCCLXXXIX (1789). Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Inventário Edições de Ouro: EO 132. Ramos confere a autoria do Plano de Estudos, de 1776, ao frei Francisco da Natividade e a do Plano e Regulamentos dos Estudos, de 1789, a frei Joaquim de Santa Clara. Na opinião do autor, o segundo plano poderia ter tido uma intervenção pombalina, até mesmo uma leitura prévia que se revela no detalhismo e na ambição do documento que busca prescrever sobre todas as coisas. Cf. RAMOS, Pombal e a reforma dos estudos monásticos (o caso beneditino)..., cit.

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Ordem de São Bento “em aprender e ensinar as Sciencias”, e traz a licença da Real Meza da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros. A autorização para publicação, em conformidade com os estatutos da Universidade de Coimbra, foi assinada por Dona Maria I, no Palácio da Ajuda, em 3 de março de 1789. Diferente do Plano dos Estudos32, publicado em 1776, que tratava da formação dos monges beneditinos apresentando as matérias que deveriam ser ensinadas e os métodos que deveriam ser empregados, o Plano e Regulamentos

dos Estudos avançou mais um pouco, porque buscou detalhar o Plano dos Estudos de 1776 e

orientar sobre as matérias ensinadas, os livros que deveriam ser usados e as atribuições daqueles envolvidos com a formação dos monges. Idealizado em duas partes, somente a primeira foi publicada. Tratava-se de um esforço da ordem beneditina em dar uma resposta às demandas de revisão da formação monástica no século XVIII. A profusão de correntes filosóficas e, ao mesmo tempo, o desejo de encontrar um sistema de pensamento que substituísse a Escolástica, tornava esta tarefa ainda mais árdua.

A Escolástica, muitas vezes criticada ao longo do plano de estudos beneditino, foi uma corrente de pensamento e de ensino baseada nas ideias de São Tomas de Aquino, que buscava a conciliação entre Razão e Fé, e de Abelardo, baseada na dialética, que se desenvolveu no século XIII. Em termos de método, era constituída pela lectio e disputatio, ou seja, a partir de uma leitura proferida pelo professor e retirada de uma obra de autores reconhecidos e autorizados pela Igreja Católica para tratamento dos temas, seguia-se o debate desencadeado por um problema e daí se passava à formulação e validação de hipóteses pelos alunos. Tais

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Plano dos Estudos para a Congregação de São Bento de Portugal. Lisboa: Regia Officina Typografica. Anno MDCCLXXVI. [1776]. Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Inventário Edições de Ouro: EO 125. Com licença da Real Mesa Censoria e inspirado na reforma da Universidade de Coimbra, o plano foi apresentado pelo abade geral ao rei D. José I, obedecendo à reforma de estudos proposta pelo marquês de Pombal. O plano apresenta a redefinição dos cursos de Filosofia e Teologia, bem como o estudo das Línguas antigas e modernas e também da Retórica para formação monástica nos colégios da Congregação tanto do Reino como no Brasil. De acordo com o método sugerido, as aulas deveriam ocorrer no turno vespertino por uma hora ao longo de nove anos. A recomendação maior dizia respeito à limitação do estudo mais pela leitura do que pela escrita e o controle dos livros cuja leitura seria permitida. Embora se perceba um enaltecimento da Sabedoria bem ao gosto do Setecentos, o plano deixa claro que ela deveria estar a serviço da fé cristã que “lembrará a todos os seus ouvintes a humildade, e o desejo do próprio aproveitamento, com que devem chegar a estas fontes, para dellas beber as aguas, que só nos podem chegar pelos aquedutos da Igreja; e nunca se acharão nas cisternas imundas, e dissipadas do espirito privado, e do arbítrio soberbo, e arrogante dos homens” (p. 15). Do ponto de vista filológico, é interessante observar que o livro possui 32 páginas com o termo de encerramento assinado por Clemente Isidoro Brandão, em 4 de junho de 1776, informando que o manuscrito apresentado continha “sincoenta e quatro paginas inteiramente escritas, e três linhas e meias da pagina sincoenta e sinco” (p. 32). O livro não possui sumário e traz no final o alvará com a aprovação da obra pelo rei e vista do marquês de Pombal. Na subscrição foi informado que o alvará ficou registrado no Livro da Restauração dos Estudos das Escolas Menores do Reino e Domínios.

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discussões eram lastreadas no pensamento de Aristóteles, em especial, na Metafísica. A Segunda Escolástica ou “Segunda Metafísica”, como denominaram Lima Junior e Castro na inventariação dos sistemas filosóficos mencionados acima, ocorreu do século XVI ao XVIII como resposta da Contrarreforma. Esse sistema era inspirado nas ideias de Espinosa e Locke sobre a interpretação da obra aristotélica. Outra particularidade deste sistema era o seu caráter ibérico tendo como centros de difusão as Universidades de Salamanca e de Coimbra e como atuação de destaque professores dominicanos e jesuítas.

