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O positivismo inclusivo e a moral

No documento Hélio de Negreiros Penteado Filho (páginas 98-102)

2 DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA JURÍDICA

2.3 Jusnaturalismo – séculos XVII a XVIII

2.3.3 O positivismo inclusivo e a moral

Uma vez que, principalmente no âmbito da filosofia do direito alemão pós- guerra, o positivismo tornou-se alvo de muitas críticas, a segunda alternativa de superação da polêmica se dá por uma reformulação da doutrina do direito positivo a fim de assegurar em seu âmbito um espaço para a moralidade. O debate contemporâneo na Filosofia do Direito é marcadamente metodológico, as questões sobre a normatividade dos princípios, a separação entre direito e moral, discricionariedade judicial, dentre outras, não são mais pontos de partida das investigações filosóficas, mas decorrências. As diferenças metodológicas sobre as quais se discutem, estão no cerne da pesquisa epistêmica filosófica-científica de descoberta da realidade, ou seja, da investigação de quais são os elementos que podem servir como parâmetro de avaliação da experiência humana. Uma das principais chaves de compreensão do estágio atual deste debate no direito está na confrontação entre as ideias de Herbert Hart e Ronald Dworkin e depois no contexto do debate entre Joseph Raz e Dworkin, numa terceira via que se pode nominar “positivismo inclusivo”. Dworkin defendeu a tese de que o direito válido não poderia

ser reconhecido a partir da remissão a fatos sociais, vez que certos parâmetros utilizados pelos juízes fundam sua validade em razão de sua correção moral. Nesse sentido, o direito estaria necessariamente ligado a moral, sendo que a interpretação do direito se daria à luz dos parâmetros morais.

Por outro lado, Raz afirmava que a validade de qualquer norma jurídica só pode ser determinada por fatos sociais independentes de quaisquer conteúdos morais, concebendo o direito e a moral como esferas absolutamente distintas. Encontra-se, assim, instaurada uma polêmica interna no positivismo entre a versão inclusiva e a versão exclusiva. A síntese entre as duas concepções se dá a partir do reconhecimento de que, muito embora, nos sistemas jurídicos atuais o direito e a moral estejam interligados, este fato não implica uma conexão lógica, mas somente empírica e circunstancial, não sendo contraditório imaginar um sistema jurídico no qual estas esferas estejam perfeitamente segregadas como subsistemas de um sistema maior que as contém. Estando assim de acordo sobre a tese central do positivismo teórico que é a existência do direito dependente de fatos sociais, ou seja, ações realizadas por membros de determinada comunidade mesmo que os positivistas inclusivos e exclusivos tenham entendimentos diversos sobre a necessidade de se recorrer a uma esfera exterior para a interpretação da norma.

Vale lembrar que na construção escalonada de Kelsen, cada norma jurídica retira sua validade de uma norma que lhe é hierarquicamente superior e, sucessivamente, até a norma fundamental, pressuposto de validade de todo o sistema e todas as normas jurídicas válidas se estabeleceriam a partir de sua promulgação em conformidade com a norma fundamental. Evidentemente essa concepção está sujeita a uma crítica imediata: tendo que deter o regressus ad infinitum pelo estabelecimento de uma norma fundamental, não se pode mais razoavelmente apresentar um fundamento de validade dessa mesma norma, nem explicar sua autoridade.

A dependência do direito em relação aos fatos sociais, portanto, não é somente a tese central do positivismo, é também seu “calcanhar de Aquiles”, o ponto no qual a teoria se fragiliza e dá margem a divergências entre os próprios juspositivistas. Nesse sentido, os positivistas exclusivos, adotam uma variação forte da tese e, como Kelsen, advogam que todas as normas jurídicas, primárias ou secundárias, dependem unicamente dos fatos sociais. Já os positivistas inclusivos, reconhecem que certas

normas primárias podem fundar sua validade sobre a correção moral, desde que isso seja previsto pela norma de reconhecimento. Para estes, a tese da derivação dos fatos sociais é ainda válida plenamente quanto à regra de reconhecimento do direito, mas não o seria quanto a certas normas jurídicas primárias reconhecidas por ela. Entretanto, é fato que os positivistas reconhecem que são frequentes as coincidências entre as normas morais e as normas jurídicas. O que distingue aqui os positivistas inclusivos dos exclusivos é que estes últimos adotam uma teoria estrita da independência: as normas jurídicas são sempre independentes conceitualmente das normas morais, na medida em que se pode teoricamente fundar a autonomia dos sistemas jurídicos. Por sua vez, os positivistas inclusivos, afirmam uma tese mais fraca, qual seja, de que é possível, mas não necessário, estabelecer a autonomia do sistema jurídico em face da normatividade moral. Assim, a tese da separação dá lugar a uma tese da “separabilidade”, de modo a que o fato empírico, frequentemente verificado, da convergência entre a norma moral e a norma jurídica não é capaz de abalar o fundamento da tese.

