• Nenhum resultado encontrado

O "Caso do molecote"

8 O Processo Eleitoral

Escrevendo sobre a República Velha, não podem os deixar de abordar um dos tem as m ais im portantes desse período, que foi o processo eleitoral. A Proclam ação da República em 1889 significou o fim da centralização adm inistrativa m onárquica e o início de um a política descentralizada em cada Estado. Nessa m udança, ficou reservado ao Governo Federal o direito substantivo e aos governos estaduais, o direito adjetivo.

O sistema eleitoral republicano ficou estruturado em dois seg­ mentos: por um lado, cabia ao Congresso Nacional legislar sobre as eleições para cargos federais e ao Poder Legislativo estadual a atri­ buição de fazer leis para a escolha dos representantes do povo nas esferas estadual e municipal. Na hora do reconhecimento, era quando se dava a “degola” dos parlam entares.

Três leis nortearam fundam entalm ente, m as não exclusiva­ mente, o processo eleitoral da República Velha: a Lei n° 25, de 26 de janeiro de 1892; a Lei n° 1.269, de 15 de novembro de 1904, conhecida como a Lei Rosa e Silva; e por fim, a Lei n° 3.208, de 27 de dezem bro de

1916.

sujeitos a votos de obediência. Q uanto ao voto feminino, a referida Constituição foi omissa.

Com exceção desses, cada cidadão maior de 21 anos era consi­ derado eleitor. Vale salientar que o voto não era obrigatório.

Havia dois tipos de alistam ento e, consequentem ente, dois tipos de títulos: um federal e outro estadual. A Lei Rosa e Silva, de 15 de novembro de 1904, acabou com essa duplicidade de alistam ento. Tudo ficou reduzido ao federal.

Cada listado era dividido em distritos eleitorais, cujo núm ero variava de acordo com a dim ensão do eleitorado estadual. Como observou Telarolli, "nos estados, conjuntos de municípios formavam os distritos que elegeriam os representantes a que tinham direito, sem que houvesse, porém, a exigência de residência ou qualquer outro tipo de vinculação do candidato ao distrito pelo qual era indi­ cado pela cúpula partidária”.1"1 Cada estado tinha o direito de ter, no m ínim o, quatro representantes na Câm ara Federal. D urante toda a República Velha, o Rio Crande do Norte sem pre teve quatro depu­ tados federais.

A legislação eleitoral adotou o voto secreto e o voto a descoberto até 19H). 1 )epois, o voto a descoberto só era ad mit ido quando a eleição se realizasse em cartório.1"- lódavia, sabem os que, na prática, o voto secreto não existia.

Fm cada m unicípio, o processo eleitoral era com andado pelo Presidente da intendência. I ndo passava pelo seu crivo, desde a for­ m ação da com issão de alistam ento até a apuração tios votos.

A legislação determ inava que as seções asquais não deveriam ter menos de cem eleitores nem mais de 250 fossem localizadas em Prédios públicos. Mas, na prática, eram colocadas em residências dos

lí!1 I I I . AItt )| | I, Rodolpho. ileiçóesefmurieseleitorais na República Velha. Sao Faulo: Brasiliense, 1982, p.28.

Ií!- II II.AItt >1 I I, Rodolpho. ilfiçõcsrfmiiítcs eleitorais nu República\'vllui. Sao Faulo: Brasiliense, 1982, p. 41.

256

chefes políticos locais ou dos seus correligionários. Quando as forças oposicionistas se igualavam com as situacionistas, chegava-se a um acordo. Vale salientar que as cédulas eram individuais para qualquer cargo.

Term inada a votação, a urna era aherta para se iniciar a apu­ ração local. Trinta dias depois da realização do pleito, com eçava a apuração geral, que deveria ser feita em três dias. Na eleição para escolher os intendentes, a apuração era feita no próprio município. Na eleição de deputado, a apuração geral era feita na Intendência M unicipal da Capital, e na eleição de governador e vice, a apuração era feita pelo Congresso Legislativo. Os deputados federais e sena­ dores tinham as suas eleições reconhecidas ou não pelo Congresso Nacional. Como exemplo, hasta citar o caso do deputado federal Augusto Severo de Albuquerque M aran hão, eleito em 1892, que teve a sua eleição anulada pela Câm ara Federal. Em fevereiro de 1893, can­ didatou-se novamente, foi eleito e diplomado pela Câm ara Federal.

