• Nenhum resultado encontrado

4. A REVISÃO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL E ESGOTAMENTO SANITÁRIO

4.3. A revisão ordinária dos contratos de concessão de abastecimento de água e esgotamento sanitário e o compartilhamento dos ganhos

4.3.4. O procedimento da revisão ordinária 1 Introdução

Além da definição dos critérios de análise da eficiência do concessionário e da periodicidade, o edital, o contrato e as normas de regulação devem disciplinar o procedimento que será utilizado para se proceder à revisão ordinária ou periódica do contrato de concessão dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

A necessidade desse procedimento está prevista no art. 23, inc. IV, da Lei Nacional de Saneamento Básico,116 assim como no art. 23, inc. IV, da Lei de Concessões.117 E não se trata de exigência meramente formal, apenas para tornar burocrática a produção do ato administrativo de revisão. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello

É no modus procedendi, é, em suma, na escrupulosa adscrição ao

due process of law, que residem as garantias dos indivíduos e

grupos sociais. Não fora assim, ficariam todos e cada um inermes perante o agigantamento dos poderes de que o Estado se viu investido como consectários inevitável das necessidades próprias da sociedade hodierna. Em face do Estado contemporâneo – que ampliou seus objetivos e muniu-se de poderes colossais -, a garantia dos cidadãos não mais reside sobretudo na prévia delimitação das finalidades por ele perseguíveis, mas descansa na prefixação dos

meios, condições e formas a que se tem de cingir para alcança- los.118

Para Jacintho Arruda Câmara,

a criação de procedimento prévio para a tomada de decisão quanto à revisão de tarifas cria possibilidade de que usuários, seus representantes ou, mesmo, as entidades de controle e fiscalização da Administração Pública (como Tribunais de Contas e Ministério Público) tenham acesso aos elementos informadores da decisão em com isso, possam aferir a legitimidade da medida.119

É de fundamental importância para o atingimento da finalidade da revisão ordinária que haja a devida observância aos princípios que regem esse tipo de procedimento, em especial o princípio da acessibilidade aos elementos do expediente, da lealdade e boa-fé, da motivação, da verdade material e da celeridade.

116 Art. 23. A entidade reguladora editará normas relativas às dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços, que abrangerão, pelo menos, os seguintes aspectos: [...]

IV - regime, estrutura e níveis tarifários, bem como os procedimentos e prazos de sua fixação, reajuste e revisão;

117 Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: [...]

IV - ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas; 118 Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 498.

Nesse sentido, a participação efetiva do concessionário na revisão ordinária, com a possibilidade de conhecer todos os elementos do procedimento e produzir os documentos pertinentes, é imprescindível para garantir a lisura da revisão ordinária e preservar os direitos constitucionais do concessionário.

Ademais, a atuação das partes deve ser sempre pautada pela lealdade e boa- fé, evitando-se comportamentos incompatíveis com o espírito de parceria que deve nortear a concessão. A revisão ordinária não busca penalizar o concessionário ou reduzir seu lucro contratualmente previsto, de forma que injustificável e ilegal a omissão ou adulteração de informações e prática de atos sigilosos.

E os atos administrativos praticados no bojo do procedimento de revisão ordinária devem ser devidamente motivados, ou seja, os fundamentos de fato e de direito devem ser externados contemporaneamente à prática do ato, visto que o concessionário é parte diretamente interessada e deve conhecer as razões que ensejaram a atuação administrativa, inclusive para que possa contraditá-las e fornecer os argumentos pertinentes.

Essa motivação também permite o controle da atuação administrativa por órgãos externos e internos e pela própria sociedade, haja vista que, como veremos adiante, a participação dos usuários no procedimento de revisão é obrigatória.

