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O reajuste de tarifas como instrumento de reequilíbrio dos contratos de concessão dos serviços públicos de água e esgoto

3. O REAJUSTE DAS TARIFAS DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL E

3.1. O reajuste de tarifas como instrumento de reequilíbrio dos contratos de concessão dos serviços públicos de água e esgoto

O reajuste de tarifas é o instrumento ordinário, previsto na legislação, para se manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de serviços públicos. Diz-se ordinário porque sua aplicação independe de qualquer evento futuro, imprevisto ou imprevisível que abale a equação econômica do contrato, sendo cláusula essencial de todo o contrato de concessão.

O reajuste pode ser entendido como o mecanismo de atualização periódica e automática do valor das tarifas com vistas a acompanhar a variação dos custos decorrente do fenômeno inflacionário, de forma a se preservar o valor real da tarifa.

Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, “o reajuste configura hipótese

em que a tarifa substancialmente não muda; altera-se, apenas, o preço que a exprime”.42

A atualização do valor da tarifa realizada pelo reajuste tem o escopo, portanto, de manter equilibrada a relação de equivalência existente entre as prestações recíprocas, a qual foi estabelecida no momento da celebração do contrato de concessão. Assim, a uma variação dos custos deve corresponder uma alteração, na mesma proporção, do valor da tarifa.

O concessionário e o concedente estabelecem, pela cláusula de reajuste, um mecanismo prévio de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, partindo-se da constatação empírica de existência de flutuações econômicas que impactam a equação contratual43, ainda mais em concessões, cujos prazos, em regra, são longos.

42 Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo, Malheiros, 2012. p. 752.

43 Segundo Antônio Carlos Cintra do Amaral, “a cláusula de reajuste diz respeito à equação econômica do contrato, e não à sua equação financeira”. Concessão de Serviço Público. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 92. Segundo Roy Martelanc, o equilíbrio econômico garante a rentabilidade do concessionário, em equivalência aos patamares praticados no mercado, mais seus méritos, menos seus deméritos, não sendo, entretanto, suficiente para se assegurar a viabilidade financeira da concessão. O equilíbrio financeiro, por sua vez, corresponde ao suficiente fluxo de recursos financeiros, sem os quais a concessionária não consegue prover, adequadamente, o serviço que lhe foi outorgado. MARTELANC, Roy. Equilíbrio econômico x

Arnoldo Wald, no início da década de 1970, em análise dos aspectos financeiros e econômicos dos contratos administrativos em geral, bem retratou a presunção de ocorrência de desequilíbrio e a necessidade de se prever, em contrato, mecanismo para reestabelecer automaticamente a equivalência econômica:

Numa época de inflação contínua, o aumento de custo de vida deixa de ser imprevisível, pois até o homem da rua já sabe que a vida vai aumentar e assistimos a uma correção monetária institucionalizada, que afasta a obtenção de reajuste com base na teoria da imprevisão do contrato de empreitada, por não constituir mais a inflação fato imprevisível, deixando a mesma de ser uma situação anormal, grave, excepcional, para se tornar mera rotina.44

A legislação referente às concessões dá especial atenção ao reajuste das tarifas, sendo certo que o artigo 1845 da Lei Federal nº 8.987/95 estabelece a necessidade de se prever, já no instrumento convocatório, os critérios a serem utilizados para o reajuste. Em sentido convergente, o artigo 2346 da mesma lei dispõe que é cláusula essencial dos contratos de concessão a que disciplina os critérios e procedimentos para o reajuste das tarifas.

Segundo Hely Lopes Meirelles,

os critérios de reajustamento deveriam possibilitar a exata correspondência do pagamento, num dado momento de execução do ajuste, aos preços oferecidos inicialmente, levando-se em consideração os aumentos intercorrentes de materiais, equipamentos e mão-de-obra, de modo a preservar a margem de ganho pretendida pelo contratante e implicitamente aceita pela administração, ao concordar com sua proposta.47

equilíbrio financeiro em concessões: um caso de transporte urbano de passageiros. X Congreso Internacional

del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública. Santiago, Chile, 18 - 21 Oct. 2005, p.

1-12. Disponível em

<http://www.iij.derecho.ucr.ac.cr/archivos/documentacion/inv%20otras%20entidades/CLAD/CLAD%20X/doc umentos/martelan.pdf>. Acesso em 22 fev. 2010.

Embora o conceito de equilíbrio econômico-financeiro seja indeterminado, dependendo, para sua configuração, das disposições contratuais, do regime da outorga da concessão (exclusividade, concorrência) e do próprio serviço concedido, bem como de métodos e equações econômicas para se obter o seu resultado, há algumas variáveis que deverão ser consideradas na sua composição.

44 Os aspectos financeiros e econômicos da contratação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 109, p. 311-328, jul./set.1972. p. 323.

45 Art. 18. O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no que couber, os critérios e as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá, especialmente: [...]

VIII - os critérios de reajuste e revisão da tarifa;

46 Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: [...]

V - ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas;

47 Reajustamento e recomposição de preços em contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 139, jan./mar. 1980, p. 11-21.

O reajuste insere-se na fase de planejamento da concessão, pois a Administração licitante tem o dever de, previamente à instauração do certame, definir, de acordo com as características dos serviços e com a realidade local, os critérios que entende adequados para reajustar o valor das tarifas, fixando-os já no edital e na minuta do contrato.

Compartilhando do entendimento de Jacintho Arruda Câmara,48 a fixação dos critérios de reajuste das tarifas no edital e no contrato de concessão não é mera faculdade da Administração, mas um dever, visto que se trata de questão atinente à política tarifária e que visa dar efetividade ao direito, assegurado constitucionalmente, de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, razão pela qual é requisito essencial para a validade do contrato.

E por ser cláusula obrigatória, o contrato de concessão que não estabelecer os critérios de reajuste padece de vício de ilegalidade, assim como é ilegal qualquer alteração posterior no contrato que retire referida cláusula. Nos dizeres de Benedicto Porto Neto, “sem cláusula de reajuste não há contrato válido”.49

A fixação, no edital e no contrato, dos critérios de reajuste traz segurança à contratação, além de facilitar o ingresso de um maior número de proponentes, pois o interessado em participar da licitação já saberá, de antemão, as condições em que sua tarifa será reajustada caso se sagre vencedor, o que torna o projeto mais atrativo.

Em contratos que tenham por objeto a concessão de serviços públicos, a garantia de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro por meio do reajuste é essencial para se manter a estabilidade da relação jurídica travada entre o particular e o Poder Público,50 visto que, em regra, os investimentos são de grande monta e são efetivados, em sua maioria, nos primeiros anos do contrato, razão pela qual a certeza de que a tarifa pelo qual o concessionário será remunerado será corrigida por meio dos reajustes permite que se divise, de forma clara, o período e o valor da

48 Tarifas nas concessões. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 177-178.

49 Concessão de serviço público no regime da Lei n. 8.987/95: conceitos e princípios. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 114.

50 “É de todo adequado que o regime estatutário preveja e o contrato dê concreção a mecanismos de reajuste e de revisão a serem periodicamente implementados pelo poder concedente (ou agência reguladora). Projetos duradouros como os das concessões exigem essa cautela a fim de que, com o passar do tempo, as tarifas não se descolem da realidade.” (Egon Bockmann Moreira. Direito das concessões de serviços públicos: inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral). São Paulo: Malheiros, 2010. p. 354).

tarifa necessários para a integral amortização dos investimentos e para fazer frente aos custos de operação e manutenção dos serviços.

Com efeito, a obrigatoriedade de fixação dos critérios e procedimentos para reajuste de tarifas no edital e no contrato também se opera no caso de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, pois a Lei Federal nº 8.987/95 possui natureza de norma geral e se aplica indistintamente às concessões, independentemente do serviço envolvido.

Não obstante, a Lei Federal nº 11.445 reforçou a necessidade de se preservar, por meio da cláusula de reajuste, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Assim, não somente a licitação e os contratos de concessão regidos por essa Lei devem estabelecer os critérios e o procedimento para se aplicar os reajustes de tarifa como toda essa disciplina deve estar prevista, também, em normas de regulação51. Isso é o que determina o art. 11 da Lei Nacional de Saneamento Básico e o art. 39 do Decreto Federal nº 7.217/2010:

Art. 11. São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico: [...] III - a existência de normas de regulação que prevejam os meios para o cumprimento das diretrizes desta Lei, incluindo a designação da entidade de regulação e de fiscalização; [...]

§ 2o Nos casos de serviços prestados mediante contratos de

concessão ou de programa, as normas previstas no inciso III do caput deste artigo deverão prever: [...]

IV - as condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico- financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência, incluindo:

a) o sistema de cobrança e a composição de taxas e tarifas; b) a sistemática de reajustes e de revisões de taxas e tarifas; c) a política de subsídios;

Art. 39. São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico: [...]

51 Sobre o termo “regulação”, Maria Silvia Zanella Di Pietro destaca que: “No Brasil, o vocábulo, no âmbito jurídico, é de uso bem mais recente, surgindo, no âmbito constitucional, com a Constituição de 1988, com a menção ao Estado Regulador (art. 174), para definir o papel do Estado no domínio econômico, em substituição ao Estado Providência. Seu uso intensificou-se com a criação das agências reguladoras.” Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 188. Nesse sentido, regulação é termo que disciplina uma forma de intervenção do Estado no domínio econômico. Entretanto, em virtude da introdução no país das denominadas “agências reguladoras” e da disposição contida no art. 21, inciso XI, da Constituição Federal, inserida pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/1995, passou-se a utilizar o termo “regulação” para identificar a atividade de fiscalização da prestação dos serviços públicos. Utilizaremos nesse trabalho o termo “regulação”, contido na Lei Nacional de Saneamento Básico, como sinônimo de “fiscalização”.

II - existência de normas de regulação que prevejam os meios para o cumprimento das diretrizes da Lei no 11.445, de 2007, incluindo a designação da entidade de regulação e de fiscalização; [...]

V - condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência, incluindo: [...] b) sistemática de reajustes e de revisões de taxas, tarifas e outros preços públicos;

A Lei Nacional de Saneamento Básico confere especial relevância ao dever de planejamento da Administração Pública, o que inclui a necessidade de se editar normas que estabeleçam as condições de sustentabilidade econômico-financeira da prestação. É essa norma que deverá fixar a sistemática de reajustes que estará retratada no edital e no contrato.

A Lei, no art. 11, inc. III, se refere a “normas de regulação que prevejam os meios para cumprimento das diretrizes desta Lei”, ou seja, não se exige a edição, previamente à licitação para delegação da prestação, de uma lei em sentido estrito, podendo referidas normas virem dispostas em regulamento, expedido pelo chefe do Poder Executivo.52

O objetivo dessas “normas de regulação” é disciplinar, de forma geral, a política tarifária e as condições de sustentabilidade econômico-financeira do contrato de concessão, a fim de orientar a elaboração do edital e estabelecer os parâmetros mínimos necessários ao oferecimento de propostas comerciais pelos interessados.

Assim, na concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, a sistemática para reajuste deve estar prevista em norma específica, no edital e no contrato, pena de ilegalidade da delegação.

Por sistemática de reajustes deve se entender o conjunto de critérios e procedimentos necessários e imprescindíveis para se atualizar o valor da tarifa e manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, observando-se, sempre, os princípios regedores dos serviços públicos.

Na fase de planejamento da licitação para delegação dos serviços, portanto, deve ser estabelecida a data de referência para aplicação do reajuste, o índice ou a

52O fato de essas “normas de regulação” serem veiculadas por regulamento não exime o titular dos serviços do dever de, optando pela criação de entidade reguladora local, editar leis em sentido estrito para tanto, uma vez que a entidade reguladora possui natureza autárquica, sendo inaplicável, em nosso entender, o disposto no art. 31 do Decreto Federal nº 7.217/2010, que admite o exercício da atividade de regulação por órgão ou entidade da administração direta, visto que a autonomia administrativa, orçamentária e financeira é incompatível com o regime jurídico aplicável aos órgãos ou entidades da administração direta. No mesmo sentido, a existência de subsídios pode exigir a edição de lei em sentido estrito.

fórmula paramétrica a ser utilizada, a forma e prazo para apresentação dos cálculos pelo concessionário e para a homologação do reajuste.

Enfim, não basta fixar apenas o índice a ser aplicado e a periodicidade dos reajustes, como, em regra, é o que ocorre nas concessões dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A sistemática determinada pela legislação inclui diversos outros fatores, em especial o procedimento a ser adotado, com prazos e formalidades adequadamente definidos.

É comum nos depararmos com casos em que, não obstante a previsão no edital e no contrato da cláusula de reajuste, por falta de disciplina específica do procedimento a ser adotado o reajuste é concedido com atraso ou, por vezes, sequer é concedido, acarretando impactos gravosos no equilíbrio econômico- financeiro do contrato e compelindo o concessionário a propor ação judicial para fazer valer seu direito, desestabilizando a relação e prejudicando a adequada prestação dos serviços aos usuários.

Nesses casos em que há expressa previsão de reajuste do contrato, mas o procedimento para sua aplicação não está devidamente delineado, é dever da entidade reguladora, nos termos da Lei Nacional de Saneamento Básico53, expedir norma específica para regulamentá-lo, sanando a omissão54 e dando efetividade ao direito do concessionário. Na ausência de entidade reguladora55, o poder concedente deve se incumbir dessa providência.