ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ
Autobiografia, crítica e ficção: o personagem-escritor em
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas
CAMPINAS
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ
Autobiografia, crítica e ficção: o personagem-escritor em
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária.
Orientadora: Profa. Dra. Miriam Viviana Gárate
CAMPINAS
2015
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Sá, Ana Paula dos Santos de,
Sa11a S_aAutobiografia, crítica e ficção : o personagem-escritor em Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas / Ana Paula dos Santos de Sá. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
S_aOrientador: Miriam Viviana Gárate.
S_aDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
S_a1. Bolaño, Roberto, 1953-2003 - Crítica e interpretação. 2. Vila-Matas, Enrique, 1948- - Crítica e interpretação. 3. Literatura comparada - Chilena e espanhola. 4. Metaficção. 5. Autobiografia na literatura. I. Gárate, Miriam,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Autobiography, criticism and fiction : the figure of the writer in Roberto Bolaño and Enrique Vila-Matas
Palavras-chave em inglês:
Bolaño, Roberto, 1953-2003 - Criticism and interpretation Vila-Matas, Enrique, 1948- - Criticism and interpretation Comparative literature - Chilean and Spanish
Metafiction
Autobiography in literature
Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Mestra em Teoria e História Literária Banca examinadora:
Miriam Viviana Gárate [Orientador] Wilson Alves Bezerra
Livia Fernanda de Paula Grotto Data de defesa: 06-03-2015
Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária
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AGRADECIMENTOS
À FAPESP, pela bolsa que possibilitou minha dedicação exclusiva aos estudos.
À Miriam, por todo o aprendizado (que não foi pouco!). Aos membros da banca de qualificação e da banca de defesa, pelas construtivas observações e “provocações”. Deixo um agradecimento especial à Livia Grotto e à Fernanda Alves, pela disposição em acompanhar, com muita atenção e dedicação, esta pesquisa desde a monografia.
A todos os funcionários do IEL, em especial aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação, Cláudio, Miguel e Rose, pelo bom humor, pela boa disposição em me ajudar sempre que precisei e, principalmente, pelo contagiante “corintianismo”.
A todos os funcionários e colegas (portugueses e estrangeiros) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal, pela ótima recepção e por todo o auxílio e atenção no decorrer do meu intercâmbio. Aos docentes do Departamento de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais e do Departamento de Estética Literária, pelas disciplinas enriquecedoras e por todas as conversas e reuniões extraclasse.
A todos os meus eternos amigos de Graduação, os “Letreiros”, pois sem eles todo esse caminho teria sido muito mais cansativo e, com certeza, um tanto sem graça.
Sei que estou sujeita a ser injusta ao citar nomes, mas seria impossível encerrar esses agradecimentos sem mencionar a gentileza, o carinho e todo o apoio, pessoal, acadêmico e gastronômico da Bruna; a doçura e o companheirismo da Malu, aquela que sempre consegue ler meus pensamentos; as longas (pessoais, virtuais, nacionais e internacionais) conversas com a Moniquinha; e a convivência, literalmente familiar, que tive com a Pati, da época de roommate até se tornar minha madrinha de casamento. À Michele, com quem eu aprendi o que é a amizade, pelas horas e horas sentadas estudando para o Vestibular da Unicamp, de certa forma, onde tudo isso começou.
À Mariangela, ao Flávio, à Leilane e ao Diego, pelas risadas nos almoços de domingo.
Por fim, a parte mais difícil, o agradecimento àquele sobre o qual eu não consigo escrever sem marejar os olhos, o meu Querido, e muito amado, Alex. Obrigada por acreditar em mim e me fazer acreditar. Obrigada por ser o meu companheiro em todos os momentos de travessia. Obrigada por ser aquele que mantém meus pés no chão ao mesmo tempo em que me encoraja a alçar voos mais altos. Ao seu lado eu experimento a certeza de estar seguindo por (e rumo a) um “buen camino”.
