• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

1.5 O populismo e o trabalhismo

O “populismo” enquanto conceito político foi disseminado inicialmente na Rússia, na segunda metade do século XIX. Denominados de narodniks, os populistas russos eram provenientes de uma classe média intelectual que se posicionava justamente contra a industrialização e o desenvolvimento capitalista na Rússia. Viam nas comunas camponesas, sobretudo, os verdadeiros embriões revolucionários. Após fracassarem no trabalho no campo, passaram a se dedicar a atividades de terrorismo e assassinato político. O desenvolvimento do marxismo na Rússia esteve profundamente relacionado à luta constante contra os populistas no campo teórico e político (COMITÊ..., 1999). No início do século XX, os populistas remanescentes e neopopulistas se aglutinaram no Partido Socialista Revolucionário, que a despeito de adotar o socialismo como sua bandeira política, rejeitava o marxismo como teoria e guia de ação, ignorando, portanto, as análises mais científicas e materialistas do processo de desenvolvimento histórico e

36

social. Neste sentido, seguiram rivalizando com os marxistas russos até a revolução socialista de 1917.27

Na América Latina e especialmente no Brasil, o termo “populismo” adquiriu significados bastante distintos. Associado aos processos de industrialização e de urbanização – sendo também entusiasta destes –, o populismo caracteriza-se menos como uma corrente política propriamente dita – como foi no caso da Rússia – e sim como uma forma de atuação prática de lideranças políticas. A historiografia, por sua vez, costuma caracterizar o período político que vai de 1946, com o fim do Estado Novo, até o golpe burguês-militar de 1964, como “democracia populista”. Segundo Jaccoud (1990):

A “democracia populista” significou assim, desde o seu nascimento, um fenômeno complexo, de inserção das classes trabalhadoras, em especial do proletariado urbano, no processo político nacional. O crescimento da organização dos trabalhadores, a ascensão das lutas populares e a intensificação de seus movimentos reivindicatórios teceram um período de significativas conquistas democráticas, e de ampliação do espaço político de atuação popular (p.15).

Neste sentido, o populismo é apresentado como uma dualidade. Por um lado, representava um modelo de desenvolvimento voltado para a democratização do Estado e a participação política das classes proletárias. Por outro lado, representava também uma política de dominação ideológica, procurando conduzir as demandas populares nos limites estatais, impostos pela manipulação e conciliação política. Neste sentido, “combinou a participação e o pluralismo com a coerção e a restrição” (ibidem, p.15). Segundo a autora, a ambiguidade da “democracia populista” também pode ser constatada através da percepção do “caráter autoritário” de sua estruturação político- institucional, que pode ser percebida através do tutelamento do sindicalismo urbano, da cassação do registro eleitoral do PCB, assim como na resistência à organização dos trabalhadores rurais (ibidem). Todavia, este aspecto autoritário, coercitivo e restritivo também passou a ser colocado em xeque pelas classes obreiras, que cada vez mais se projetavam com maior autonomia, radicalizando suas pautas e procurando avançar em seus ganhos materiais e simbólicos. Também podemos atestar os aspectos ambivalentes do populismo brasileiro nas análises de Francisco Weffort (1980):

27 Uma ala de esquerda do partido socialista revolucionário, já separada do partido antes da revolução

socialista, decidiu apoiar a revolução bolchevique, mas sua participação no novo governo foi breve e logo viriam a romper com os comunistas russos (COMITÊ..., 1999).

37 Foi, ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do poder para os grupos dominantes e a principal forma de expressão política da emergência popular no processo de desenvolvimento industrial e urbano. Foi um dos mecanismos através dos quais os grupos dominantes exerciam seu domínio, mas foi também uma das maneiras através das quais esse domínio se encontrava potencialmente ameaçado (p.62).

Para Ianni (1968), o populismo brasileiro foi uma consequência direta da industrialização e urbanização, sendo associado diretamente aos processos de rompimento econômicos e políticos ocorridos no Brasil e no exterior. Com o esgotamento do processo desenvolvimentista baseado na substituição de importações, além do receio de que o populismo pudesse transcender as barreiras de manipulação política das massas trabalhadoras, projetando-as no cenário nacional com objetivos cada vez mais autônomos e contestadores da ordem social estabelecida. Com o crescimento do movimento nacionalista e o fortalecimento das organizações de representação das classes trabalhadoras e, por conseguinte, do próprio acirramento da luta de classes, o projeto de conciliação de classes começou a entrar em colapso, principalmente após a associação da grande burguesia nacional com o capital multinacional monopolista, no decorrer do processo industrializante:

A democracia populista, garantindo o progresso das conquistas democráticas, transforma-se no palco das conquistas democráticas, transformava-se no palco da apresentação das reivindicações econômicas e políticas das classes populares e da luta por suas conquistas. [...] O Estado populista ocupava, então, um papel cada vez mais ambíguo, pressionado pelas “organizações populares de esquerda” para uma ação política cada vez mais ideológica (JACOOUD, 1990, p.19).

