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3. A PRODUÇÃO DO MERCADO FORMAL NOS EIXOS DE VALORIZAÇÃO

3.1. O produto imobiliário: o condomínio vertical

Segundo disposto em trabalho de Amorim e Loureiro (2005), ao núcleo habitacional são atribuídos uma série de valores, tanto tangíveis e quantificáveis (valor de uso, valor de troca, valor econômico) quanto de natureza intangível e não facilmente quantificáveis, como os valores sentimental, estético e simbólico. Desse modo, as mudanças observadas no projeto e no uso deste núcleo estariam ligadas a alterações na estrutura destes valores, decorridas, entre outros fatores, de transformações nas relações e práticas sociais, nos hábitos culturais e na composição familiar. Ainda segundo os autores, a disseminação do edifício de apartamentos como a forma de moradia mais usual para as classes média e alta na sociedade contemporânea estaria ligada a estas transformações. Conforme explicam,

Hoje, a sociedade urbana contemporânea reflete a complexidade de nossa era, sendo multifacetada, formada por uma diversidade de arranjos familiares (famílias uniparentais, casais do mesmo sexo, casais sem filhos, ou as famílias estendidas, geradas por matrimônios consecutivos e divórcios, por vezes formada por sucessivos filhos únicos, com muitos irmãos), além da tendência de envelhecimento da população. Também é caracterizada por altos níveis de violência urbana. A combinação destes fatores contribuiu para dar ao condomínio vertical de apartamento o status de forma ideal da habitação. Proteção coletiva, alcançada por meio de estruturas de condomínio organizadas, substituiu a casa isolada individual como o símbolo de proteção e segurança, valores estes compartilhados e desejados por típicas famílias modernas. (AMORIM & LOUREIRO, 2005)

Entretanto, o alcance desta representação prestigiosa – que acarretou na sua ampla aceitação - foi precedido por preconceitos e barreiras sociais. Segundo relatam (op.cit), “historicamente, a coabitação nunca foi vista como um atributo social positivo, sempre denotando o baixo status social da família”. Tendo sua imagem associada à moradia em cortiços e casas de cômodos, esta tipologia habitacional, que foi

introduzida por volta da década de 1930 na cidade como forma construtiva adotada pelos institutos de previdência social, apenas atingiu as classes médias em meados do século. Para o alcance desta população, mais bem posicionada economicamente, em muito contribuiu sua inserção em localizações estratégicas. Como salientam os autores citados (op.cit.), “a localização dos edifícios era um atributo importante para seduzir as famílias, dado que a proximidade do trabalho e de serviços, predominantemente concentrados no centro da cidade, era o ponto fundamental para a venda deste novo produto”. No final da década de 1950, alguns exemplares começam a tomar forma nos subúrbios da cidade, iniciativa que acompanha o deslocamento das populações para estes eixos, como os bairros do Derby, Espinheiro, Madalena e principalmente Boa Viagem. Como apontam Moreira e Freire (2011), “o litoral começava a se valorizar como área de moradia, além de veraneio, ao mesmo tempo em que o edifício em altura passava a ser visto como uma alternativa de moradia”.

Superado o conceito negativo, o produto passa a ser direcionado também para a classe média alta, fato que ocorre com maior ênfase a partir da segunda metade da década de 1970, impulsionado pelo crescimento da atividade de incorporação imobiliária. Como vimos no capítulo anterior, este regime de produção – que se consolida através do Sistema Financeiro da Habitação – concentra a suas atividades nos bairros de melhor situação infraestrutural, notadamente os que possuem um elevado grau de acessibilidade a equipamentos e serviços coletivos, maiores coeficientes de ocupação e uso do solo e terrenos de maior valorização econômica. Esta escolha locacional é para Lacerda (1990) um indicativo da tendência de atuação do mercado nas áreas que lhe proporcionam um menor risco quanto à aceitação do empreendimento. Desta concentração decorreram mudanças no espaço urbano e na sua paisagem, expressas sobretudo pela verticalização do produto imobiliário, em substituição às residências horizontais unifamiliares.