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En Bolaño, el que no es poeta es padre, madre o hermano de poeta, novia o novio de poeta, amigo, amante oficial o amante secreto de poeta, heredero de poeta, lector de poeta, editor de poeta, enemigo de poeta, antídoto, víctima, proyecto de poeta… Dios mío: ¿cómo voy a hacer para sobrevivir a esta proliferación, esta explosión demográfica, esta metástasis de poetas? Alan Pauls, “La solución Bolaño”.
Narrar es como jugar al póquer: hay que parecer mentiroso cuando se dice la verdad. Ricardo Piglia, Prisión perpetua.
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RESUMO
Esta Dissertação tem por objetivo analisar o perfil e o papel do personagem-escritor em
dois romances do escritor chileno Roberto Bolaño (Estrella Distante, de 1996, e Los
Detectives Salvajes, de 1998) e em dois do espanhol Enrique Vila-Matas (El mal de
Montano, de 2002, e Doctor Pasavento, de 2005). Busca-se explorar os contornos da
figura do escritor que marca essas narrativas, com base em uma leitura atenta tanto aos
eventuais traços autobiográficos emprestados pelos autores a seus
personagens-escritores quanto ao tom ensaístico e ao retrato do campo literário esboçado a partir
desse veemente destaque dado ao ofício de escritor. O objetivo principal desta
Dissertação é observar quais são as posturas literárias desses personagens, o que eles
pensam e/ou têm a declarar sobre a literatura, e de que modo eles encaram e exercem a
atividade de escrita e de leitura. Vale mencionar, por fim, que se dá também atenção ao
longo deste trabalho à atual e recorrente associação das poéticas de Bolaño e de
Vila-Matas à denominada «autoficção», tendo em vista que classificar um texto como
autoficcional significa atribuir, muitas vezes, um papel de destaque à função e ao lugar
ocupado pelo personagem-escritor no que tange à presença da autobiografia do autor
xiii
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the role played by the figure of the author in two novels of
the Chilean writer Roberto Bolaño (Estrella Distante, 1996, and Los Detectives
Salvajes, 1998) and in two books of the Spanish author Enrique Vila-Matas (El mal de
Montano, 2002, and Doctor Pasavento, 2005). It attempts to observe the importance of
the profile of this type of character as regards the traces of autobiography and the
essayistic tone which mark the stories of these two writers. In order to do that, it
discusses the possible relation between their Poetics and «autofiction» (a device directly
linked to the role played by the characters who represent the figure of the author), and
what the contours of the critical portrait of the literary field developed within their
fictions are. The main objective is to observe the literary postures of these characters, in
other words, how they deal with the writing activity and with the activity of reading as
xv
SUMÁRIO
1. Introdução 1
2. O personagem-escritor e a «autoficção» 17 3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas 27 3.1. Que escritores somos nós? Juventude e comunidade literária em
Roberto Bolaño 28
3.1.1. O narrador de Estrella Distante: Belano ou Bolaño? 28 3.1.2. O que Carlos Wieder revela sobre Arturo Belano? 37 3.1.3. Pelos «talleres de poesía» de Estrella Distante 46 3.1.4. O diário de García Madero em Los Detectives Salvajes ou
“anotações sobre mexicanos perdidos no México” 53 3.1.5. Sobre o Real Visceralismo: uma comunidade possível? 64
3.2. Que escritor sou eu? Da enfermidade literária à morte do Autor: a trajetória dos narradores de Enrique Vila-Matas 83 3.2.1. Rosario Girondo e Andrés Pasavento: escritores à beira da loucura 83 3.2.2. El mal de Montano e Doctor Pasavento: identidades em crise
ou autoficção? 113
4. Conclusões 127
1
1. Introdução
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas são exemplos de escritores
contemporâneos que obtiveram boa aceitação tanto do mercado quanto da academia. De
jornais a periódicos especializados, de grandes prêmios literários às prateleiras de
best-sellers, seus nomes fazem-se presentes. Autores de um número considerável de livros,
todos publicados em um curto período de tempo da década de 90 até 2012, somando-se apenas romances e livros de contos, foram publicados 15 títulos de Bolaño (incluindo
obras póstumas) e 18 de Vila-Matas , ambos apresentam uma literatura sobre a literatura. Amigos em vida, o escritor chileno e o espanhol se tornaram um rico e
importante corpus para a Literatura Comparada.