Como vimos, a Segunda Escolástica, que é refutada pelo Empirismo Mitigado, na segunda metade do século XVIII, através da reforma da Universidade de Coimbra e da adoção do manual do professor italiano Antônio Genovesi ou Genuense, que se tornou o filósofo oficial e cujos compêndios eram adotados pelos professores baianos até o século XIX, foi retomada por Silvestre Pinheiro Ferreira, tanto em Portugal como no Brasil, buscando demonstrar que Locke e Condillac eram continuadores da obra de Aristóteles. A tensão entre as correntes filosóficas, em verdade, residia não na validade de um filósofo ou outro, mas na leitura e interpretação deste filósofo. Os liberais, que se enquadraram no sistema do Empirismo Mitigado e que depois passaram à tendência do Ecletismo Esclarecido, não se contrapunham aos pressupostos aristotélicos nem mesmo ao Tomismo, mas sim ao controle que a Igreja Católica pretendia exercer sobre as consciências, impondo apenas uma interpretação, colocando a Filosofia a serviço da Teologia.

O exemplo de Silvestre Pinheiro Ferreira é utilizado por Antonio Paim para demonstrar a atuação de um pensador luso-brasileiro com grande atividade política no governo de D. João VI. Adepto do idealismo, Ferreira tomou contato com as ideias de Kant, na Alemanha, e desenvolveu o embasamento filosófico para o Liberalismo, dando origem ao Ecletismo Esclarecido que contou com a adesão de muitos pensadores brasileiros.33 No que diz respeito à Filosofia Católica, no século XIX, o Tomismo ou Tradicionalismo foi o sistema de pensamento preponderante e só foi abandonado no Vaticano II. Acreditamos que esse aparte pode nos ajudar a entender de qual sistema filosófico trata o Plano e Regulamentos dos Estudos, quando o seu autor se refere à Escolástica como “má filosofia” e propõe que sejam

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Victor Cousin (Historicismo e Espiritualismo) também sofreu influencia de Kant. Autor de História da Filosofia e Filosofia Popular. Durante o Segundo Reinado, o Ecletismo, de cunho social e politico, era uma resposta ao contexto da independência e da formação do estado nacional. Torna-se a corrente filosófica predominante e inspira o Romantismo. Outros autores dessa tendência foram Maine de Biran e Royer-Collard. Ver: PAIM, Antonio. História das ideias filosóficas no Brasil. 6. ed. rev. Londrina: Humanidades, 2007. v. II: As correntes. Disponível em: <http://www.institutodehumanidades.com.br/arquivos/vol_i_problemas_filosofia_brasileira. pdf>. Acesso em: 16 jan. 2017.

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seguidas “as luzes das sciencias”. Isto é, permite-nos entender os sistemas filosóficos a partir dos quais foi pensado o plano e foram orientadas as maneiras de ler que permeavam a oração e o ensino dentro dos mosteiros.

Na primeira parte do Plano e Regulamentos, são tratados os Estudos Elementares compostos pelos cursos de Humanidades, Filosofia e Teologia. A segunda parte trataria dos Estudos Específicos para desempenho das diferentes funções e empregos dos quais os monges se ocupavam. Entretanto, não foi publicada. O livro possui 153 páginas e um índice, no final. Está dividido em três seções organizadas em capítulos. Na primeira seção, são apresentados o plano e o sistema de ensino; na segunda, o currículo, o calendário acadêmico, os critérios para escolha dos professores e o regime disciplinar do colégio; e na terceira, os cargos que compõem os colégios e casas de educação onde os estudos deveriam ocorrer. Ao longo do texto, são citados os colégios que funcionavam nos mosteiros da Estrela, de Coimbra e de Tibães. Logo no prefácio, encontramos referências às obras Tratado sobre os deveres e

santidade do Estado monástico, do abade Rancé, e Tratado dos Estudos Monasticos, de Jean

de Mabillon, que buscaram reformar os estudos da Ordem de São Bento, na França. O autor salienta também ter se baseado nos estatutos da Universidade de Coimbra, costume mantido pelos beneditinos desde 1629, conforme as Constituições da Congregação de Portugal. O plano é uma resposta à Lei da Reforma Geral dos Estudos, promulgada em Portugal, em 28 de junho de 175934. A análise dos princípios nos quais se baseia o plano evidencia uma preocupação com o domínio das línguas assim como com a eloquência e a retórica: “Se hum dos fins, por que estudamos, he ensinar aos outros o que aprendemos; e se, para ensinar bem, he preciso saber persuadir, fica claro, que entre os objetos dos nossos estudos deve também