3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas
3.1. Que escritores somos nós? Juventude e comunidade literária em Roberto Bolaño
3.1.2. O que Carlos Wieder revela sobre Arturo Belano?
A figura encenada por Carlos Wieder sempre ocupou um significante
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personagem fundador para o eixo narrativo de Estrella Distante (1996a), um
personagem que, em meio a aparições e ocultações, faz jus ao título dado ao romance:
brilha em um horizonte distante, feito uma estrela, chamando a atenção do leitor ao
mesmo tempo em que dele se afasta.
Entre o protagonismo e o obscurecimento, a história de Wieder toca por
diversas vezes a história do próprio narrador. Guiado inicialmente por motivações
pessoais fundamentalmente, pelos vínculos instituídos entre Wieder e alguns de seus amigos e colegas, como as irmãs Garmendia , Belano narra em Estrella Distante o caminho e os questionamentos que o conduziram até o poeta-aviador. Ainda que o
desfecho de tal investigação mostre-se, ao menos aparentemente, satisfatório, visto que
ao final da narrativa Belano descobre, a pedido de um policial, o paradeiro de Carlos
Wieder, observa-se que o desenrolar de sua busca tem mais a função de acentuar o
mistério que envolve o poeta-aviador do que a de fornecer eventuais esclarecimentos ao
leitor. Ou seja: localizar (fisicamente) não implica no romance o desvendar de sua
figura e o fim de seu mistério.
A respeito do foco desta Dissertação, considera-se relevante explorar quais
são os fundamentos, as experiências e/ou os conceitos literários (e/ou de outra ordem)
que direcionam as opiniões e os juízos do narrador acerca do poeta-aviador, haja vista
tratar-se de um aspecto menos abordado pela crítica se comparado à análise do papel de
Carlos Wieder. Cabe já mencionar que se adota, nas próximas subseções, a mesma
perspectiva em relação ao papel de Cesárea Tinajero em Los Detectives Salvajes, isto é:
opta-se, nos dois casos, por dar destaque ao significado e à importância dessas figuras
enigmáticas enquanto peças-chave na trajetória de determinados personagens-escritores
presentes nos romances, e não por leituras que assumam a análise de seus perfis como
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Os julgamentos de Arturo Belano em torno do até então Alberto Ruiz-Tagle
têm início com certa desconfiança quanto à sua eventual condição de autodidata,
juntamente com o destaque dado às diferenças existentes entre o perfil do poeta e o dos
demais frequentadores dos talleres, em sua maioria estudantes universitários:
Sobre ser autodidacta en Chile en los días previos a 1973 habría mucho que decir. La verdad era que no parecía autodidacta. Quiero decir: exteriormente no parecía un autodidacta. Éstos, en Chile, a principios de los setenta, en la ciudad de Concepción, no vestían de la manera en que se vestía Ruiz-Tagle. Los autodidactas eran pobres. Hablaba como un autodidacta, eso sí. (…) En una palabra, Ruiz-Tagle era elegante y yo por entonces no creía que los autodidactas chilenos, siempre entre el manicomio y la desesperación, fueran elegantes (BOLAÑO, 1996a, p. 14).
Las diferencias entre Ruiz-Tagle y el resto eran notorias. Nosotros hablábamos en argot o en una jerga marxista-mandrakista (la mayoría éramos miembros o simpatizantes del MIR o de partidos trotskistas, aunque alguno, creo, militaba en las Juventudes Socialistas o en el Partido Comunista o en uno de los partidos de izquierda católica). Ruiz-Tagle hablaba en español. Ese español de ciertos lugares de Chile (lugares más mentales que físicos) en donde el tiempo parece no transcurrir. Nosotros vivíamos con nuestros padres (los que éramos de Concepción) o en pobres pensiones de estudiantes. Ruiz-Tagle vivía solo, en un departamento cercano al centro, de cuatro habitaciones con las cortinas permanentemente bajadas, que yo nunca visité pero del que Bibiano y la Gorda Posadas me contaron cosas, muchos años después (cosas influidas ya por la leyenda maldita de Wieder), y que no sé si creer o achacar a la imaginación de mi antiguo condiscípulo. Nosotros casi nunca teníamos plata (es divertido escribir ahora la palabra plata: brilla como un ojo en la noche); a Ruiz-Tagle nunca le faltó el dinero (ibid., p. 16).