Ainda que muito estudados no Brasil e no exterior, são poucas as análises
voltadas à comparação de suas poéticas, prevalecendo pesquisas focadas ou nos textos
de Bolaño ou nos de Vila-Matas. Nas leituras comparadas que tratam das narrativas de
ambos, nota-se a predominância de uma abordagem abrangente, por meio da qual os
escritores surgem associados a outros nomes da narrativa latino-americana ou espanhola
contemporânea, como Sergio Pitol, Javier Marías, e outros.
Nesse cenário, a Dissertação de Mestrado de Antônio Carlos Silveira
Xerxenesky, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendida em
2012 sob o título “A literatura rumo a si mesma: Roberto Bolaño e Enrique
Vila-Matas”, revelou-se um estudo pioneiro no país. Assumidas as potenciais similaridades
entre o trabalho de Xerxenesky e esta proposta, vale mencionar que se entende como
positiva (e produtiva) a divergência observada entre o corpus fundamental das duas
análises, visto que Xerxenesky parte de livros que podem ser classificados como
2
compañía (2000), de Vila-Matas, enquanto que esta pesquisa atenta-se a narrativas
facilmente associáveis ao gênero romance.
No que concerne a esta Dissertação, a escolha dos dois autores origina-se de
resultados obtidos em estudos anteriores. A partir da Monografia de Final de Curso
intitulada “Um passeio pela poética de Roberto Bolaño: a definição de literatura e do
ofício de escritor a partir do poema ‘Los Neochilenos’”1, defendida em 2011,
desenvolveu-se no fim do mesmo ano um projeto de Iniciação Científica de curta
vigência (Processo Fapesp nº 2011/06503-9), visando uma leitura comparada de caráter
introdutório dos textos de Bolaño e Vila-Matas2. As conclusões dessa breve pesquisa
destacavam muitos pontos passíveis de serem aprofundados, os quais serviram de base
para a presente proposta.
Não é difícil para um leitor das obras desses escritores compreender a
justificativa para tal comparação. Tanto o chileno quanto o catalão utilizam a literatura
como alicerce para suas histórias, destacando-a como fio condutor, tema e/ou
personagem. Um leitor mais assíduo, não restrito apenas aos textos ficcionais, em algum
momento se depararia com os próprios autores declarando (e/ou ironizando) essa
proximidade: “De hecho, me siento muy cercano a toda la obra del escritor chileno. Es
posible incluso que sea el escritor que más se parece a mí, o viceversa”
(VILA-MATAS, 1999, p. 74).
A pertença de ambos ao universo metaliterário é, portanto, frequentemente
reconhecida e reafirmada pela crítica, mas ainda carece de um olhar mais detalhado,
1
O trabalho encontra-se disponível para download na Biblioteca Digital da UNICAMP, no seguinte endereço: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=48537&opt=1>.
2
Parte dos resultados obtidos nessas pesquisas foi apresentada no XIX Congresso Interno de Iniciação Científica da UNICAMP (26/10/2011 a 27/10/2011) sob o título “Literatura, viagem e enfermidade: um passeio pela poética bolañiana”, trabalho este premiado com Menção Honrosa pelo Comitê Científico do evento (PIBIC/Pró-Reitoria de Pesquisa da UNICAMP).
3
principalmente no que tange à análise do papel desempenhado pela figura do escritor
em suas narrativas. Partindo da premissa de que “la figura del escritor no es un asunto,
es el dispositivo que gobierna la escritura, también en la dimensión del trazado de su
estructura” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 180), esta Dissertação pauta-se pelas
seguintes perguntas:
• Qual é o perfil dos escritores retratados por Bolaño e Vila-Matas? Há algo em comum entre eles?
• O que esses personagens pensam ou declaram a respeito da literatura e do ofício de escritor?