Consolidado nestas áreas, o condomínio vertical passa a constituir a principal oferta do mercado imobiliário formal da cidade, apresentando-se de modo diferenciado segundo a demanda a que pretende alcançar. Em outras palavras, os atributos intrínsecos e extrínsecos ao produto divergem conforme a demanda a que este se destina, especialmente no que concerne à sua capacidade de compra. Assim, a segmentação do mercado torna-se uma circunstância definidora da composição ou formulação das características do produto. Em estudo realizado por Abreu e Tramontano (2009) para o mercado imobiliário paulistano, são levantados como

atributos intrínsecos os aspectos físicos do objeto arquitetônico, tais como oferta de equipamentos condominiais, padrões de acabamento, composição de fachadas, conformação da unidade habitacional (áreas, número de cômodos etc.), entre outros. Por sua vez, os atributos extrínsecos relacionam-se à condição locacional e às características do entorno, avaliados, como vimos no capítulo I, de acordo com a sua inserção na divisão econômica e social do espaço.

Apesar da variedade de aspectos que condicionam a sua produção, para os autores citados a tendência à homogeneização de certas características físicas dos imóveis, especialmente relacionadas ao arranjo espacial das unidades habitacionais, denota uma rigidez na elaboração do produto, que segue reproduzindo esquema baseado na tripartição em setores com funções definidas. Como explicam,

No mercado imobiliário paulistano, a grande maioria dos projetos continua reproduzindo um modelo espacial muito próximo ao dos apartamentos parisienses oitocentistas, caracterizado por recorrências como sua subdivisão em cômodos funcionalmente estanques – desenhados originalmente para o atendimento de atividades específicas – articulados por corredores de circulação e dispostos de forma a configurar as zonas social, íntima e de serviços.

Ainda para tais autores, o modelo adotado reflete o atendimento a um núcleo familiar baseado na estrutura patriarcal, com papéis bem definidos para cada membro: o pai é o provedor financeiro enquanto a mãe é a responsável pela administração do lar e educação dos filhos. Diante da diversidade de arranjos familiares que conformam a sociedade contemporânea, possibilitados por transformações de ordem econômica e social - como a introdução da mulher no mercado de trabalho e a legalização do divórcio, que provocaram a descentralização das decisões e do comando doméstico da figura paterna, por exemplo – novas formas de organização ou novos modos de morar poderiam ser oferecidos. Entretanto, para Abreu e Tramontano (op.cit.), o mercado parece enfrentar essa circunstância de forma tímida:

Numa tentativa de tornar produtos semelhantes mais interessantes para usuários com demandas heterogêneas, têm-se ofertado plantas que permitam alguma possibilidade de alteração no arranjo inicial de seus espaços, mas com limitações no que se refere aos usos. Essa opção aproveita-se de um crescente desejo de personalização por parte de consumidores – fruto da crescente tendência ao individualismo –, exercitando uma visão mercadológica, já que o objetivo seria tornar mais vendáveis produtos espacialmente parecidos, associando-os a uma ideia de flexibilidade, que nem sempre se verifica na prática.

Na referida pesquisa realizada por Amorim e Loureiro (op.cit.) sobre o produto desenvolvido pelo setor imobiliário, a manutenção deste esquema rígido também é observada, o que permite a afirmação de que o mercado segue um padrão quanto à sua organização espacial. A distribuição dos cômodos obedece a um arranjo setorial

pré-estabelecido, independente da área do apartamento e da classe social a que se destinam, gerando um modelo ou uma estrutura espacial, que é formada pela mesma setorização observada no produto paulistano: as zonas social, privada e de serviços. Estas são organizadas “de forma a permitir não somente uma maior centralidade ao setor social, mas, também, fácil acessibilidade ao setor de serviços e isolamento ao setor privado”. (Idem, 2005) Ainda segundo os mesmos (op.cit.), “esta estrutura setorial ordena a interação potencial entre os habitantes, visitantes e estranhos, tornando-a previsível e carregada de significado social”. Desse modo, apesar de ser notada uma variedade de plantas arquitetônicas ofertadas pelo mercado, que nascem de condições específicas de seu terreno de implantação, o esquema que conduz o seu processo de criação é baseado em uma proposta de organização tradicional. A ocorrência frequente deste padrão estrutural denotaria a existência de um genótipo da habitação.