Com o aguçamento das contradições de classe, motivadas pelo fortalecimento das pautas reformistas na sociedade, o populismo começou a ruir, “não se mostrando mais capaz de superar os antagonismos entre os interesses das classes e facções de classe que pretendia conciliar” (ibidem, p.17). As possibilidades de canais de diálogo “direto” com as massas obreiras, e o atendimento parcial de suas demandas tornaram-se insuficientes para canalizar os anseios e aspirações das camadas subalternas dentro de um desenvolvimento econômico que não rompia com a herança colonial brasileira, sendo, portanto, incapaz de cooptar tanto o movimento camponês em ascensão e que se chocava cada vez mais com o latifúndio, como o próprio movimento nacionalista que ganhava força e expressão e, ao se radicalizar, entrava em conflito inconciliável com o imperialismo norte-americano, tido como principal inimigo da nação.

38

Entretanto, acreditamos ser fundamental o emprego com cautela do termo “populismo”, e inclusive em nosso trabalho o utilizaremos com pouca frequência. Primeiramente, acreditamos que o emprego do termo “democracia populista” para abranger todo o período desde a redemocratização em 1945 ao golpe burguês-militar em 1964, um tanto quanto impreciso. Isto porque em cada governo houve seu contexto bastante específico e em muitos aspectos até mesmo antagônico ao que o precedeu. As discrepâncias entre Eurico Gaspar Dutra e João Goulart, assim como deste último para com Jânio Quadros, são exemplos de como a caracterização de todo um período histórico tão diversificado não é uma tarefa das mais simples, sobretudo ao se atribuir uma pretensa generalização intrínseca ao estilo de governo, seus objetivos e trato com as massas trabalhadoras, assim como a hegemonia burguesa sobre o aparato estatal, que só foi se consolidando durante o governo de Juscelino Kubitschek, mas que posteriormente apoiaria massivamente a deposição do presidente João Goulart. Em segundo lugar, não se constitui como um encargo singelo definir quais políticos ou partidos merecem a denominação de “populistas”. Afinal, tais definições são continuamente empregadas para caracterizar tanto políticos considerados de direita, como Jânio Quadros e Ademar de Barros, como de esquerda, como João Goulart e Leonel Brizola. Com o advento da Ditadura Militar, o termo “populista” passou a ser considerado como sinônimo de demagogia e assistencialismo, tornando ainda mais difícil sua análise acadêmica independente das suas conotações políticas mais popularmente difundidas. Desta forma, e visto que não acarretará quaisquer prejuízos para nossa pesquisa, não afetando o trabalho em dimensão e profundidade, optamos pela utilização do termo de maneira mais restrita, limitando sua aplicação aos usos circunstanciais pelos autores estudados. Em contrapartida, o emprego do termo “nacionalismo” para nós é profundamente vital, pois acreditamos ter sido o verdadeiro arcabouço ideológico que possibilitou a formação da frente popular em Pernambuco.

Por sua vez, o conceito de trabalhismo enquanto corrente política nasceu na Inglaterra, nas décadas que se seguiram à industrialização, como produto do desenvolvimento político e da consciência de classe do movimento operário através das lutas de classe por ele travadas. O trabalhismo – enquanto corrente política e ideológica do movimento operário – se traduz na luta por melhores direitos para a classe trabalhadora, de maneira contínua e progressiva, embora abrindo mão de opções

39

revolucionárias ou que visem a abolição do capital e, como ato contínuo, do sistema de dominação de classe. Aproxima-se, neste sentido, da social-democracia europeia, com verniz socialista, mas procurando distanciar-se do comunismo e do bolchevismo soviético. Contudo, seu surgimento no Brasil esteve mais associado a um contexto inicial bastante diferenciado, sendo não um produto espontâneo das lutas operárias, mas sim através do sindicalismo oficial e do Ministério do Trabalho estadonovista,28 comandado por Marcondes Filho, considerado principal articulador orgânico do Partido Trabalhista Brasileiro, seguido por Segadas Viana, seu principal assessor técnico, e sob a chancela do então presidente Getúlio Vargas (GOMES, 2005). O trabalhismo brasileiro nasceu, portanto, de dentro do Estado, fato que lhe conferiu desde o nascedouro uma profunda marca fisiológica e conciliadora (ou simplesmente “pelega”, de acordo com a linguagem política brasileira). Segundo o político nacionalista pernambucano Barbosa Lima Sobrinho, “havia em primeiro lugar os pelegos, porque todos os elementos trabalhistas, em geral, gravitam em torno do governo, do poder” (SOBRINHO, 1977, apud DELGADO, 2011, p.76).