• Em relação a seus papéis dentro dos romances escolhidos, seria esse tipo de personagem um elemento formal privilegiado para se estabelecer, problematizar e/ou se ressaltar a relação entre autobiografia e ficção, conforme prevê, atualmente, uma considerável parte da crítica, ou tal proximidade entre autor e personagem-escritor teria outras implicações de ordem estética, como a acentuação da porosidade entre a crítica do escritor (ou a exposição de sua experiência literária) e sua ficção?
A fim de esboçar possíveis respostas, esta pesquisa conta com um corpus
composto de quatro obras: Estrella Distante (1996) e Los Detectives Salvajes (1998), de
Roberto Bolaño, e El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), de Enrique
Vila-Matas. Esses romances, além de configurarem-se importantes títulos na trajetória
de seus respectivos autores, têm em comum o fato de serem protagonizados por
personagens cujas vidas são conduzidas a partir de suas relações com o ofício de
escritor. Em termos gerais, nota-se que o perfil de escritor presente nesses e em outros
livros de Bolaño tende a recuperar a imagem do escritor jovem, boêmio e marginal,
pertencente à América Latina das décadas de 70 a 90, enquanto que Vila-Matas,
4
apresenta, usualmente, escritores em busca de uma identidade que fora perdida ao se
alcançar o prestígio quase nunca experimentado pelos personagens bolanianos. Trata-se,
portanto, de personagens antagônicos quanto ao ambiente (marginalidade versus
institucionalidade) e aos resultados perante o ofício de escritor (fracasso versus
reconhecimento).
Ao se reconhecer que na literatura contemporânea em espanhol muitos
caminhos levam a Borges, é possível concluir de antemão que o aspecto metaliterário do
universo ficcional de Bolaño e Vila-Matas não constitui um fato totalmente inovador isso para não citar a metaficção já presente em Dom Quixote, de Cervantes, ou em
Tristam Shandy, de Sterne. É notório o diálogo entre suas poéticas e a
metaliteratura/metaficção comumente associada não apenas a Borges, mas a autores
mais recentes, como o também argentino Ricardo Piglia e o espanhol Javier Cercas ou,
para citar exemplos nacionais, os brasileiros Osman Lins e Silviano Santiago. Trata-se
de escritores pertencentes a um universo ficcional voltado à tematização do literário sendo “tema” aqui entendido como um elemento de “função estruturante, que ordena,
gera e permite produzir o texto” (MACHADO & PAGEAUX, 2001, p. 90) , do qual se originam textos marcados por uma “(pseudo)referencialidad autófaga-textual”
(CAMARERO, 2004, p. 46), uma referencialidade que transita do plano do
real/imaginário para o plano do signo, conforme sugere Jesús Camarero em
Metaliteratura. Estructuras formales literarias (2004). Ou, fazendo uso das palavras de
Linda Hutcheon, “ficções sobre ficções”, “that is, fiction that includes within itself a
commentary on its own narrative and/or linguistic identity” (HUTCHEON, 1991a, p. 1).
No que se refere ao foco desta pesquisa, cabe ressaltar um especial interesse
por elementos/construções metaficcionais que deem destaque ao retrato de instâncias
5
seus posicionamentos políticos e/ou outros compromissos semelhantes. Nota-se,
inclusive, que os dois romances de Bolaño estudados nesta Dissertação afastam-se dessa
inscrição quase exclusiva ao plano do signo destacada por Camarero, o que explica a
inexistência, nessas narrativas, de reflexões acerca da própria ficção/de seu processo de
escrita. Ao contrário, predomina nos enredos do chileno precisamente esse olhar global
(/externo) ao ofício de escritor (descrição da trajetória profissional do
personagem-escritor, destaque à sua formação e às suas preferências literárias etc). Vila-Matas, por
sua vez, alterna-se entre as duas perspectivas, isto é: retrata com veemência tais esferas
“extraliterárias” ao mesmo tempo em que familiariza o leitor com comentários sobre a
própria construção dos textos.