Outrossim, o procedimento da revisão ordinária deve buscar a verdade material, pois sua finalidade é dar concretude ao direito constitucional de manutenção das condições da proposta comercial e, dessa forma, atender ao interesse público que motiva a concessão. Precisas são as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Deveras, se a Administração tem por finalidade alcançar verdadeiramente o interesse público fixado na lei, é óbvio que só poderá fazê-lo buscando a verdade material, ao invés de satisfazer- se com a verdade formal, já que esta, por definição, prescinde do ajuste substancial com aquilo que efetivamente é, razão por que seria insuficiente para proporcionar o encontro com o interesse público substantivo.120

O procedimento de revisão ordinária não pode se transformar em mera formalidade, cujo objetivo único seja atender à disciplina legal. As condições técnicas, econômicas e financeiras do contrato devem ser objeto de análise

minuciosa, não sendo suficiente tão somente a apreciação de documentos e números.

Não obstante tudo isso, imprescindível que o procedimento não seja moroso e acabe se arrastando por muito tempo, postergando, sem justificativas, o alcance de seus objetivos. A definição de prazos para manifestação das partes e para a conclusão do procedimento é essencial para conferir a celeridade necessária.

Todos esses princípios só restarão plenamente observados se a sequência de atos a serem praticados estiver muito bem definida, com os respectivos prazos e condições.

4.3.4.2. O procedimento

Conforme dispõe o art. 38, §1º da Lei Nacional de Saneamento Básico121, é dever das entidades reguladoras estabelecer as pautas das revisões contratuais, incluindo, nesse contexto, a definição do procedimento a ser realizado. Na ausência de entidade devidamente constituída, o titular dos serviços deve se incumbir dessa missão.

O marco inicial da periodicidade da revisão ordinária é a data de assinatura do contrato, sendo que transcorrido o prazo determinado deve se dar início ao procedimento, o que pode ser feito tanto pelo concessionário quanto de ofício pela entidade reguladora. Entretanto, tendo em vista os objetivos dessa revisão, já abordados acima, parece-nos mais apropriado que o ente regulador dê o impulso oficial e notifique o concessionário a respeito.

A partir de então, o concedente realiza a análise dos documentos do concessionário e das informações referentes à prestação dos serviços, comparando os resultados com os parâmetros de qualidade e eficiência definidos no edital, no contrato e nas normas de regulação. Essa análise ensejará a confecção de um parecer que apresente as conclusões a respeito da necessidade, ou não, de uma revisão do contrato, caracterizando a situação ensejadora e os efeitos sobre o equilíbrio econômico-financeiro do ajuste.

121 Art. 38. As revisões tarifárias compreenderão a reavaliação das condições da prestação dos serviços e das tarifas praticadas e poderão ser: [...]

§ 1º As revisões tarifárias terão suas pautas definidas pelas respectivas entidades reguladoras, ouvidos os titulares, os usuários e os prestadores dos serviços.

Imprescindível que a conclusão externada seja acompanhada dos motivos de fato e de direito que lhe dão suporte. Importante, também, fixar um prazo máximo para a realização dessa primeira etapa.

A existência de uma entidade reguladora tecnicamente capacitada e com conhecimento do setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário é fundamental para a obtenção de resultados satisfatórios, pois são os estudos produzidos nesse momento que caracterizarão a situação ensejadora da revisão.

Muito se vê, em municípios de menor porte, por exemplo, a contratação, pela própria entidade reguladora, de instituições privadas para o desenvolvimento desses estudos técnicos e econômicos, haja vista a complexidade da matéria. Essas instituições possuem um corpo técnico qualificado e especializado, reunindo, em tese, melhores condições para elaborar os estudos.

Esse tipo de contratação é comum e, apesar de legal, questionável, pois esvazia o sentido da atividade reguladora. Instituir uma entidade reguladora que não possui capacidade técnica para realizar, a contento, o procedimento de revisão ordinária é medida que atende apenas formalmente a exigência legal. Encontrar profissionais gabaritados e com experiência no setor de saneamento é, principalmente em municípios pequenos, tarefa árdua, mas esse fato não pode ser utilizado como justificativa para a ausência de uma regulação efetiva e adequada.

O legislador ordinário, ciente dessa dificuldade, previu a possibilidade de se delegar a atividade reguladora para entidades regionais ou estaduais, cuja possibilidade de reunir pessoal técnico qualificado é maior, sendo mais adequado se adotar essa medida do que instituir uma entidade local inábil.