Guardadas as ironias comuns à escrita de Bolaño, as primeiras suspeitas do
narrador, embora fundamentadas, servem tanto de contextualização (do ambiente inicial
da narrativa, do perfil de Ruiz-Tagle etc.) quanto de alerta para o incômodo que a
imponente presença de Alberto Ruiz-Tagle causara em Belano e em seu amigo Bibiano
O'Ryan. Contaminado pelo ciúme e pela inveja, sendo estes decorrentes da rápida e
bem-sucedida relação estabelecida entre o poeta autodidata e as irmãs Garmendia, o
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realidad, todas las suposiciones que podíamos hacer en torno a Ruiz-Tagle estaban
predeterminadas por nuestros celos o tal vez nuestra envidia. Ruiz-Tagle era alto,
delgado, pero fuerte y de facciones hermosas” (BOLAÑO, 1996a, p. 15).
Em termos gerais, Alberto Ruiz-Tagle surge nos talleres de poesía como
uma figura antagônica ao perfil de aspirante a poeta usualmente encontrado nesses
ambientes. Além do contraste entre a sua marcada masculinidade (/segurança) e a
inexperiência amorosa/sexual de Belano, também seu equilibrado e maduro
comportamento ao longo dos encontros literários destoava dos fervorosos e habituais
ataques que os jovens poetas costumavam dirigir uns aos outros.
Com base nessa lista de discrepâncias, seria possível concluir que o
romance caminha para um permanente distanciamento dos dois personagens. Somado à
diferença de suas personalidades e trajetórias, o distanciamento físico experimentado
após o Golpe acentua ainda mais essa impressão, tratando-se, portanto, de uma leitura
válida. Porém, um olhar mais aprofundado aos contornos da narração de Belano coloca
em evidência traços de um elo “perturbadoramente íntimo”, como bem descreve
Pinheiro (2014, p. 191). Observa-se, assim, algo de inquietante nessa aparente distância
que não permite ignorar a inesperada expressão utilizada por Belano ao deparar-se com
Wieder no final da narrativa: “Entonces llegó Carlos Wieder y se sentó junto al
ventanal, a tres mesas de distancia. Por un instante (en el que me sentí desfallecer) me vi
a mí mismo casi pegado a él, mirando por encima de su hombro, horrendo hermano
siamés (…)” (BOLAÑO, 1996a, p. 152)12.
En el juego de caracterizaciones sobre la base de “tipos” de artista históricos en la tradición del vanguardismo, las posiciones aparentemente antagónicas de Carlos Wieder y el narrador son las que cifran el universo como juego de alternancias entre dobles opuestos
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y siameses penosamente unidos a un mismo cuerpo. (...) Debajo de las diferencias que la novela aparentemente traza entre estos dos personajes que se estarían separando cada vez más, se oculta un acercamiento progresivamente más estrecho (GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 215-216).13
No desenvolvimento de sua argumentação, Jeremías Gamboa Cárdenas
esclarece que Belano e Wieder têm em comum o fato de representarem, ainda que
antagonicamente, os dois caminhos possíveis que um artista de ética vanguardista
poderia seguir em um país como o Chile, “totalitario y núcleo explosivo de un éxodo”
(GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 221). Na posição de “vanguardista decadente” e de
“artista bohemio”, o narrador opta pelo mutismo e abandona a literatura já na parte final de Estrella Distante, ambientalizada nos anos 90, Belano declara: “Vivía solo, no
tenía dinero, mi salud dejaba bastante que desear, hacía mucho que no publicaba en
ninguna parte, últimamente ya ni siquiera escribía. Mi destino me parecía miserable”
(BOLAÑO, 1996a, p. 130). Carlos Wieder, por outro lado, converte-se, nas palavras de
Gamboa Cárdenas, em um “poeta oficial futurista del régimen”, que abraça o “nuevo
nacionalismo auspiciado por el régimen militar” (GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p.
212), aproximando-se, por diversas vezes, da figura do “dandy”. Em síntese, o poeta-
aviador afirma-se em Estrella Distante como uma projeção antinômica da posição
supostamente assumida por Belano, e também por Bibiano O’Ryan, dentro da sociedade
chilena: “la del joven artista associado a una generación políticamente comprometida y
adscrita a una herencia cultural proveniente de la vanguardia europea y
latinoamericana” (ibidem).