Essa diferença entre o que seria a metaficção desenvolvida por Bolaño e a
desenvolvida por Vila-Matas coloca em relevo um aspecto comum a qualquer estudo
comparatista: as notórias similaridades entre duas ou mais poéticas acabam por ressaltar
também suas respectivas discrepâncias. De fato, em contraposição a Bolaño, há na
poética de Vila-Matas uma constante necessidade de se discorrer sobre a obra em
andamento em síntese, é desenvolvida uma “(...) auto-referencia a un texto que se está haciendo mientras lo leemos” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 179).
Em Nascissistic Narrative: the Metaficcional Paradox, livro publicado em
1980 por Linda Hutcheon, pesquisadora focada no estudo da atual “consciência formal
na arte”, esse tipo textual é discutido a partir do conceito de “narrativa narcisista”, sendo
o adjetivo uma referência ao caráter especular da narrativa e não a seus respectivos
autores. O “paradoxo” presente no título de sua obra faz referência à condição do leitor
ante um texto metaficcional: trata-se de um tipo de narrativa que força o leitor a
afastar-se do texto, exigindo que este reconheça afastar-seu estatuto artístico, ao mesmo tempo em que
6
sua vez, é descrito da seguinte forma: “the text’s own paradox is that it is both
narcissistically self-reflexive and yet focused outward, oriented toward the reader”
(ibid., p. 7).
Aproximando-se das categorias propostas por Hutcheon3, Vila-Matas
dialogaria com a metaficção que a pesquisadora classifica como “diegeticamente
autoconsciente”, ou seja, uma metaficção pautada, sobretudo, em uma consciência
narrativa esboçada por meio de comentários dirigidos ao leitor e/ou explicações acerca
da construção do texto4. Servem de exemplo as insistentes declarações de desconforto
do narrador de El mal de Montano (2002) sobre a proximidade de seu diário com as
formas do romance: “Viajé a Chile un día antes de que acabara el siglo y fui a ese país
sin este diario que se estaba volviendo novela (...)” (VILA-MATAS, 2002, p. 40); “Me
he dicho que había llegado la hora de ponerle un poco de actualidad a este diario y que
éste no se pareciera tanto a una novela” (ibid., p. 53). Ou também os questionamentos
de Doctor Pasavento, ao repensar sua condição de escritor na obra homônima:
Creo que no debo hablar eternamente como si fuera ese tipo de narrador moderno que tantas veces escribe desde una ciudad sin nombre. Ya terminó el tiempo en que las novelas, cuanto más
3
Linda Hutcheon apresenta em seu estudo posterior A poetics of postmodernism: history, theory, fiction, publicado em 1987, uma nova categoria de metaficção, as “metaficções historiográficas”, romances que “instalam, e depois indefinem, a linha de separação entre a ficção e a história” (HUTCHEON, 1991b: 150).
4
Em Nascissistic Narrative: the Metaficcional Paradox, Linda Hutcheon destaca duas principais modalidades metaficcionais: as supracitadas metaficções diegeticamente autoconscientes e as
metaficções linguisticamente autorreflexivas, sendo estas menos vinculadas a uma consciência
narrativa e mais a um jogo linguístico que ressalta a obra (e seus limites) enquanto signo/linguagem. No decorrer do livro, Hutcheon discorre minuciosamente sobre a possibilidade de ambas as categorias desenvolverem-se de modo explícito ou implícito, expandindo suas classificações, apresentando assim subdivisões que, por ora, extrapolam os fins desta Introdução. Com base na linha tênue que define as classificações da autora, pode-se concluir que Borges serve de exemplo para os dois tipos de metaficções: aproxima-se do primeiro caso ao inserir, em meio às narrativas, comentários como os que introduzem e encerram “Tema del traidor y del héroe”(1994) – exemplo repetidamente citado pela própria pesquisadora –, e dialoga com o segundo através de descrições como as presentes em “La Biblioteca de Babel” (1941), carregadas de símbolos linguísticos e figuras de linguagem. Aqui, dá-se destaque à primeira modalidade por se tratar do ponto que, por vezes, aproxima a estrutura narrativa de Vila-Matas a de Borges.
