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O portfólio como elemento (des)silenciante na Educação de Jovens e

2.1 A Educação de Jovens e Adultos: encontros e desencontros

2.3.2 O portfólio como elemento (des)silenciante na Educação de Jovens e

Pensar as condições para o desenvolvimento educacional com qualidade para todos implica uma série de elementos ou fatores. Não basta garantir o acesso, a permanência ou promover discursos sobre a democratização do ensino, pois estes convergem para um horizonte mais amplo das políticas públicas educacionais, nas quais estão implicadas as maneiras da formulação, organização, orientação e operacionalização do processo pedagógico.

Não é sem razão que ultimamente vários estudos e pesquisas vêm concentrando atenção especial nos índices de desempenho de estudantes e escolas. São números que sinalizam o quanto a escola, por meio do seu trabalho pedagógico, não está sendo suficientemente satisfatória a ponto de promover as aprendizagens. Não estou aqui apontando essas avaliações e a sua forma de operacionalização como boas e legítimas, visto que muitos resultados e a maneira homogeneizadora como as avaliações vêm sendo aplicadas revelam o seu lado perverso, como, por exemplo, o ―ranqueamento‖.

Talvez essa forma perversa ainda enraizada nas políticas públicas ressoe também na organização do trabalho pedagógico, tanto por professores como por estudantes, e precisa ser repensada e redimensionada. A visão utilitarista, pragmática, mecânica, burocrática que caracteriza a escola de cunho tradicionalista impõe, por meio das suas práticas avaliativas, a sua forma autoritária de separar os ―bons‖ dos ―ruins‖, os ―fortes‖ dos ―fracos‖, colaborando para a desigualdade, exclusão e segregação.

Assim, quando trago para este cenário a discussão e a reflexão sobre a organização do trabalho pedagógico, sinalizo o quanto é necessário e urgente também pensar, questionar e refletir sobre a posição ocupada pela avaliação. Essa organização não se isenta de ponderar sobre as suas concepções e práticas adotadas, instrumentos e critérios utilizados. Em especial, neste texto trago para o debate a utilização do portfólio e a sua relação no processo avaliativo com a possibilidade de promover o (des)silenciamento do estudante da Educação de Jovens e Adultos.

Para que não haja equívoco, convém explicitar a indispensável função de se pensar nos instrumentos e critérios avaliativos. Entretanto, a sua utilização, por si só, não estará a serviço das aprendizagens e da construção de uma educação democrática. O que definirá a serviço de quem a avaliação estará serão as crenças, concepções e posturas dos envolvidos no processo avaliativo. É evidente que a figura do professor tem uma relevância significativa no processo,

defendo, porém, a construção de uma prática avaliativa participativa e dialógica entre os vários sujeitos.

Sobre a utilização de instrumentos e critérios avaliativos, Silva (2008b) afirma:

A diversificação dos instrumentos avaliativos tem uma função estratégica na coleta de um maior número e variedade de informações sobre o trabalho docente e os percursos de aprendizagens. [...] restringir a avaliação ao produto e a um instrumento é desperdiçar uma diversidade, no mínimo, de informações do processo que são úteis ao entendimento do fenômeno educativo e à tomada de decisão para as mudanças necessárias (Ibid, p.16).

Quanto à diversificação dos instrumentos avaliativos e à sua vinculação a concepções teóricas e metodológicas, Silva acrescenta:

A diversidade de instrumentos avaliativos precisa estar inserida em uma sistemática, atender a uma metodologia própria da teoria e da prática da avaliação educacional e adequá-la à natureza do objeto avaliado, seja o ensino e a aprendizagem, o currículo, o curso, o programa, a instituição, etc. Diversificar não é simplesmente adotar vários instrumentos aleatoriamente, a avaliação é um campo teórico e prático que possui um caráter metódico e pedagógico que atende a sua especificidade e intencionalidade (Ibid, p.17).

Nesse contexto, o trabalho com portfólio na Educação de Jovens e Adultos possibilita ao estudante o exercício reflexivo sobre as produções, tarefas e aprendizagens, evidenciadas no portfólio. Os estudantes podem ainda analisar os avanços e os pontos a serem trabalhados em prol de alguma aprendizagem ainda não realizada. O trabalho avaliativo no qual o portfólio pode ser utilizado constitui uma alternativa em busca da construção de uma avaliação participativa, dialógica e dialética.

Prefiro utilizar o termo ―trabalho com o portfólio‖, (Villas Boas, 2004b; 2005; 2008), pois o uso desse termo possibilita captar e compreender de que forma pode ser utilizado em torno das aprendizagens e das posturas de professores e estudantes. Para alguns autores, o portfólio pode ser empregado como procedimento metodológico (Alves, 2006; Zanellato, 2008; Vieira, 2006); para outros, como instrumento avaliativo (Alvarenga e Araujo, 2006a, 2006b; Sá-Chaves, 1998).