Não obstante, terceirizar a elaboração dos estudos técnicos e econômicos depende da disponibilidade de recursos e de licitação para a escolha da instituição, o que pode inviabilizar ou retardar o término do procedimento, em prejuízo à eficiência e celeridade necessárias.

Além da capacidade técnica, outro argumento utilizado em favor da terceirização desses estudos é a imparcialidade da instituição, que, por ser ente externo ao contrato e sem qualquer interesse no resultado, teria maior isenção ao analisar as informações e documentos da concessão e suas conclusões teriam melhor receptividade, gozando, assim, de maior prestígio.

Esse argumento parte do pressuposto de que o concedente usará de má-fé em sua análise e sempre visará a produção de um documento que caracterize a necessidade de revisão ordinária do contrato, beneficiando-se do resultado.

Com o devido respeito, a boa-fé é um pressuposto para a adequação do procedimento de revisão ordinária e deve pautar tanto a atuação do concedente quanto do concessionário. Não se pode admitir que qualquer das partes vá se valer de subterfúgios para obter vantagens indevidas. Se assim fosse, também os estudos apresentados pelo concessionário estariam viciados em sua origem, tornando totalmente inútil a revisão ordinária, pois não se chegaria a nenhuma conclusão imparcial.

A publicidade de todos os atos e a possibilidade de manifestação do concessionário a respeito dos estudos assegura que o procedimento produzirá uma decisão imparcial e condizente com o interesse público que move a contratação. Ademais, todos os atos administrativos são passíveis de controle por órgãos internos e externos, o que também garante a observância dos princípios e regras que orientam a revisão ordinária.

Assim, em que pese possível a contratação de terceiros, recomendável que os estudos técnicos e econômicos sejam realizados internamente, seja pelo próprio concedente, seja pela entidade reguladora, pois essa é uma atividade que justifica a existência da regulação, evita gastos públicos desnecessários e agiliza o procedimento.

Uma vez produzidos esses laudos e estudos técnicos, o concessionário deve ser intimado para se manifestar quanto a eles, devendo ser facultada a apresentação dos estudos que entender pertinentes, tanto de natureza técnica quanto jurídica. O prazo para apresentação dessa manifestação também deve estar definido no contrato.

Sempre em busca da verdade material, a realização de reuniões e a apresentação de documentos ou manifestações complementares podem ocorrer a qualquer momento no transcurso do procedimento, contribuindo para que as dúvidas ou contradições sejam esclarecidas e dirimidas ainda durante a fase de instrução.

Após a manifestação do concessionário e antes da decisão final da entidade, todo o procedimento deve ser submetido à apreciação dos usuários, que, nos termos do art. 38, §1º da Lei Nacional de Saneamento Básico, devem ser obrigatoriamente ouvidos.

Para viabilizar essa participação, a entidade reguladora, em cumprimento ao disposto nos arts. 8º e 9º da Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2011122 – denominada “Lei de Acesso a Informações” – deve disponibilizar todos os documentos, inclusive os estudos técnicos e econômicos, em local de fácil acesso, bem como divulgá-los em sítio oficial da rede mundial de computadores. Além disso, a realização de audiência ou consulta pública também é obrigatória, incentivando-se, assim, a manifestação popular.

Disponibilizado o procedimento, os documentos devem ficar em consulta pública por prazo razoável, permitindo o oferecimento de sugestões ou questionamentos. Em que pese não obrigatória, a realização de audiência pública, seja antes, durante ou depois do período da consulta, é recomendável, aproveitando-se a oportunidade para apresentar e explicar à população os pressuposto e parâmetros da revisão ordinária.

Após a realização da consulta, a entidade reguladora deve responder a todos os questionamentos e analisar as sugestões apresentadas, com vistas a verificar a possibilidade de implementá-las. Nada impede, ademais, que, em decorrência de manifestação dos usuários, algum parâmetro da revisão ordinária seja alterado.