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artísticas eran, más llenas estaban de personajes que llegaban a ciudades que no tenían nombre. No, ya basta. Yo no estoy escribiendo aquí una novela, pero siento la misma responsabilidad que si la estuviera escribiendo (VILA-MATAS, 2005, p. 57).
Com base nessas considerações e nos trechos acima citados, percebe-se o
tipo de vínculo que a escrita de Vila-Matas estabelece com a metaficção. Entretanto, é
preciso ter em conta que um olhar global aos elementos fundadores de sua poética faz
emergir uma advertência: embora presente, essa atenção dada ao processo de leitura e
de escrita nas ficções de Vila-Matas divide um importante espaço com as frequentes
reflexões acerca da identidade do escritor que marcam suas histórias. Em outras
palavras, a leitura dos dois romances do espanhol permite notar que a ideia de uma
“obra haciéndose” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 179) dá constantemente lugar, em
seus enredos, à representação de um “escritor haciéndose”, de um personagem-escritor
que busca e/ou questiona a si mesmo, motivo pelo qual suas narrativas, dialogando
novamente com as de Bolaño, configuram-se um amplo retrato de diferentes instâncias
do cenário literário contemporâneo, não se limitando a uma reflexão restrita ao plano do
signo nos romances do chileno a ideia de um “escritor haciéndose” pode ser associada tanto ao retrato dos caminhos percorridos por seus personagens para
tornarem-se escritores, quanto à gradual descoberta (feita, concomitantemente, pelo
narrador e pelo leitor) das personalidades e biografias dos “escritores-enigmáticos” que
marcam muitas de suas histórias, como o poeta-assasino Carlos Wieder, de Estrella
Distante (1996), e a poetisa mexicana desaparecida Cesárea Tinajero, de Los Detectives
Salvajes (1998).
Antes de dar início à análise aprofundada desses e de outros
personagens-escritores de Bolaño e de Vila-Matas, faz-se necessário mencionar que, ao ter como
8
contemporâneos atentos ao que se revelaria nos dias de hoje um possível “retorno do
Autor”, dada a frequente presença da figura do escritor nas narrativas contemporâneas. Trata-se de pesquisas que têm reavivado discussões acerca do papel e do lugar da
entidade narrativa, do nome de assinatura na capa do livro, da imagem pública do
escritor etc. Como esclarece Linda Hutcheon, tal “retorno” não deve ser interpretado
como uma recuperação da concepção romântica de autor, que o reconhece como o
portador e a origem de todo o significado, mas como uma reaparição atrelada a certo
reposicionamento de sua figura no ato de enunciação:
The Romantic “author”, as originating and original source of meaning may well be dead, as Roland Barthes argued years ago, but his position – one of discursive authority - remains, and increasingly is the focus of much contemporary literature and also much theoretical debate. (...) In today’s metafiction, the artist reappears, not as a God -like Romantic creator -, but as the inscribed maker of a social product that has the potential to participate in social change through its reader. (...) No longer to believe in the manipulating “author” as a person is to restore the wholeness as the act of the énonciation: the “author” becomes a position to be filled, a role to be inferred, by the reader reading the text (HUTCHEON, 1991a, pp. xv-xvi).