A pesquisa também constatou que a estrutura programática se mostra mais simples ou mais complexa de acordo com a classe social a que os apartamentos se destinam. Assim, as unidades que atendem ao público de maior poder econômico possuem maiores áreas úteis e tendem a um processo de “especialização funcional dos cômodos” (Idem, 2005), ilustrado na inclusão de espaços com funções específicas:

No setor social, por exemplo, a sala única multifuncional encontrada em apartamentos populares e de classe média, é ampliada com a espacialização de atividades específicas a medida que status social aumenta. Assim, surgem as salas de visitas, de jantar, de jogos, de TV – mais recentemente conhecida pelo pomposo apelido de home theatre, etc. O aumento no número de rótulos, definindo ambientes específicos, é sinal de uma maior classificação e maior complexidade dos seus atributos. (AMORIM & LOUREIRO, 2005)

Este é o caso também da suíte master, denominação que acompanha a ideia de dormitório principal, contendo em seu ambiente os espaços relativos ao closet e ao banheiro. Divergindo da tendência à especialização funcional, tem-se o quarto reversível, cômodo observado nos apartamentos pequenos e médios, que abriga funções variadas, a depender do usuário. Para os referidos autores, este elemento coringa - que pode fazer parte do setor de serviços ou privado - revela-se como um componente originado nas necessidades advindas das novas composições familiares, que normalmente não dispõem dos serviços diários de empregadas domésticas.

Além das variações programáticas observadas no apartamento, foram levantadas também alterações desta ordem na área condominial do edifício. Como constatam os autores, “o programa arquitetônico vem se tornando mais complexo nas

últimas décadas, com uma maior disponibilidade de serviços coletivos que estendem os limites e os domínios das unidades privadas”. (Idem, 2005) Assim, ganham mais espaço a prática de atividades físicas com a inclusão da sala de ginástica, e de lazer, com o salão de festas e as áreas recreativas, como piscinas, quadra poliesportiva e

playgrounds para crianças. Este incremento é, segundo os autores (op.cit),

representativo da busca por uma vida cotidiana “mais fácil, prática e mais segura”. Deste modo, podemos inferir que temas como a violência que cerca as metrópoles brasileiras, a dificuldade de mobilidade nestes centros, e a exiguidade de tempo para as atividades físicas e de lazer – relacionada à exigência por parte do mercado de trabalho de uma maior disponibilidade dos profissionais para deslocamentos interurbanos, moldaram a elaboração destes espaços.

Esta valorização da área coletiva do condomínio, que se expressa na sua ampliação por meio da adição de novos equipamentos, responde a uma outra tendência: o movimento de redução da área útil na unidade habitacional que vem sendo delineado desde meados da década de 1990. Para os autores, esta mudança se constitui, na verdade, como uma forma de compensação, à medida que muitas das atividades antes realizadas no domínio privado são agora transferidas para a área coletiva. Segundo agentes institucionais entrevistados ligados ao segmento imobiliário, as mudanças observadas nas esferas coletiva e privada do produto habitacional respondem às novas necessidades e exigências da demanda, que passou a valorizar outros aspectos deste bem:

O que acontece é que, antes, um apartamento de três quartos com 150 m² era composto de pilotis e de uma garagem. Hoje, o meu apartamento de três quartos tem 85 m², com três pavimentos de garagem e duas áreas de lazer (...). O que é que mudou nessa história? Primeiro tivemos que adequar o apartamento, ou seja, a área privativa, que é a área venal, ao gosto do cliente. O segundo aspecto: cada vez mais, itens como segurança, conforto e comodidade foram entrando no dia-a-dia do nosso consumidor. Muito se deve à questão das novas maneiras de viver da população. Você não tem mais aquela mulher que passa o dia todo em casa cozinhando, cuidando dos filhos. Normalmente trabalha, sai. Os filhos vão à escola. O marido também trabalha. E a casa fica abandonada mesmo durante o dia todo 68.

Temos notado claramente que o mercado tende a unidades menores. Hoje os mercados Recife e Região Metropolitana estão girando em torno a uma média de 70 m². Há cinco anos era 90 a 100 m². Por que? Por que as pessoas tem tido uma vida social fora de seu ambiente de dormitório. Os espaços foram possíveis de serem diminuídos por que as pessoas precisam menos desses espaços. (...) Outro aspecto é que culturalmente as famílias têm se formado mais tarde. (...) Então a tendência natural é que os espaços privados sejam menores, mesmo para as classes mais altas. Antigamente você tinha um mercado gigantesco de apartamentos de 200 m². Hoje é irrisório, muito pequeno comparativamente 69.

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Trecho de entrevista realizada.