Nesse sentido, para os teóricos do positivismo jurídico inclusivo, a rejeição da tese da conexão entre direito e moral é de ordem analítica, ou conceitual, mas nada impede que, em uma contingência histórica, critérios morais sejam incorporados a um ordenamento jurídico específico, de maneira que o estabelecimento do direito válido e a realização de sua interpretação passem a depender não apenas de elementos formais de validade, como também de parâmetros substanciais de justiça. Desse modo, é acertado dizer que o positivismo jurídico inclusivo, como qualquer teoria positivista, pressupõe a tese da separabilidade conceitual entre direito e moral, mas admite a conexão eventual entre direito e moral, a depender de questões de natureza fática, diferenciando-se, por conseguinte, do positivismo jurídico exclusivo, que, conforme anteriormente salientado, não admite qualquer papel desempenhado por normas morais no exame da validade jurídica das normas de um dado ordenamento jurídico. Compreende-se, portanto, que a versão “inclusiva” do positivismo jurídico constitui um conjunto de versões enfraquecidas das principais teses juspositivistas, de tal modo a que o próprio núcleo teórico do positivismo é mitigado. Por outro lado, a tese não parece ser suficiente para conciliar o positivismo e o naturalismo, de modo a que a aproximação permanece precária e insuficiente em face das exigências da doutrina dos direitos naturais, uma vez que relega a convergência entre normas

morais e normas jurídicas ao plano meramente factual, desdobrando ainda uma versão rigorosa do positivismo no plano teórico.

Desse modo, não acreditamos que o chamado “positivismo inclusivo” logre superar de forma sustentável a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo. Na verdade, configurando-se como uma versão enfraquecida do positivismo jurídico, tal tendência, uma versão suficientemente decalcada do positivismo para escapar às principais críticas, sem, contudo, tornar admissível, sequer em parte, a noção de direitos naturais. O apelo à moralidade, empiricamente sustentada, não se concebe como um acordo como o naturalismo hobbesiano, uma vez que o fundamento da regra de reconhecimento permanece vinculado à tese da derivação dos fatos sociais.

Parece mesmo que o principal obstáculo à superação dessa polêmica está no fato de que, enquanto, o naturalismo é necessariamente dualista, o positivismo é, ao menos conceitualmente, monista. Mesmo o positivismo inclusivo não abandona o monismo ao conceder um espaço fático à moralidade. A teoria permanece monista uma vez que a convergência entre normas morais e jurídicas se dá tão somente no âmbito empírico. Assim, afirmar-se que certas regras primárias, reconhecíveis positivamente, podem receber seu fundamento de validade da correção moral, ao nível de sua interpretação, é ainda muito diferente de afirmar que tais normas valem por sua correção moral. Se no primeiro caso, temos somente uma versão enfraquecida do próprio positivismo, no segundo dificilmente se reconheceria uma tese positivista. De fato, devido ao núcleo epistemológico da confrontação de monismo versus dualismo não parece possível uma plena síntese entre as duas doutrinas, havendo de se considerar os compromissos das versões recentes como demonstração da insuficiência de ambas em vista da satisfatória teorização do fenômeno jurídico. Há de se reconhecer que tanto o naturalismo na versão relativista quanto o positivismo na versão inclusiva só podem se aproximar porque constituem versões enfraquecidas das teses centrais de cada doutrina. A confrontação entre jusnaturalismo e juspositivismo constitui, do ponto de vista lógico, uma oposição de contradição, o que implica dizer que se uma é falsa a outra é verdadeira e vice-versa numa solução binária simples. O núcleo da polêmica deve ser contornado para ficar apto a ensejar uma síntese dialética hegeliana.

Nessa posição de contradição fazer uma escolha entre uma em detrimento da outra apenas aumenta a deficiência da ciência e do método jurídico. Onde o próprio

positivismo inclusivo reconhece coincidência entre normas jurídicas e morais pode também reconhecer que os fatos sociais são interpretados também pela sociedade que os pratica o que faz dessa coincidência não mais meramente factual e sim substancial, e assim, numa semiótica fenomenológica, adequa-se as teorias para não serem vítimas de regimes absolutos de tirania.

O dualismo naturalista é realidade inevitável consolidado à medida que os direitos humanos modernos ganham grande espaço na discussão jurídica mundial e moldam a formação dos ordenamentos jurídicos domésticos através do reconhecimento internacional da dignidade da pessoa humana – marco histórico da nova era dos direitos humanos, onde e quando é necessário reconhecer o antigo anseio jusnaturalista por um direito justo. O que no caso atual se converte no anseio por um ordenamento jurídico que se acomode às garantias de preservação da dignidade humana.

No documento Hélio de Negreiros Penteado Filho (páginas 98-102)