O titular dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário também deve ser ouvido a respeito da revisão ordinária, sendo mais adequado que ele se manifeste antes da decisão final da entidade reguladora, a fim de que suas ponderações sejam consideradas. Conforme a disciplina legal, a competência para proceder e ultimar a revisão ordinária é da própria entidade reguladora, não estando sua decisão submetida ou condicionada à aprovação do titular dos serviços.

Antes de proferir a decisão é recomendável que seja conferida vista de todo o procedimento ao concessionário para que ele se manifeste, de forma derradeira, a respeito dos elementos constantes nos autos, evitando prejuízo ao contraditório e ampla defesa.

122 Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. [...]

§ 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).

Art. 9º O acesso a informações públicas será assegurado mediante: [...]

II - realização de audiências ou consultas públicas, incentivo à participação popular ou a outras formas de divulgação.

Ao fim, sopesando todos os argumentos e informações apresentados pelo concessionário, bem como os comentários e sugestões dos usuários e do titular dos serviços, a entidade reguladora deve proferir decisão motivada a respeito da revisão ordinária do contrato, apontando os fundamentos de fato e de direito que a justifica e a forma como ela se dará, se pela alteração do valor da tarifa ou por outro meio previsto em contrato, notificando o concessionário a respeito.

A estrutura administrativa da entidade reguladora pode prever a possibilidade de o concessionário interpor recurso à instância superior, no caso de discordância quanto ao desfecho da revisão. Essa possibilidade, contudo, deve ser vista com ressalvas, pois não se está diante de um procedimento contencioso, no qual o equilíbrio econômico-financeiro é objeto de litígio.

Encerrado o procedimento e, sendo necessária a revisão do contrato, deve ser celebrado um termo aditivo específico, retratando as alterações contratuais pertinentes.

Caso haja modificação da tarifa, deve ser conferida publicidade aos novos valores praticados, veiculando-os na imprensa oficial com, no mínimo, 30 dias de antecedência à sua aplicação, a teor do disposto no art. 39 da Lei Nacional de Saneamento Básico.123

O concessionário pode dar publicidade aos novos valores, emitindo comunicado a todos os usuários ou inserindo a informação na conta de consumo mensal. Essa providência, no entanto, não exime o titular dos serviços ou a própria entidade reguladora de veicular os novos valores na imprensa oficial, visto que o serviço é de titularidade estatal e a revisão ordinária não visa preservar o valor real da tarifa, mas estabelecer nova tarifa, com parâmetros distintos.

Diferentemente do reajuste, portanto, não se pode admitir a aplicação automática dos valores revisados das tarifas sem que o titular edite um decreto ou a própria entidade reguladora publique ato específico autorizando essa medida. Assim, necessário estabelecer um prazo para a prática desse ato, condicionando a atuação administrativa.

Apenas a título de exemplo, os contratos de concessão dos serviços de telefonia fixa estabelecem que o procedimento de revisão ordinária deve ser concluído no prazo máximo de 120 dias, sendo que disposição similar deve ser

123 Art. 39. As tarifas serão fixadas de forma clara e objetiva, devendo os reajustes e as revisões serem tornados públicos com antecedência mínima de 30 (trinta) dias com relação à sua aplicação.

inserida nos contratos de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

A definição de um prazo para o término da revisão ordinária confere segurança e previsibilidade ao procedimento e, ao mesmo tempo, permite ao concessionário exigir a prática dos atos administrativos pertinentes, evitando omissões e possibilitando a responsabilização dos agentes.

Finalizado o procedimento e procedida à revisão do contrato, nada mais pode ser requerido pelas partes com relação aos fatos que a ensejaram, considerando-se, para todo e qualquer fim, restabelecido o equilíbrio econômico-financeiro, sendo que nova análise ocorrerá após o transcurso do prazo definido.

Entretanto, esse reequilíbrio não impede a instauração de um procedimento de revisão extraordinária antes da realização de nova revisão ordinária, desde que o concessionário demonstre a existência de outros fatores que desestabilizaram o ajuste.

5. A REVISÃO EXTRAORDINÁRIA DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE