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4 A CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS DISCRIMINATÓRIAS:

4.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA COMO BASE PROTECIONAL

O princípio da dignidade humana, apesar de parecer um conceito relativamente novo no contexto jurídico e social, possui um alcance histórico passado muito mais amplo. Além disso, é um dos mais sólidos legados da Constituição Federal de 1988, tendo em vista a importância que seu conceito reflete em todos os aspectos atuais da nossa sociedade por tratar do respeito ao aspecto de seres humanos sob o

qual estamos condicionados e dos efeitos que esta característica única nos proporciona.

Historicamente, a dignidade da pessoa humana possui origem religiosa, constatada nos registros bíblicos, onde consta que o homem fora feito à imagem e semelhança de Deus. Com a chegada da Idade Moderna e o advento do Renascimento, Iluminismo e, principalmente, do antropocentrismo, o conceito migra para a análise da filosofia, passando a ser fundamentado pela razão, a capacidade de valoração da moral e autoafirmação do indivíduo. No decorrer do séc. XX, ela se torna um fim político, um objetivo a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Após a Segunda Guerra Mundial, principalmente em virtude do fenômeno genocida do Holocausto e a posterior criação das Organização das Nações Unidas e a sua Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, os preceitos de dignidade da pessoa humana se movem gradativamente para o mundo jurídico, em razão de dois movimentos: o primeiro, de cunho cultural pós-positivista, que reaproximou o Direito da filosofia moral e da filosofia política, diminuindo a separação radical imposta pelo positivismo meramente normativista; e o segundo, que foi registrado pelo início da inclusão do tema em diferentes documentos internacionais e Constituições de Estados democráticos. Tornando-se um conceito jurídico, tendo como principal expressão um dever-ser normativo, e não apenas moral ou político, a consequência principal é que o princípio da dignidade humana torna-se sindicável perante o Poder Judiciário. Ao viajar da filosofia para o Direito, a dignidade humana, sem perder seu posto de valor moral, ganha também status de princípio jurídico (BARROSO, 2010).

Sarlet (2006) adverte sobre a dificuldade de estabelecer um conceito incisivo sobre a dignidade da pessoa humana, tendo em vista possuir contornos vagos e imprecisos, além de possuir uma característica abertamente polissêmica. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de que a dignidade da pessoa humana, diferentemente dos demais princípios fundamentais, não trata de aspectos específicos sobre a existência do ser humano, como o direito à vida, à propriedade, etc., mas sim, de uma qualidade intrínseca a todo e qualquer pessoa que a define como tal, o que, por si só, já possui um viés significativamente aberto.

Isso não impede, porém, de tentar estabelecer uma significação mais próxima possível do que seja a dignidade da pessoa humana, mesmo sem poder estabelecer uma definição abstrata e genérica do termo.

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A dignidade da pessoa humana abarca três preceitos fundamentais: valor intrínseco, que corresponde às características inerentes aos seres humanos por si só e que os diferencia das demais espécies; a autonomia, que engloba o poder de decisão que cada ser humano possui em realizar as suas próprias escolhas; e o valor comunitário, representado pelo Estado no seu estabelecimento de metas para o bem coletivo, mesmo que restringindo individualidades em nome da coletividade (BARROSO, 2010).

A figura do Estado possui importância substancial no que tange à dignidade da pessoa humana, pois deve ser o garantidor da aplicação deste princípio. Häberle (2013 apud CARVALHAES, 2015, p. 6-7), nos ensina, através de estudo baseado na vigente Constituição Alemã:

[...] A Legislação Fundamental da Alemanha nos remete a quatro dimensões da proteção jurídico-fundamental da dignidade humana; para tanto, desenvolve a ideia de um duplo significado do princípio face o Estado; primeiro, destaca o papel da não intervenção estatal nas relações individuais da sociedade, por outro lado, discorre sobre o encargo do Estado de proteger cada indivíduo, mediante o impedimento de violações em sua dignidade humana, perante toda sociedade, chamada pelo autor de “unidade entre defesa e proteção e entre liberdade e participação.” A segunda dimensão, segundo o autor, representa “A proteção jurídico-material e processual da dignidade humana”, consubstanciada na proteção material da dignidade humana através das leis; como o seu objeto de estudo foi a legislação alemã, destaca vários direitos garantidos pelo ordenamento jurídico do país, como exemplo, direitos da personalidade, direitos assegurados na área de família e direitos relacionados com o direito penal e processual penal. Como terceira dimensão, enfatiza a responsabilidade do Estado em assegurar ao indivíduo o mínimo necessário a sua existência, que deverá ser materializado através da disponibilização da educação, da saúde, mediante a efetiva atividade constitucional estatal. Por fim, como quarta dimensão e denominado de “Conteúdo e organização”, enfatiza nesse ponto o início e o fim da dignidade humana, que começa com a própria existência humana e se finaliza com a morte do indivíduo.

O princípio da dignidade da pessoa humana garante, essencialmente, a superioridade do ser humano, pelo seu caráter criador e elaborador da medida de todas as coisas. A sua liberdade, como valor prioritário, é uma das bases do Direito e é condição imprescindível para a instituição da sociedade e do Estado democrático. Assim, respeitar a dignidade da pessoa humana introduz quatro consequências, oponíveis tanto a nível de Estado quanto a nível de relações particulares: igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; a garantia da independência e autonomia do ser humano, impedindo obstáculos ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como qualquer

ato que implique a degradação e desrespeito na sua condição como pessoa; e a inadmissibilidade de negativa do acesso aos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub-humanas de vida (AWAD, 2006).

No Brasil, o princípio da dignidade humana está consubstanciado claramente na Constituição Federal de 1988 através do art. 1º, inciso III, in verbis (CURIA; CÉSPEDES; ROCHA, 2016, p. 5):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

Elaborada em um momento pós-ditatorial, a Constituição Federal de 1988 caracterizou-se pela sua amplitude no que tange ao alcance dos direitos humanos e garantias fundamentais, sendo por isso conhecida como “constituição cidadã”. Neste cenário, o Constituinte preocupou-se em instaurar um período de redemocratização, no qual o ideal humano e a sua proteção surgiram como uma resposta ao período totalitário instalado nas décadas anteriores. Dessa forma o Brasil, na mesma linha das constituições europeias que não gostariam de ver repetidos os mesmos horrores e atrocidades cometidas pelo Estado nazista alemão na Segunda Guerra Mundial, revalidou o seu texto constitucional e buscou a reinserção de uma série de valores às normas fundamentais. Assim, é possível afirmar que a colocação expressa do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil tipifica uma importante decisão do Legislador constituinte sobre o sentido, finalidade e justificação do Estado. Com isso, o Estado é que existe em função da pessoa humana, e não o contrário. A pessoa volta a ser o fim do exercício estatal de poder, e não o meio para que o Estado veja seus objetivos alcançados. Ou seja, a democracia só se alcança definitivamente a partir do momento em que o princípio de dignidade da pessoa humana passa a ser respeitado. Portanto, no Estado democrático de direito, o princípio da dignidade da pessoa humana é o fator que legitima o poder estatal, tratando de vincular diretamente os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (PAZ, 2010)

Logo no início, a Constituição de 1988 se preocupa em assegurar a dignidade do homem ou da mulher, tal como existem na sua vida real, onde a ordem

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jurídica considera irredutíveis os direitos fundamentais que a Constituição Federal elenca em seu texto. Com isso, o respeito à dignidade da pessoa humana passa a ser um critério de legitimação do próprio Estado, entrando em consonância com a razão de ser do próprio poder estatal. Trata-se de um dos princípios que ocupam maior proeminência no ordenamento jurídico brasileiro, sendo de elevada importância perante os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais, traduzido como princípio que fundamenta o próprio Estado Democrático de Direito. De efeito irradiador amplo, todo o ordenamento jurídico se vê refletido na imagem deste princípio, uma vez que se encontra entre um dos fundamentais no arcabouço legal nacional (AWAD, 2006).

Com a população heterodiscordante e transgênera, não haveria de ser diferente. Como figuras detentoras dos mesmos direitos enquanto pessoas, não há espaço para atos discriminatórios ou deturpadores da sua condição humana, como bem observa Fernando da Silva Mattos (2015, p. 4):

Viola a dignidade da pessoa humana a manutenção [...] de uma visão androcêntrica e homofóbica, que reforça e reproduz as inculcações realizadas no interior da família patriarcal, no sentido de impor a heterossexualidade como algo “normal” e a homossexualidade como algo “anormal”, na medida em que trata os sujeitos que não estejam de acordo como esse parâmetro de “normalidade” estabelecido, como indivíduos possuidores de menor dignidade. Ao diminuir a dignidade dos que não se enquadram nesse padrão de normalidade, com base em argumentos morais ou religiosos, nega-se a parte da população acesso pleno ao ideal de igualdade estabelecido na Constituição Federal. [...] Assim, deve o direito, para se harmonizar de forma plena com o princípio da dignidade da pessoa humana estabelecido no artigo inaugural da Constituição Federal como fundamento da República, considerar as diversas manifestações da condição humana como merecedoras de igual consideração, sem a imposição de qualquer obstáculo fulcrado em preconceito e discriminação. A sexualidade deve ser concebida como direito que decorre da própria condição humana, que tem como supedâneo a liberdade do indivíduo de se expressar e se relacionar sexualmente da maneira que quiser, sem ingerência por parte do Estado. O direito à igualdade não pode ser condicionado à orientação sexual do indivíduo.

A proteção da dignidade humana e a livre manifestação sexual acabam por possuir uma relação direta. A Constituição de 1988 é expressa em promover o respeito à dignidade da pessoa humana e, muito mais do que não invadir as relações privadas que não sejam consideradas ilegais, é imperativo promover a proteção e disseminar o conceito de respeito ao próximo, promovendo positivamente o exercício das liberdades individuais de cada um. Deste modo, sequer levantar a hipótese de desrespeito à determinada pessoa em face da sua manifestação homoafetiva ou

transgênera é um insulto direto à dignidade da pessoa humana e, mais além, ao próprio Estado Democrático de Direito (RIOS, 2001).

Infelizmente, os Poderes Públicos brasileiros e, em especial, o Poder Legislativo, estão muito aquém de alegar que respeitam a dignidade da pessoa humana dos LGBT. Destarte estar elencado na nossa Carta Magna vigente que o respeito à dignidade humana é princípio basiliar do nosso estado democrático, não é o que se percebe na prática, como Diogo Bacha e Silva e Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia (2015, p. 185) bem observam:

A Constituição de 1988 criou um sistema de direitos e garantias que exige que o Estado Brasileiro aja para coibir a violência homofóbica. De igual forma, há documentos sobre Direitos Humanos oriundos de organismos internacionais (como Organização das Nações Unidas – ONU e Organização dos Estados Americanos – OEA) e recepcionados pelo Brasil (e que integram nosso sistema de Direitos Fundamentais, art. 5º, §§ 2º e 3º – Constituição de 1988) que impõem ao nosso País o dever objetivo de criar mecanismos legais de políticas específicas para prevenir e punir a violência de natureza homofóbica. Dever este que o Brasil tem sistematicamente se recusado a cumprir.

Embora o Brasil intitule-se como um “Estado Democrático de Direito”, o discurso se evidencia cada vez como meramente retórico e de pouca prática, pelo menos para a população LGBT. A minorias heterodiscordantes e transgêneras vivenciam o desrespeito à sua dignidade como pessoas humanas por atributos absolutamente personalíssimos. Sendo assim, deveriam estar juridicamente e legalmente representados contra a intolerância e o preconceito, mas não é a realidade com a qual convivemos atualmente. Neste sentido, importante e fundamental é realizar a análise das estatísticas que cercam a violência contra os LGBT para embasar ainda mais as proposições do presente trabalho.

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