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2 O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO

2.1 O quadro teórico do Interacionismo sociodiscursivo

O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) não tem o objetivo de ser mais que uma ciência linguística, psicológica ou sociológica, almejando ser uma ciência do humano cuja problemática central é demonstrar o papel decisivo que a linguagem assume no desenvolvimento dos seres humanos. Nessa perspectiva, o ISD adota uma visão transdisciplinar, tendo em vista que a linguagem não pode ser concebida de forma isolada, devendo ser perpassada pelos diversos campos das Ciências Humanas, ancorando-se, principalmente, na Sociologia, Filosofia e Psicologia para constituir as bases de seu quadro teórico. Sendo uma corrente de caráter teórico e metodológico, o ISD procura explicar diversas questões epistemológicas, referentes às produções verbais humanas, além de fornecer instrumental de análise linguística para tais produções. Neste primeiro momento, iremos nos centrar nesse primeiro aspecto, ou seja, nas bases teóricas do ISD.

As correntes que se ancoram na perspectiva do interacionismo social, segundo Bronckart (2009), aderem à tese central de que as condutas humanas são o resultado de um processo histórico de socialização, não sendo possível compreender as condutas e o

desenvolvimento humano como um substrato neurobiológico ou por condicionamentos4. Desse modo, os interacionistas têm o interesse de analisar as condições sob as quais a espécie humana desenvolveu formas de interação de caráter semiótico através dos textos e das formas de organização social.

Conforme mencionamos anteriormente, o ISD ancora as suas bases na Sociologia para a construção de seu quadro epistemológico, mais especificamente nos modos de funcionamento sociais a partir da articulação entre representações coletivas, sociais e individuais elaboradas por Durkheim, bem como dos trabalhos de sociologia e psicossociologia de Bourdieu e Moscovici.

No que se refere aos processos de construção psicológica, o interacionismo ancora-se em Vygotsky, realizando uma leitura crítica da obra de Piaget. Nesta perspectiva, se reconhece o papel das condições e das intervenções sociais na formação das capacidades cognitivas da criança. Outra premissa na obra de Vygotsky que compõe o quadro teórico do ISD é o reconhecimento de que o desenvolvimento cognitivo continua ocorrendo na mente dos seres humanos mesmo depois da fase adulta, sendo possível estudar questões relacionadas ao desenvolvimento mesmo em sujeitos que se encontram nesta fase da vida.

O interacionismo social ancora-se ainda na dimensão psicossocial da linguagem e busca essas fontes nos trabalhos centrados na interação verbal, especialmente na análise dos gêneros e tipos textuais, inspirados em Bakhtin e na análise das organizações sociais elaboradas por Foucault. Outra forte influência é a obra de Saussure, sobretudo a noção que trata sobre a arbitrariedade radical do signo, constituindo uma contribuição teórica essencial para a compreensão do estatuto das relações de interdependência entre a linguagem, as línguas e o pensamento humano. No entanto, Bronckart (2009) afirma que Vygtsky não conseguiu estabelecer um conceito unificador que contemple a dualidade físico-psiquica dos seres humanos, uma vez que ele transita apenas entre significação da palavra, a conduta instrumental e a atividade mediada pelo signo. Para ampliar essas reflexões, Bronckart incorpora o conceito de atividade elaborado por Léontiev e a sociologia de Habermas, diferenciando os termos atividade (unidade sociológica) e ação, atribuída a um sujeito específico (unidade psicológica).

A espécie humana, diferentemente das outras espécies animais, desenvolveu diversas formas de organização de suas atividades que só foram possíveis de ser realizadas devido ao

4 A primeira posição é adotada pelos cognitivistas e pelas neurociências, já a segunda é adotada pelos teóricos que se inscrevem na corrente behaviorista.

desenvolvimento de uma forma particular de comunicação a qual denominamos de linguagem, sendo essa a responsável por classificarmos as atividades humanas como sociais, tendo em vista que todas as atividades são negociadas por meio dela.