Ao realizar o trabalho com o portfólio na Educação de Jovens e Adultos, o professor tem a possibilidade de ir visualizando processualmente o progresso e o desenvolvimento do estudante mediante os registros acumulados, produzidos e socializados. Esta forma de agir facilita o processo por meio das sucessivas avaliações, apontando pistas e critérios que devem

ser levados em consideração no processo avaliativo que ocorre tanto pelo estudante como pelo

feedback que o professor lhe proporciona.

Segundo Frison (2008),

[...] possibilita que a avaliação seja algo pertinente ao trabalho, esteja sempre co- relacionada com aquilo que está sendo planejado e desenvolvido. É importante que o professor não ignore o aluno na sua apreciação sobre o assunto, proporcionando-lhe e estimulando autoavaliar-se, julgar, pensar, refletir sobre o que é feito torna o portfólio um instrumento dinâmico e significativo de avaliação das aprendizagens realizadas. Ele também é referência, é uma estratégia que permite organizar a avaliação formativa de acordo com as idéias e os princípios estabelecidos na proposta pedagógica (Ibid, p. 214).

Deste modo, vejo no trabalho com o portfólio embasado em concepções que visem à formação do sujeito com vistas ao aprendizado, a abertura para o diálogo, a participação, o respeito, a ética e outros elementos. O ambiente assim constituído torna-se potencializador dos processos avaliativos entre professores e estudantes, sendo dadas voz e vez a todos.

Promover o rompimento das práticas avaliativas que silenciam o estudante representa compor uma nova dinâmica para a cultura escolar, pois historicamente sempre foram evidenciadas de forma majoritária, no percurso da história da educação brasileira, práticas e posturas que não eram favoráveis a dar vez e voz aos estudantes ou ao diálogo entre os envolvidos no processo avaliativo. Dessa forma,

Evidencia-se a necessidade de uma profunda transformação na dinâmica escolar como processo socialmente configurado, visto que a inclusão só se torna possível com a realização de um processo educacional, e a avaliação como um de seus mais significativos procedimentos, tecido por fios e através de movimentos que rompam com as relações que historicamente segregam, aniquilam, reduzem, impedem, produzindo o outro como ausência e impossibilidade (ESTEBAN, 2004, p.165).

Dado esse entendimento sobre o silenciamento no âmbito da cultura e do espaço escolar, convém ressaltar a que silenciamento eu me refiro. Aqui entra em cena o silêncio compreendido na sua dimensão política, em que se ―proíbem certas palavras para se proibirem certos sentidos nos processos discursivos‖ (ORLANDI, 2007, p.76).

Para Orlandi (2007), Laplane (2000) e Le Breton (1997), o silêncio é tido como objeto de estudo por linguistas, psicólogos, filósofos e outros de várias maneiras, a partir do olhar do pesquisador. Existem ainda para esses autores os vários tipos de silêncio, as suas formas, as suas várias possibilidades. Todavia, destaco que o foco do meu estudo e interesse é restrito à compreensão do silêncio como política, ou seja, o silenciamento.

De acordo com Orlandi (2007), a forma do silenciamento se manifestar perpassa não a forma de fazer calar diretamente, mas a forma de dizer uma coisa, para não deixar mencionar outra, pois

[...] o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição de sujeito – ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo ―outros‖ sentidos. Isso produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar andam juntos. [...] o silêncio recorta o dizer (Ibid, p.53).

Assim, é relevante compreender que o silêncio político

[...] adquire um significado que não pode ser concebido fora dos hábitos culturais da fala, fora do estatuto de participação de quem fala, fora das circunstâncias e do conteúdo da comunicação e da história pessoal dos indivíduos em presença. O mutismo súbito de um indivíduo acostumado a falar ou a fala de um silencioso só se compreendem na trama de uma situação precisa (LE BRETON, 1997, p.75-76).

A partir desse posicionamento, compreendo o silêncio na sua forma mais ampla, não como uma substância que perpassa o ambiente, mas como as relações se estabelecem. No âmbito escolar, perceber como os discursos são produzidos, reproduzidos e capazes de constituir relações entre os vários sujeitos. Nesta perspectiva,

Os discursos da educação são analisados por sua capacidade para reproduzir relações dominantes/dominados que, embora externas ao discurso, penetram as relações sociais, os meios de transmissão e a avaliação do discurso pedagógico (BERNSTEIN, 1996, p. 229).

Para Bernstein,

[...] consideramos que estes dispositivos [discursos pedagógicos] fornecem a gramática intrínseca do discurso pedagógico, através de regras distributivas, regras recontextualizadoras e regras de avaliação. Essas regras são elas próprias, hierarquicamente relacionadas, no sentido de que a natureza das regras distributivas regula as regras recontextualizadoras, as quais, por sua vez, regulam as regras de avaliação. [...] as regras recontextualizadoras regulam a constituição do discurso pedagógico específico. As regras de avaliação são constituídas na prática pedagógica. O dispositivo pedagógico gera um governador simbólico da consciência (Ibid, p. 254).