Em seu famoso ensaio de 1967, “A morte do Autor”, Barthes defende
fundamentalmente que “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor”
(BARTHES, 1988, p. 70). Em sua concepção, “o escritor moderno nasce ao mesmo
tempo em que o seu texto” (ibid., p. 68), de modo que, com o fim do “império do
Autor”, desde Mallarmé, sua figura não mais serviria de explicação ou assumiria a
função de origem da obra. Trata-se, linguisticamente, do emergir de um sujeito da
enunciação em detrimento do reconhecimento da pessoa do autor (67). Foucault, por
outro lado, com “O que é um autor?” (1969), chama a atenção para a “função autor”,
alegando que o nome do autor, não sendo “exatamente um nome próprio como os
outros” (FOUCAULT, 2006, p. 273) visto que “mais do que uma indicação equivale a uma descrição” (ibid., p. 272) , é dotado de uma função discursiva. Segundo sua
9
visão, não se trata de resgatar sua figura como a origem do texto, mas de aceitá-la como
um complemento do discurso, uma vez que “o anonimato literário não é suportável para
nós” (ibid., p. 276). Conforme sugere a citação de Hutcheon, a hipótese de um “retorno
do Autor” através das/nas ficções contemporâneas não aponta para a recuperação do
autor como um “deus”, mas parece fundamentar-se tanto no reforço do caráter
performativo da escrita já assinalado por Barthes, quanto em um constante jogo com as
diferentes instâncias da “função autor” defendida por Foucault. Como resultado desse
“fenômeno”, multiplica-se na atualidade um tipo de romance, geralmente híbrido, que
aposta simultaneamente em estratégias que obscureçam os contornos e limites da voz
narrativa, fragmentando-a, e em elementos que a associem ao seu maior referente
externo, a pessoa do autor.
Recorrendo novamente a Borges, tem-se com o texto “Borges e yo” (1960)
um exemplo claro dessa condição por vezes paradoxal da voz narrativa na literatura
contemporânea. A oposição de um “eu” narrador a um “outro” chamado Borges
apresenta uma voz narrativa que “nasce”, fazendo uso do termo de Barthes, junto com o
texto, ao mesmo tempo em que se observa uma referência à bagagem extratextual que o
nome Borges carrega consigo, visto que, segundo Foucault, o nome de um autor
“manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discursos, e refere-se ao status desse
discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura” (FOUCAULT, 2006, p. 273).
O excerto abaixo esclarece que, longe de uma menção gratuita, o “Borges” descrito
sugere uma referência à imagem pública/mítica do escritor argentino, a uma imagem
construída/encenada que o aproxima da figura do ator; trata-se do escritor que está nos
dicionários em contraste ao escritor que é apenas o “eu” de um texto, o “eu”
10
Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica (BORGES, 1996, p. 186)5.
A exemplo de Borges, também Bolaño e Vila-Matas optam por brincar com
as fronteiras que, a princípio, separam a pessoa do autor de sua voz narrativa e de seus
personagens, ainda que o façam de modo menos incisivo que o argentino. Os jogos
narrativos usualmente desenvolvidos pelos dois escritores tendem a tratar questões
relacionadas à figura autoral de forma mais sutil, afastando-se, com frequência, da
acentuada e declarada autoconsciência que rege “Borges y yo”. Mesmo nos contos em
que Bolaño faz menção a seu nome próprio os quais são brevemente discutidos na próxima subseção , ele o faz a fim de, discretamente, identificar/nomear a um dado personagem e não para dar início a um denso discurso autorreflexivo dentro de sua
ficção. No entanto, ao se considerar o advento da internet nas últimas décadas, somado
à crescente espetacularização promovida pela indústria editorial na contemporaneidade,
percebe-se que Bolaño e Vila-Matas vivenciam com ainda mais intensidade que Borges
as consequências (literárias e de outra ordem) da exposição e da exaltação da figura
pública do escritor, estas já tão bem ironizadas pelo argentino em 1960. Trata-se de
autores muitas vezes “assombrados” pelo maior referente externo de seus textos (a
pessoa/ o nome do autor), dada a rápida e recorrente propagação de informações
(verídicas ou inventadas) divulgadas a respeito de suas biografias e de seus textos.