Os signos funcionam, inicialmente, como representações relativas aos parâmetros do ambiente que compõem o mundo objetivo, ao mesmo tempo em que desenvolvem conhecimentos coletivos acumulados, formas convencionais de organização e de cooperação entre os membros do grupo, constituindo um mundo social. Por sua vez, cada indivíduo reformula esses conhecimentos coletivos acumulados que passam a constituir o seu mundo subjetivo. A partir dessa perspectiva, é o mundo social, portanto, que condiciona as formas de estruturação dos mundos objetivo e subjetivo, uma vez que é ele quem regula o acesso do indivíduo aos objetos do meio. De acordo com Bronckart (2009), na medida em que há uma semiotização das pretensões de verdade por meio da linguagem, é necessário haver também uma dimensão transindividual que veicule representações individuais e coletivas através de mundos representados.

Conforme Bronckart (2009), o indivíduo, no processo de semiotização do signo, constrói representações sobre três aspectos do contexto da ação de linguagem: o sócio- subjetivo, o físico e o verbal. A seleção dos signos, a partir do repertório oferecido por uma língua particular, é orientada, primeiramente, por representações individuais sobre as normas sociais e pela imagem que o sujeito constrói sobre si mesmo, o que constitui o aspecto sócio- subjetivo do contexto da ação de linguagem. Em segundo lugar, devem ser consideradas as representações dos parâmetros objetivos que constituem o aspecto físico do contexto da ação de linguagem. Essas representações são construídas pela imagem que o agente tem sobre si mesmo como locutor/escritor; pelos seus interlocutores potenciais e pela situação espaço- temporal de seu ato. Por último, entram em jogo os conhecimentos de ordem intertextual que estão associados aos conhecimentos do agente sobre aspectos da língua natural, bem como sobre os gêneros de texto, o que constitui o aspecto verbal do contexto de ação de linguagem.

A semiotização do signo proporciona que ocorram atividades de linguagem organizadas em discursos ou em textos os quais se agrupam a partir de gêneros. Devido à grande variedade de atividades verbais e não verbais com as quais esses textos interagem, ocorre um número indefinido de gêneros de texto que são considerados os correspondentes empírico/linguísticos das atividades de linguagem. Os gêneros de texto, por sua vez, são construídos pelas gerações precedentes e organizados em um repertório de modelos denominado de arquitexto.

Bronckart (2004) levanta a tese de que as condutas humanas não podem ser analisadas apenas no fluxo contínuo do agir, pois elas só podem ser apreendidas por meio de interpretações produzidas com a utilização da linguagem, a partir dos textos produzidos pelos próprios actantes ou pelos observadores dessas ações. Esses textos, ao mesmo tempo em que refletem representações, interpretações e avaliações sociais sobre essa atividade, se referem a uma determinada atividade social, exercendo influência sobre essa atividade e sobre as ações envolvidas a partir dela. Eles podem, portanto, contribuir para a cristalização ou para a modificação dessas mesmas representações e das próprias atividades e ações. Assim, para compreender melhor uma determinada atividade, que no nosso caso é a atividade educacional, os objetos de análise não podem ser as condutas diretamente observáveis pelo pesquisador, mas sim os textos que se desenvolvem tanto na própria situação de trabalho e como também os que tratam sobre essa atividade profissional e são produzidos em outros momentos.

É com base nessa concepção que os trabalhos do ISD, em torno do agir educacional, têm se alicerçado, buscando identificar as figuras interpretativas do agir com o objetivo de analisar o modo como se apresentam as reconfigurações do agir professoral nos mais diferentes textos que circulam na sociedade, principalmente nos da esfera institucional. A análise ocorre no nível da avaliação/interpretação ou reformulação das condutas que são veiculadas nos textos de observadores ou nos textos dos próprios actantes. Os textos que tratam sobre as reconfigurações do trabalho do professor podem ser agrupados da seguinte maneira: institucionais de prescrição; de autoprefiguração; produzidos em situação de trabalho; interpretativos e avaliativos.

A nossa proposta, ao analisar livros didáticos, situa-se na investigação dos textos institucionais de prescrição, os quais são definidos por Bronckart (2006) como textos do entorno-precedente ao agir. Nessa perspectiva, concebe-se que esses textos não carregam apenas prescrições que antecipam as formas de agir, pois eles também fazem parte de um contexto precedente que desencadeia comportamentos, visões e perspectivas de ação. Para situar melhor a nossa proposta de investigação, é importante compreender a noção de trabalho na qual o ISD se filia. Teceremos considerações sobre essas noções na próxima seção.