Apoiando-se nas formulações do italiano Renato Poggioli acerca da práxis
vanguardista, Gamboa Cárdenas interpreta essa oposição entre o artista dandy e o artista
bohemien encenada pelos dois personagens como “manifestaciones iguales y
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contradictorias de un estado de ánimo idêntico y de una misma situación social”
(Poggioli 1946 apud GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 217). Trata-se, em certa
medida, de uma disparidade da qual Belano encontra-se ciente, e que justifica as
opiniões veementes taxativas por ele proferidas. Ao contrapor seu ideal de escritor
engajado ao horror e às demais particularidades que definem a postura literária de
Wieder, o narrador vai, pouco a pouco, situando-o dentro ou fora do que ele próprio
(Belano) entende por literatura. Em sua conversa com a personagem Gorda Posadas, por
exemplo, Belano a advertira de que, ao contrário do que sugeria a poetisa, Ruiz-Tagle
não chegaria a revolucionar a poesia chilena, visto que ele nem ao menos era “de
esquerda” (BOLAÑO, 1996a, p. 25). Vintes anos após esse episódio, quando ele é
procurado por Abel Romero, investigador muito interessado pelo paradeiro de Wieder, e
“uno de los policías más famosos de la época de Allende” (ibid., p. 121), o personagem
volta a reafirmar suas convicções, ao fazer questão de enfatizar para o policial que, em
sua visão, “Carlos Wieder era un criminal, no un poeta” (ibid., p.126).
Apesar de serem poucas as valorações explícitas de Belano a respeito de
Wieder e de sua produção artística, pode-se notar com facilidade uma contradição entre
o conteúdo radical de suas falas e algumas das atitudes reveladas ao longo do romance.
Wieder desestabiliza o narrador ao fazê-lo repensar constantemente as possíveis
relações da Estética com a Ética e com a Política. Se por um lado Belano vê-se quase
que obrigado a condenar o lado criminoso e cruel do poeta-aviador, de outro o
personagem depara-se com uma incômoda admiração e curiosidade: “En cualquier caso,
en ese tiempo Ruiz-Tagle había desaparecido para siempre y sólo teníamos a Wieder
para llenar de sentido nuestros días miserables” (BOLAÑO, 1996a, p. 52). A maior
prova disto está na totalidade da obra que o leitor tem em mãos, pois ao mesmo tempo
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“literatura”, ele transforma suas memórias, em especial as que dizem respeito à história
de Wieder, em sua maior produção literária. Ironicamente, o narrador interessa-se mais
pela biografia do poeta transgressor, uma história portadora de “algo más” (BOLAÑO,
1996a, p. 130), do que pelo caminho convencional, e ético, trilhado por ele e por seus
jovens amigos.
Tal como ocorre em La literatura nazi en América, a dificuldade não reside em denunciar os vínculos infames tecidos com a ditadura ou com grupos neonazistas por Wieder para explicar com suficiência o terror de seus atos. O desafio se impõe nos momentos em que essas ligações são cortadas em justeza a seu próprio projeto estético (PINHEIRO, 2014, p. 191-192).
Fazendo uso da expressão de Pinheiro, o “desafio” de Belano em Estrella
Distante consiste em romper com seu (juvenil e ingênuo) paradigma literário e permitir-
se enxergar que são múltiplos os vínculos entre arte e experiência histórica
(AHUMADA, 2012), que além de uma literatura que une vida e arte existe também
aquela que se une à morte. A declaração que abre o capítulo 9, penúltimo do romance,
esboça a desilusão que essa tomada de consciência causara no narrador, o qual relaciona
o encerramento de sua busca por Wieder ao fim de um contato com o “mar de merda da
literatura”: “Esta es mi última transmisión desde el planeta de los monstruos. No me
sumergiré nunca más en el mar de mierda de la literatura. En adelante escribiré mis
poemas con humildad y trabajaré para no morirme de hambre y no intentaré publicar”
(BOLAÑO, 1996a, p. 138).
Arturo Belano é procurado pelo policial Abel Romero no capítulo 8, e narra
o desenvolvimento de sua investigação e a posterior localização de Carlos Wieder nos
capítulos 9 e 10, os últimos do romance. Sobre esse episódio, chama a atenção o fato de
o policial ter escolhido o narrador, e não seu colega Bibiano O’Ryan, para ajudá-lo nas
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señor Wieder, pero cree que usted lo conoce mejor” e que “para encontrar a un poeta
necesitaba la ayuda de otro poeta” (BOLAÑO, 1996a, p. 126). A partir dessa passagem,
percebe-se que as obsessões de O’Ryan e de Belano pelo poeta-aviador possuem
diferenças entre si. O primeiro poeta pode ter sido, de fato, a fonte da maioria das
informações acerca de Wieder fornecidas na primeira parte da narrativa, porém, o
desfecho da história destaca Belano como um de seus maiores leitores, como um dos
maiores conhecedores de sua poética. Daí advém a segurança de encarar os periódicos
disponibilizados por Romero como um rico material de pesquisa. Eis, então, que ao
colocar as mãos em um texto do poeta desaparecido, não lhe restaram dúvidas: “Era el
humor terminal de Carlos Wieder. Era la seriedad de Carlos Wieder” (BOLAÑO,
1996a, p. 143).
Para entender melhor esse conflito de e entre perfis que marca a escrita de
Roberto Bolaño, Chiara Bolognese (2010) divide seus personagens em três categorias.