É público e notório que o processo eleitoral da República Velha era profundam ente fraudulento. Atas falsas ou fictícias, alistam ento de eleitores defuntos ou ausentes, elim inação de oposicionistas na hora do alistam ento, tudo isso e m ais outras coisas eram feitas sob o com ando intransigente e sisudo do Presidente da Intendência M unicipal, que, por sua vez, estava obedecendo às ordens recebidas dos chefões da política do Estado. Todo esse quadro de desvios e irre­ gularidades se resum ia na expressão "eleição a bico de pena".

No Rio Grande do Norte, o processo eleitoral não foi diferente do resto do Brasil. Analisando o processo eleitoral desse período no Rio Grande do Norte, Senio d’Avelar, talvez o pseudônim o de um polí­ tico de oposição, fez a seguinte observação:

Tal é a corrupção dos costumes dos próceres tia República, que já deu em resultado o afrouxamento das instituições. As eleições são mentirosas, a magistratura se vende, o funcio­ nário desfalca, o povo abdica os direitos mais importantes, tudo se relaxa entre nós. A República não pertence ao povo; é uma presa dos oligarcas, não há partidos políticos; há

corrilhos que, para enriquecerem, se assenhorearam do mando supremo.110

As reclam ações da im prensa oposicionista contra o processo eleitoral são constantes, desde os primórdios do regime republicano. No dia 15 de novembro de 1895, realizaram -se eleições m unicipais em todo o listado. No dia 19, a im prensa publicou a seguinte nota sobre a eleição de Macaíba:

O dia de ontem passou aqui. como uma data negra, de um governo de fraudes e t rapaças. Assi m é que ontem as sessões eleitorais estiveram fechadas e as atas lavradas com antece­ dência, votando no bico da pena, vivos, mortos e mudados, o que quer dizer eleição a ‘pulso' sobre a bitola do corrupto governo do Sr. Pedro.""

Fato idêntico a esse se repetia em todas as eleições.

Hm janeiro de 1899, a oposição denunciava a prepotência do governador Ferreira Chaves que m andara “desalistar mais de quatro­ centos eleitores considerados suspeitos contra o governo do listado, sendo elim inados do alistam ento cidadãos de todas as classes”."0

Mas, o desrespeito ã legislação eleitoral atingiu o seu auge em 1905 quando, em decorrência tia bei Rosa e Silva, toi realizado um novo alistam ento eleitoral para unificar os títulos. Antes, como já dis­ semos, havia um título paia a eleição federal e outro para a eleição

estadual. Naquele ano, em quase todos os municípios do Rio (írande

do Norte, grande parte dos eleitores da oposição nao pode alistar-se. O caso de Rapa ri (hoje, Nísia Floresta) é o protótipo do m ando- nismo local em matéria de alistam ento. I.á, o coronel José de Araújo Carvalho, presidente da Intendência Municipal por quase quarenta mios, foi o cam peao de arbitrariedades elalcatruas eleitorais ao longo da República Velha. O episódio que vamos narrar, ocorrido em 1905, mostra muito hem o am biente político dom inante naquela época.

hfi Diário do Natal, 25 de abri Ide 1907,p. 1.

I}11 Rio Grande do Norte, 19 de novembro de 1895,p.4. Ú15 Diário do Natal, I de janeiro de 1899, p. 1.