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Notamos que as pessoas tendem a, na parte privada, querer o menor, o que significa que na parte comum querem o maior. Pessoas mais abastadas, às vezes, exigem ter alguns compromissos nas áreas comuns, como minicampo, ter uma área verde maior, ter mais espaço para estacionamento. Uma coisa é ter 100 m² de uma área privativa com uma vaga de garagem – um carro só, como era antigamente. Hoje eu preciso de duas a três vagas – só essas três vagas, em área já vão dar uns 40 m² – então são essas contas que se faz 70

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Uma outra razão apontada pelos entrevistados para tal fenômeno é de natureza econômica. A dificuldade em conseguir financiamentos para os imóveis a taxas compatíveis com o bolso dos compradores, sentida principalmente durante a década de 1990, fez com que o produto residencial passasse por um processo de racionalização, tanto na sua etapa de planejamento e projeto quanto no seu processo construtivo, levando à padronização de soluções tecnológicas.

A verticalização também é um dos fenômenos que tem caracterizado o produto local, especialmente nos bairros de maior concentração de renda, conforme exposto no capítulo anterior. Segundo Leal (2010), a partir de pesquisa realizada sobre a produção imobiliária no Recife, esta mudança no gabarito das edificações se torna mais visível a partir dos anos 1990, quando são observados empreendimentos que chegam a superar o número de trinta pavimentos. As análises tecidas sobre esta variável mostram que durante os anos 1980 -1990, os edifícios que continham entre 05 e 09 pavimentos representavam cerca de 31% do total, a maior concentração. Já entre o período 2001-2008, este percentual é reduzido para 11%. A relação inversa é observada no que concerne aos imóveis com gabaritos superiores a 25 pavimentos. Com percentuais poucos significativos para a produção realizada entre os anos 1980- 1990 (representando aproximadamente 0,7% do total), chegam a alcançar cerca de 22% da amostra relativa ao período 2001-2008. Para a autora, estas mudanças estão extremamente vinculadas ao período de vigência do Plano Diretor de Desenvolvimento da Cidade do Recife (PDCR), Lei Municipal 15.547/91 e da subsequente Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS) - Lei 16.176/96. Como vimos, tais mecanismos estabeleceram parâmetros mais favoráveis à atuação do mercado. Porém, além dos marco regulatório, acreditamos que o fenômeno é explicado não apenas pela possibilidade oferecida pela lei de se obter um maior volume de construção, mas também pela valorização alcançada pelo terreno em determinadas localizações. Conforme exposto no capítulo I, tal fato proporciona aos proprietários fundiários a vantagem de exigir uma negociação diferenciada - dado o seu poder de monopólio – que lhe permitirá extrair sobrelucros de localização. Desse modo, as localizações de

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maior valorização tendem a se caracterizar pelo aproveitamento máximo do solo. É o que nos mostra o relato de agente imobiliário:

A expectativa do proprietário fundiário, quando vamos negociar, é de um prédio verticalizado, que tenha muita construção, até por que as negociações são feitas em função do que cabe no terreno - muitas vezes é uma permuta por área construída. Então essa invenção de prédio alto não é das construtoras. (...) Não podemos, num lugar que cabe um prédio de 30 andares, oferecer uma proposta de 15, por que vamos perder para o concorrente 71.

À luz das tendências observadas nos trabalhos expostos, partiremos agora para a averiguação do comportamento da oferta habitacional local em bairro de alta concentração de investimentos imobiliários: Boa Viagem. A delimitação geográfica responde à busca pela caracterização do produto desenvolvido em região de alta valorização. A partir do conhecimento da heterogeneidade do bairro, observada nas diferenças dos preços fundiários praticados em algumas localizações – conforme demonstrado em trabalho de ALVES (2009), procedemos a um estudo mais detalhado, baseado na divisão do bairro em três grandes zonas: o setor I, que corresponde à Avenida Boa Viagem e Rua dos Navegantes – assinaladas também em nossas entrevistas como os eixos de maior valorização imobiliária; o setor II, que compreende os eixos das Avenidas Conselheiro Aguiar e Eng. Domingos Ferreira, estendendo-se até Rua Setúbal; e por fim a área III, abrangendo o trecho compreendido imediatamente após este eixo até o limite do bairro. O estabelecimento desta divisão nos permitirá observar as diferenças do produto segundo sua localização no bairro.

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Figura 14: Demarcação da divisão procedida no bairro de Boa Viagem. Fonte: www.recife.pe.gov.br , com intervenção da autora.