Tendo como ponto de partida a formação de uma ampla máquina sindical corporativa, somada às conquistas progressivas de direitos trabalhistas pelas camadas populares – culminando na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1943 –, e o ingresso definitivo do proletariado urbano na cena política nacional, o trabalhismo brasileiro surgiu no cenário nacional como uma alternativa não revolucionária e não comunista de representação política das camadas laboriosas, conciliando os conflitos entre capital e trabalho, e tendo como principal expressão retórica e prática a defesa intransigente da legislação trabalhista erguida durante o governo Vargas, sendo este a inconteste liderança política desta vertente ideológica. Esta nova corrente foi materializada na criação do PTB, elaborado, segundo Ângela de Castro Gomes (2005), como uma “proposta de criação de um partido nos moldes do Partido Trabalhista Britânico. Isto é, um partido com bases nas massas trabalhadoras e que deveria constituir-se em divisor de águas – entre a extrema esquerda e a extrema direita” (p.271). Neste aspecto, o partido cumpriria um papel fundamental para conciliar as lutas de classe no Brasil, sendo um contraponto à influência comunista no movimento

28 Criado em 1930, agrupando também as atividades empresariais, era denominado de Ministério do

Trabalho, Indústria e Comércio, mantendo estas atribuições até 1960, quando foi transformado em Ministério do Trabalho e Previdência Social. Desde 1999, recebe a denominação de Ministério do Trabalho e Emprego.

40

operário. Entretanto, segundo Alberto Pasqualini, um dos principais representantes da ala ideológica do PTB, as diferenças entre o trabalhismo inglês e o trabalhismo brasileiro eram bastante nítidas, não se resumindo, portanto, ao contexto histórico e social distinto em que surgiram:

Não se pode assemelhar o trabalhismo nacional ao trabalhismo inglês. Este é de índole socialista, ao passo que o trabalhismo indígena (o programa nacional) é capitalista e, paradoxalmente, conservador. Isso se explica porque, na concepção desse programa, as aspirações máximas do trabalhismo encontraram sua realização no Estado Novo (PASQUALINI apud DELGADO, 2011, p.68).

O termo “conservador” utilizado por Pasqualini não se refere à adesão de posições antipopulares ou de matriz liberal. Embora alguns trabalhistas dissidentes do PTB participassem de composições eleitorais com agrupamentos de direita – como o caso da corrente janista, ligada a Jânio Quadros –, os trabalhistas, via de regra, se aproximavam dos setores nacionalistas e esquerdistas. Não obstante, não possuíam como objetivo estratégico, nem mesmo em longo prazo, a implantação de políticas de caráter socialista, como a abolição da propriedade privada dos meios de produção ou a socialização das riquezas nacionais, mas sim, o desenvolvimento autônomo do capitalismo, a expansão do parque industrial e a nacionalização dos recursos naturais considerados como estratégicos para o país. É dentro desta perspectiva que os trabalhistas brasileiros se somaram aos comunistas nas lutas queremistas e, posteriormente, pela nacionalização do petróleo. Com a organização de greves e passeatas conjuntas, conseguiram paulatinamente ir aprofundando relações entre si e, deste modo, passaram a se influenciar mutuamente, culminando nas alianças sindicais e eleitorais e nas campanhas unificadas pelas reformas de base na década de 60. Neste sentido, pesou decisivamente também a experiência prática de luta das massas proletárias que apostavam no trabalhismo como alternativa política. Longe de possuírem um papel passivo e absolutamente tutelado neste processo, os operários amadureciam politicamente, como exposto por Lucilia Delgado (2011), e passariam a usufruir de sua “autonomia potencial” para estimular e pressionar as lideranças sindicais e políticas para posições cada vez mais consequentes e reformistas no plano social, político e econômico.

Apesar de o trabalhismo do PTB ter buscado inspirar-se no Labour Party [Partido Trabalhista] inglês para elaboração de seu corpo doutrinário, no Brasil, o programa do partido também se sustentou em especificidades

41 peculiares à história política social brasileira. Ou seja, a defesa da legislação trabalhista e social da primeira era Vargas, a luta contra a pobreza, a resistência ao avanço imperialista e, por fim, o culto ao getulismo que, apesar de não uniforme, foi predominante no partido. O trabalhismo inglês seria tão só uma roupagem neutra, sem a expressão real que os fundadores do partido insistiram em dar ao PTB (DELGADO, 2011, p.77, grifo nosso).

Todavia, foi justamente esta roupagem ideológica que possibilitou a formação de uma ala mais ideológica entre os trabalhistas brasileiros. Apesar de no início serem numericamente reduzidos e em constante tensão com os segmentos mais oficialistas e pragmáticos, os setores mais reformistas terminariam se expandindo e se fortalecendo concomitantemente ao crescimento do movimento nacionalista, que à medida que vai se enraizando nas camadas populares, vai se radicalizando e ganhando conotações cada vez mais reformistas e contestadoras da ordem social vigente. Se as influências ideológicas do trabalhismo britânico para com o brasileiro foram superficiais e bastante limitadas, o mesmo não se pode dizer do movimento nacionalista no país, que exerceu uma poderosa ação progressista e catalisadora sobre os trabalhistas brasileiros durante aquele respectivo momento histórico.