258

Ao tom ar conhecim ento das irregularidades praticadas no alis­ tam ento eleitoral de Papari, o Dr. Augusto Leopoldo, líder da oposição no Estado e m em bro do diretório central do partido oposicionista, deslocou-se para aquela vila em 17 de abril de 1905. Chegando lá, foi logo para a casa do tabelião Bivar para que o mesmo reconhecesse as firm as do coronel Luiz Roque, capitão José de Goese capitão Antônio Gomes. O escrivão m andou alguém da família dizer-lhes que estava viajando. O Dr. Augusto Leopoldo resolveu, então, ir sozinho à casa do chefe governista, coronel Zé de Araújo. Após um a conversa am is­ tosa, disse-lhe que viera a Papari no intuito de conseguir alistar os seus amigos, para quem o tabelião estava dificultando tudo. Sem ter­ giversar, o coronel Zé de Araújo, que guardava um a fidelidade canina à oligarquia M aranhão, respondeu-lhe com toda clareza: "Dr., pode fazer as reclam ações e pedir as providências que quiser, na certeza de que o resultado será o mesm o e de responsabilidade não fazemos caso, os cabras de Luiz Roque não se alistarão, porque eu não quero”.

Enquanto isso, o tabelião deixara de reconhecer a firm a de 36 cidadãos oposicionistas, quase todos m orando longe da sede do m unicípio, sob a alegação de estar doente. O coronel Zé de Araújo sabia que a oposição, pelo núm ero de eleitores que possuía, poderia ganhar as eleições no município. Diante disso, ele solicitou cavilo­ sam ente ao governador Tavares de Lyra reforço policial em nome da com issão de alistam ento, alegando estar am eaçado pelos cahras do coronel Luiz Roque. Em resposta ao seu pedido, o governador enviou no dia seguinte um oficial e alguns soldados do Batalhão de Segurança para a vila de Papari. A população, sem entender o que estava acontecendo, ficou apavorada. Enquanto isso, o Dr. Augusto Leopoldo retornou a Natal, trazendo 36 petições de alistam ento devi­ dam ente docum entadas e apresentou-as ao governador Lavares de Lyra. Este, vendo a retidão do que lhe era solicitado pelo chefe opo­ sicionista, tirou um a cópia dos peticionários e m andou-a para o coronel Zé de Araújo. Este, em vez de obedecer às ordens do gover­ nador e m andar reconhecer a firma dos peticionários, criou todo tipo de em baraço e am eaçou com a polícia todos os eleitores da oposição. Sem atentar para o agravam ento da situação, o governador resolveu

m andar retornar a Natal o oficial que m andou para a vila de Papai i, mas deixou lá seis soldados às ordens de Zé de Araújo.

Todavia, o caso não term inou aí. No dia 15 de maio, o I)r. Augusto Leopoldo voltou a Papari com o objetivo de fazer nova ten­ tativa para alistar os seus am igos. Ideou hospedado no engenho do coronel Luiz Roque. No dia seguinte, o jovem 1 lenrique Torres, oposicionista, foi a Papari fazer o seu alistam ento. O coronel Zé de Araújo repetiu as m esm as bravatas. Ameaçou surrá-lo e m andou dizer que o coronel Luiz Roque e o Pr. Leopoldo "fossem tam bém à Intendência que queria dar conta deles, que para isso tinha soldados à sua disposição". O jovem veio contar tudo ao coronel Luiz Roque. Nesse ínterim , o destacam ento policial de São José de Mipibu veio reforçar o de Papari. Os soldados diziam abertam ente que estavam ali no quartel da vila para atirar no Pr. Leopoldo e no coronel Luiz Roque. A vila estava em pé de guerra eo povo apavorado. Atendendo aos pedidos dos amigos, o Pr. Augusto Leopoldo não veio a Papari. Resolveu retornar a Natal para relatar tudo ao governador Tavares de Lyra. Diante do exposto, o governador resolveu m andar o tenente Moura para Papari com "instruções para m anter a ordem e não con­ sentir desacato e agressão, mas que com relação ao procedim ento dos funcionários, autoridades e comissão de alistamento, nada podia providenciar, porque a lei tinha excluído a interferência do governo do listado no processo de alistam ento eleitoral '.

No dia seguinte, 17 de maio, o tenente Moura e o 1 )r. Leopoldo v*ajaram no m esmo trem para Papari. No outro dia, o Pr. Leopoldo voioà vila m anter entendim entos com o tenente Moura sobre o alista­ mento dos seus amigos, liste, convidado para ir à Intendência, esqui- V()u-se. Naquele dia, a comissão não se reuniu.

