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4.1 Princípios contratuais

4.1.5 O princípio da boa-fé objetiva

A boa-fé é tema estudado há muito tempo. Sua origem, no sentido conhecido hoje, é resultado de uma evolução da fides, do Direito Romano, que naquela época tinha mais de uma acepção.

Neste período, o Direito era comandado pelas actiones, isto é, a expressão de um direito subjetivo concedido por meio de uma fórmula dirigida ao juiz que decidia em função da mesma e das provas produzidas. Tais actiones eram rígidas, impedindo a adaptação às novas situações econômico-sociais. Para contornar este bloqueio, os pretores passaram a conceder as actiones sem base legal expressa, fundamentadas na fides, palavra precedida do adjetivo bona, criando a bona fides, ou seja, boa-fé.

Ainda nesta época a boa-fé ganhou uma característica subjetiva, exprimindo um estado próprio do sujeito para beneficiá-lo quando não tivesse consciência de que prejudicava outro indivíduo. O Direito Canônico também utilizou a boa-fé neste sentido, ligando-se sempre à idéia de culpa.

O Direito Civil Francês, por sua vez, cuidou da boa-fé, porém, no sentido subjetivo, conforme já se disse anteriormente, utilizando-a principalmente junto à figura da putatividade90. A interpretação de um artigo do Código de Napoleão, contudo, induz à

compreensão da boa-fé objetiva, qual seja, o 1134 que determina a execução das convenções de boa-fé. Não obstante, a discussão a respeito do dispositivo não foi alongada por seus criadores, tampouco pelos doutrinadores da época, relativizando a amplitude de sua aplicação e colocando-o em segundo plano nesta investigação.

Importante contribuição se deve ao Código Civil germânico. Partiu-se aqui de duas idéias, de boa-fé em sentido subjetivo, a guter Glauben, e objetivo, baseada na confiança e na

90 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 246: “O compulsar do texto

napoleônico releva menções à boa-fé nos artigos: 201 e 202 – casamento putativo; 549 e 550 – possuidor de boa fé, face aos frutos; 555 – ascessão; 1134 – dever de executar as convenções de boa fé; 1238 – pagamento recebido de boa fé; 1240 – pagamento feito de boa fé; 1269 – cessão judiciária de bens, permitida ao devedor malheureux ET de bonne foi; 1869 e 1870 – boa fé na dissolução, por renúncia, da sociedade; 1935 – venda da coisa depositada feita, de boa fé, pelo herdeiro do depositário; 2009 – terceiros de boa fé na cessação do mandato; 2265, 2268 e 2269 – boa fé na prescrição.”

lealdade, daí o termo Treu (fidelidade) und Glauben (e crença). Em ambos os casos, sempre esteve presente a confiança e a característica da boa-fé como modelo de conduta.

A positivação inicial da boa-fé objetiva foi realizada por intermédio do §242 do BGB alemão (Bürgeliches Gesetzbuch) cujo sucesso logo após a 1ª Guerra Mundial, dentre algumas razões, se deu principalmente pelo fato dos juízes alemães naquele momento serem formados no culto do direito que prevalecera na Alemanha no século XIX, isto é, do direito que se desenvolveu por meio de princípios. Além deste dispositivo, o BGB trouxe em seu corpo outras menções à boa-fé, como por exemplo, os §§ 157, 162/1 e 2, 320/2 e 81591. Porém, será

dada maior atenção ao § 242, pois foi exatamente este dispositivo que inspirou os criadores do Código Civil brasileiro de 2002.

O BGB era um código moderno à vista de uma época em que não havia jurisprudências pacíficas sobre os mais diversos assuntos e, no entanto, era necessária sua aplicação a uma série de situações jurídicas desconhecidas, à crise econômica e política e à inflação.

Apesar da rigidez de algumas previsões, o BGB, que ainda está em vigor, foi dotado de cláusulas abertas que permitem as adequações acima citadas.

Diante das dificuldades econômicas e sócio-políticas então enfrentadas pela sociedade alemã, a letra fria e crua da lei tinha que ser afastada para que o Direito se adequasse às novas situações, mas, ainda assim, mantendo-se a segurança jurídica.

91Idem, pp. 325-326: “O BGB refere a boa fé [Treu und Glauben] em cinco das suas disposições. No §

157: “os contratos interpretam-se como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego”; no § 162/1 e 2/: “Quando a verificação da condição seja, contra a boa fé, impedida pela parte a aquém ela desfavoreça, tem-se por ocorrida” e “Quando a verificação da condição seja, contra a boa fé, provocada pela parte a quem favoreça, tem-se por não ocorrida”; no § 242: “O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego”; no § 320/2, a propósito da excepção do contrato não cumprido: “Quando, por uma das partes, apenas tenha havido uma prestação parcial, a contraprestação não pode, contudo, ser recusada quando a recusa, segundo as circunstâncias, em especial por causa da pequenez relativa do que falta, seja contrária à boa fé”; no § 815, a propósito do enriquecimento sem causa: “A restituição por não ocorrência do resultado visado com a prestação é excluída quando fosse, desde o princípio, impossível e o autor da prestação soubesse disso e quando este, contra a boa fé, tenha impedido tal resultado.”