Assim, fica exposto o quanto muitas das regras e a constituição do silenciamento por meio das práticas pedagógicas têm suas maneiras de significar. Não faladas, não são

mencionadas e simplesmente significadas, pois o silêncio, na sua forma política, ―produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz‖ (ORLANDI, 2007, p.73).

De acordo com Le Breton (1997, p. 143-144), ―o silêncio às vezes é tão intenso que soa como a assinatura de um lugar, como substância quase tangível, cuja presença invade o espaço e se impõe constantemente à atenção‖. Perceber a forma como o silenciamento se impõe no cotidiano escolar significa entender os processos pelos quais a ação pedagógica se configura nesse espaço e a serviço de que tipo de formação.

É importante considerar que, quanto mais a escola — por meios e mecanismos silenciadores — promove a exclusão, menos ela possibilitará a construção de uma educação na qual os sujeitos envolvidos no processo possam exercer o seu papel de cidadania e de transformação social. Mudar essa dinâmica não é tarefa fácil nem rápida, pressupõe indagar as relações, conflitos e contradições envolvidos no processo, além dos jogos de interesses. A partir desse entendimento, Esteban (2004) afirma:

[...] problematizar esta dinâmica requer ressaltar a dinâmica sobre as relações de poder e a sua articulação com a dinâmica de produção, validação e distribuição dos conhecimentos, dando visibilidade também às subjetividades e singularidades tecidas no processo de exclusão que promove ruptura e deterioração individual e social (Ibid, p. 165).

Nesse sentido, acredito que, diante do que foi exposto até aqui, o trabalho com o portfólio na Educação de Jovens e Adultos pode potencializar o (des)silenciamento dos sujeitos envolvidos no processo, pois poderá constituir-se como uma possibilidade na qual professor e estudantes exerçam poderes compartilhados, escuta, diálogo, construção de aprendizagens diversas, assim como também a assunção de sucessos e ―insucessos‖, de acordo com os objetivos e a avaliação estabelecidos no trabalho a ser executado por meio do portfólio.

Para Esteban (2004),

[...] produzir processos de avaliação vinculados a um projeto capaz de abrigar e estimular o pensamento, a invenção e a diferença exigem uma redefinição das relações, criando a possibilidade de compartilhar poder e saber, processos, práticas, projetos, esperanças, mas também o insucesso, o erro, a dúvida, a impossibilidade, a incapacidade, o que demanda uma redefinição das práticas que temos realizado na escola (Ibid, p.170).

A partir deste ponto de vista ressalto o quanto o trabalho com o portfólio apresenta um forte potencial para inserir-se numa análise que investiga os processos de construção de conhecimento e de aprendizagens dos estudantes, dando-lhes vez e voz. Permite ao professor o olhar e a escuta com aqueles estudantes que ainda não lograram aprendizagens satisfatórias de acordo com os objetivos estabelecidos, além do processo de feedback que poderá ocorrer durante todo o processo.

Portanto, ratifico mais uma vez a necessidade da construção de práticas avaliativas na Educação de Jovens e Adultos em que se façam presentes as diversas vozes dos sujeitos ali envolvidos, opinando, participando, autoavaliando, contestando, pois, com base nas palavras de Esteban (2004), é marcante o quanto no ambiente escolar, por meio de práticas avaliativas, o silêncio é um fator preponderante na sua dimensão política. Para a autora,

As práticas avaliativas cuidadosamente se inserem nessa dinâmica, atuando no sentido de produzir um silenciamento do diferente ou da diferença, que vai apagando a alteridade, borrando as características que constituem o outro, de tal forma deslocando na relação pedagógica que sua presença não diminui a distância que evita que nós possamos ouvi-lo, reconhecê-lo e respondê-lo. Embora seja mantida a distância, não aceitamos que o outro não nos ouça, não nos reconheça e não nos responda. O diálogo é excluído do processo pedagógico, e todas as vozes são modeladas para se incorporarem ao monólogo que reproduz incessantemente o discurso hegemônico (Ibid, p.164).

Isso mostra o quanto ainda há por fazer e combater no âmbito das práticas pedagógicas que silenciam, excluem e marginalizam os sujeitos. Com base em Bernstein (1996), muitas dessas práticas assumem caráter ora visível, ora invisível. Conforme o autor, as primeiras são programadas para cumprirem determinadas metas, objetivos, dando ênfase ao desempenho; as segundas se caracterizam pelas regras discursivas conhecidas apenas pelo transmissor, enfatizando a aquisição de procedimentos pelos que recebem do transmissor.

Concordo com Esteban (2004) quando afirma o como é difícil sustentar uma reflexão e posturas sobre as diferenças no processo pedagógico. Entretanto, acredito também que não é mais concebível que, em pleno século XXI, práticas avaliativas não dêem vez, voz e visibilidade aos sujeitos envolvidos nesse processo. Daí o portfólio ser uma possibilidade para a promoção de aprendizagens, saberes e reflexão do trabalho pedagógico na Educação de Jovens e Adultos.