No dia 19, o Pr. Leopoldo foi sozinho à Intendência e apresentou 110 presidente da Mesa um requerim ento com base na Lei 1.239 (Lei R°sa e Silva). O chefe Zé de Araújo, que não era nada da com issão de alistam ento, arrebatou o requerim ento das mãos do presidente da Mesa e bradou igual a um leão: "O Pr. Augusto Leopoldo está se adiantando muito, o Sr. nada tem que ver com o alistam ento eleitoral Rapari, é um intruso; esta petição está indeferida, não lhe m ando

2(50

respondeu que, na qualidade de cidadão brasileiro, podia fazer aquele requerim ento. Incontinênti, o coronel Zé de Araújo retrucou: "O Sr. pode ser brasileiro em qualquer parte, aqui em Papari não é cidadão, eu sou o chefe político e fiscal do governo, aqui quem decide tudo sou eu, só se faz o que eu m ando e quero. Já ouviu?"18'1

Ciente da cum plicidade do governador Tavares de Lyra e da polícia militar, o Dr. Augusto Leopoldo viu que era impossível fazer cum prira lei eleitoral. Retornou a Natal derrotado na sua missão, mas convicto de um a coisa: o Zé de Araújo era a personificação do mando- nism o local no Rio Grande do Norte.

É im portante ressaltar que esse episódio de Papari repetiu-se, em m enor proporção, noutros municípios do Estado durante o alista­ mento eleitoral de 1905. Assim, em Natal, o jornalista Elias Souto, pro­ prietário do jornal oposicionista Diário do Natcd, m aior de 57 anos, coronel reform ado da G uarda Nacional, antigo professor público do Estado e eleitor desde o tem po do Im pério, teve a sua inscrição negada. Nesta cidade, as irregularidades foram tão grandes que o Supremo Tribunal Federal anulou o alistam ento por unanim idade.

Os alistam entos de Areia Branca e de outros municípios, contra os quais a oposição interpôs recursos, foram igualm ente anulados pelo Supremo Tribunal Federal.

Im pedir o alistam ento dos eleitores da oposição, lavrar atas de eleições inexistentes, fazer votar defuntos ou pessoas ausentes, assim como outros procedim entos ilegais, tudo isso foi sintetizado na expressão "eleição a bico de pena”, um a constante durante o longo dom ínio da oligarquia M aranhão (1890-1918). Depois dela, o procedi­ mento político não mudou. Verdade é que o Des. Ferreira Chaves fez o seu sucessor na eleição de 5 de outubro de 1919 usando as mesm as artim anhas em pregadas anteriorm ente. Assim, o seu candidato, o Dr. Antônio José de Melo e Souza, derrotou o seu adversário com 78% dos votos. Em 12 municípios, ou seja, um terço, a oposição não obteve nenhum voto. 186

Os processos eleitorais fraudulentos perm aneceram os mesmos até o final cia República Velha. Para com provar essa assertiva, nada m elhor do que o testem unho de Café Filho, que viveu, em Natal, a últim a década desse período. Referindo-se àquela época, ele disse: “Era o tempo do eleitorado controlado. Em Natal ainda havia algum a cerim ônia, no que se refere, porém, exclusivamente, à presença do eleitor.". No pleito de 1923, um dos m eus eleitores m ais certos foi seduzido, à m inha vista, a votar nos candidatos do oficialismo, a que aquiesceu m ediante o prêmio em dinheiro de cinquenta mil réis. No interior, na maioria dos casos, não havia escolha. Os funcionários do governo entregavam ao eleitor as cédulas dos candidatos que inte­ ressava ao governo eleger. Como regra geral com putavam -se votos a "bico de pena", arbitrariam ente, nas atas eleitorais, para efeito de apuração, sem ter havido votação. "Certa vez, em Apodi, as eleições locais deixaram de ser apuradas, pela ausência de livros. As atas che­ garam com grande atraso. Na eleição seguinte, as atas chegaram a Natal antes do dia das eleições."187

Por essas e outras razões foi que os oposicionistas resolveram fazer a Revolução de 1930, com o ohjetivo de im plantar no Brasil um sistem a eleitoral m ais eficiente do que o dom inante na República Velha.