Após as atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial, o respeito à dignidade da pessoa foi reforçado e a boa-fé se tornou o elo entre o Direito e a ética, recorrendo o primeiro a outras regras de conduta existentes entre os seres humanos e que extrapolam seu âmbito de atuação. Somente desta forma seriam reforçados os mecanismos jurídicos existentes destinados à preservação da dignidade como condição humana.

Essa divisão em boa-fé subjetiva (na qual se considera o estado de consciência do sujeito da relação em um dado comportamento) e boa-fé objetiva é recorrente na doutrina, principalmente com o advento do Novo Código Civil, a releitura de seus princípios e a funcionalização dos direitos para atingir os fins colimados pela Constituição de 1988.

Contudo, necessário estabelecer que a positivação da boa-fé objetiva não se deu somente no Novo Código Civil, tendo postado seu conteúdo, muito antes, o Código Comercial e, mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor. Este, em virtude de uma doutrina mais desenvolvida acerca da matéria, pôde prever para as relações de consumo, a boa-fé objetiva de forma mais próxima da que se observa atualmente no Código Civil, isto é, como regra de conduta:

“Resumindo, o Código de Defesa do Consumidor, positivou a boa-fé nos seguintes artigos:

a-) art. 12 está presente o dever de informar;

b-) como efeito do dever de informar encontram-se as obrigações derivadas do mesmo como, redigir o contrato de forma clara no art. 54, § 3º e, pontua o direito do consumidor de exigir informação mal prestada art. 20 e 35;

c-) destaca as cláusulas limitativas dos direitos do consumidor no art. 54, § 4º; e-) no art. 42 está presente o dever de cuidado.”92

A ética está muito presente no Código Civil de 2002 porque Miguel Reale, coordenador do seu Anteprojeto, sempre usou os paradigmas culturais em toda a sua obra e não deixou de fora do referido diploma as influências culturais que navegavam no mundo jurídico durante sua elaboração.

O princípio foi inserido no ordenamento sob forma de cláusula geral para compelir as partes a se comportar de forma correta e honesta não apenas antes como também durante e após a extinção do contrato.

92 VAZ, Denise dos Santos. O Princípio da Boa-fé Objetiva no Novo Código Civil. Dissertação de

Diante do crescimento populacional, a padronização das relações se mostrou inevitável, porém as situações em que os indivíduos estão posicionados não podem ser unificadas, isto é, há diferenças que merecem atenção para que seja mantido o equilíbrio, dependendo, em cada caso concreto, de cada diferença encontrada. Por isso:

o conceito de boa-fé objetiva, bem como a limitação dos deveres dela derivados, não foram taxativamente definidos na Lei. O legislador preferiu que o conteúdo da boa-fé objetiva fosse delimitado de acordo com cada caso concreto, conferindo, assim, maior flexibilidade para abranger novas relações comerciais e humanas que forem surgindo com o passar do tempo.93

Surge desta constatação importante questão a ser considerada. Ao mesmo tempo em que o princípio da boa-fé objetiva é dotado de flexibilidade para que seja possível sua aplicação às diferentes relações negociais que surgem antes de sua positivação, deve sempre obedecer aos padrões de ética, probidade e honestidade, como única forma de respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana, princípio maior da Constituição Federal. O princípio em tela é, ao mesmo tempo, causa, e fim em si mesmo, vez que surge da criação e da evolução histórica da sociedade e a ela se dirige. Será possível então, diante da constitucionalização do direito privado, realizar correções e direcionar o desenvolvimento social.

Apesar deste quadro de decisão em cada caso concreto, no qual a menção à boa-fé de modo “vago, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um sentido norteador no trabalho de hermenêutica”94, a importância dada à boa-fé como princípio fundamental da teoria do negócio jurídico está na sua função, “de parâmetro corretivo das normas legais, justificando o afastamento de uma regra quando essa conduza a um resultado inconciliável com a idéia de lealdade”95.

À mesma conclusão chegou o Conselho da Justiça Federal na I Jornada de Direito Civil, ao criar o Enunciado 26 para nortear os magistrados na interpretação e aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva: “Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do CC impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.”

93CALABRÓ, Luiz Felipe Amaral. Op. cit. pp. 96-97.

94VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2003, p. 379.

95 FRITZ, Karina Nunes. A boa-fé objetiva na fase pré-contratual. A responsabilidade pré-

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