De acordo com sua perspectiva, o narrador de Estrella Distante poderia ser considerado
um “letraherido derrotado”, isto é, um tipo de escritor “marginado y adicto a la
literatura” (BOLOGNESE, 2010, p. 466) Bolognese empresta a palavra “letraherido” de Bolaño, que em um dado momento utilizara-se de tal expressão para
definir, nos termos supracitados, a seus personagens. Trata-se de personagens-escritores
que “en su desasosiego y desubicación con respecto a la realidad, se crean mundos
alternativos poblados por literatos” (ibidem), a fim de encontrar na literatura, ou em
projeto literário específico, uma salvação vital. Nesse “mundo alternativo”, codividem
espaço com os “letraheridos derrotados” outras duas figuras comuns no universo
bolaniano: a do “fantasma de escritor”, isto é, escritores reais ficcionalizados, como
Parra, Neruda e os estridentistas, e a do “escritor-fantasma”, representado por figuras
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(BOLOGNESE, 2010, p. 466). Ainda que Carlos Wieder seja inspirado em uma
referência real, a o poeta Raúl Zurita, ele, assim como Cesárea Tinajero, de Los
Detectives Salvajes (1998) e Benno von Archimboldi, de 2666 (2004a), serve de
exemplo da segunda categoria.
Estos aspectos son algunos de los temas que constituyen el territorio Bolaño: un mundo donde el hombre es víctima de una sociedad vacía, que aniquila toda razón de vida y lo condena a un futuro incierto. En este contexto, casi siempre es una ocasión literaria la que empuja a los protagonistas a salir de la apatía para buscar un cambio en sus vidas, aunque luego este cambio no logre solucionar su malestar. En Bolaño, el proceso de la búsqueda de la identidad ha ido configurando un recorrido en la exclusión en la que se mueven sus letraheridos derrotados (BOLOGNESE, 2010, p. 466).
Focado em questões similares às discutidas por Bolognese, Edmundo Paz
Soldán adverte que, paralelamente a alguns modelos de escritores, a ficção de Bolaño dá
também espaço à presença de “antimodelos”, sendo estes fundamentalmente
representados (1) pela figura do escritor que se adapta às regras da indústria cultural e
(2) pela do escritor que se deslumbra pelo poder (PAZ SOLDÁN, 2008, p. 26). Wieder,
nesse caso, encenaria o segundo “antimodelo”.
“Escritor-fantasma” e “antimodelo”: o que, afinal, a figura encenada por
Carlos Wieder revela sobre o narrador?
Se a postura transgressora do poeta-aviador opõe-se a alguém, ela o faz a
Arturo Belano o qual, é válido lembrar, encarna a condição experimentada por muitos jovens que viveram os regimes ditatoriais na América Latina. Acompanhar a
história de Wieder significa acompanhar em paralelo a história de um “letraherido
derrotado”, a história de um jovem poeta desiludido, oprimido e exilado que se
transforma em um adulto melancólico. Assim, os 20 anos que definem a distância
temporal de sua narração revelam, de forma sutil, a gradual mudança de um olhar
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entanto, e ao encontro da leitura que Paula Aguilar faz de Nocturno de Chile (1999), a
figura do escritor melancólico representada por Arturo Belano remete a uma postura
“neutra” ou “inoperante”, já que não se resume a um “conformismo passivo”
(AGUILAR, 2008, p. 140). Juntas, a memória, a escrita e a melancolia que regem sua
narração, configuram-se “acontecimientos de búsqueda y elaboración de significación”
(ibid., p. 141). Nesse sentido, a incapacidade do narrador de posicionar-se frente ao
horror ocasionado pela presença da ditadura nos círculos literários diferentemente de Wieder que opta por promover uma revolução (ainda que às avessas) na poesia chilena
não deixa de ser uma quebra com determinados preceitos da arte comprometida, mas nem tão pouco é isenta de valor, visto que o seu aparente abandono da literatura dá
lugar a uma importante revisitação e releitura desse passado historicamente traumático.
“Víctima de una sociedad vacía, que aniquila toda razón de vida y lo
condena a un futuro incierto”, conforme assinala Bolognese no trecho supracitado,
Arturo Belano vê na biografia de seu “antimodelo”, na procura por esse “escritor-
fantasma”, uma alternativa para se vencer o sentimento de “apatia” que dele se
apoderara depois do Golpe, bem como um modo de impedir que os cruéis vínculos que
a História pode estabelecer com a história da arte se percam no esquecimento. Falar de
Carlos Wieder é, portanto, falar sobre a própria formação literária e tomada de
consciência de Arturo Belano.