5
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Sabe-se que nos dias de hoje não são raras as ocasiões em que o leitor
conhece em detalhes a vida e personalidade de um determinado autor. Barthes já
criticara em “A morte do autor” (1967) a exacerbada importância conferida à “pessoa”
do autor, de modo que junto ao anúncio de sua “morte”, pretendido por seu ensaio,
vê-se a admissão de que a figura do escritor ainda reinava “nos manuais de história
literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria
consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário intimo, a pessoa e a
obra” (BARTHES, 1988, p. 66). Trata-se de um fenômeno não apenas igualmente
válido para a atualidade, mas que vem sofrendo um gradual agravamento desde a
década de 70, período imediatamente posterior à publicação de “Borges y yo”. Junto a
um bom êxito de vendas, os escritores, incluindo Bolaño e Vila-Matas, deparam-se com
uma proporcional participação em eventos e feiras literárias, além de diversos convites
para entrevistas (para TV, jornais, revistas e internet) etc. Como bem assinala Alberca
(2007, pp. 24-25), ao deixar para trás a posição de relevância e prestígio social do
século XIX, o escritor perde seu caráter heroico e passa a ter um valor mercantil, que,
paradoxalmente, o coloca em evidência ao mesmo tempo em que o “democratiza”,
tornando-o uma figura “banal”.
Atenta ao atual alcance dos “gêneros biográficos midiáticos” (blogs,
entrevistas, redes sociais, entre muitos outros), Leonor Arfuch (2010, p. 15) faz uso do
termo “espaço biográfico” para referir-se tanto a modelos biográficos clássicos quanto
a gêneros discursivos atuais, muitos deles relacionados à indústria cultural; em sua
opinão, trata-se de “um espaço comum de intelecção dessas diversas narrativas” (ibid.,
p. 37). Defendendo, em diálogo com Bakhtin, a impossibilidade de identificação entre
“autor e personagem, nem mesmo na autobiografia, porque não existe coincidência
12
formulações de Lejeune e Starobinski e justifica a importância de se pensar os gêneros
biográficos na contemporaneidade a partir do conceito de “espaço biográfico” em
detrimento de modelos narrativos e pactos de leitura rígidos:
Na impossibilidade de chegar a uma fórmula “clara e total”, de distinguir com propriedade, para além do “pacto” (de Lejeune) explicitado, entre formas auto e “heterodiegéticas”, entre, por exemplo, autobiografia, romance e romance autobiográfico, o centro das atenções se deslocará então para um espaço biográfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes de um ou outro registro, o “verídico” e o ficcional, num sistema compatível de crenças. Nesse espaço, podemos acrescentar, com o treinamento de mais de dois séculos, esse leitor estará igualmente em condições de jogar os jogos do equívoco, das armadilhas, das máscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbações de identidade que constituem topoi já clássicos da literatura (ARFUCH, 2010, p. 56).
Os apontamentos de Arfuch sobre a entrevista midiática, gênero
privilegiado ao longo de sua análise, fornecem bons subsídios para o entendimento do
contexto ao qual Bolaño e Vila-Matas pertencem. Nas palavras da pesquisadora, “entre
os territórios biográficos que a entrevista conquistou, há um privilegiado: o dos
escritores (...), aos quais, paradoxalmente, se solicita um suplemento de outra voz”
(ibid., p. 209). Em síntese, nota-se uma correlação entre perguntas de cunho profissional
e íntimo que tendem à “construção compartilhada de uma narrativa pessoal” do
entrevistado (212), necessária, por sua vez, à configuração (mercadológica) da imagem
pública (ou mito) do autor. Ao buscar por esta “outra voz”, a entrevista hoje seria
caracterizada pela tentativa de se conhecer o “além da obra”. Com base nesses pontos,
Arfuch discorre sobre o porquê de a entrevista nada assegurar quanto à identidade do
escritor, ainda que esteja atualmente imersa em um espaço biográfico:
Como em qualquer tipo de entrevista, e por mais especializada que seja, haverá uma construção recíproca do personagem, entrevistador e entrevistado, uma apresentação muito cuidadosa de si - não em vão são compartilhados um saber sobre o poder e a significação do dizer e do mostrar -, uma previsível barreira interposta entre narração e
13
intimidade, mesmo quando abundam anedotas (ARFUCH, 2010, p. 217).
O caso de Bolaño e Vila-Matas serve de exemplo para muitas das
observações feitas por Arfuch. O conhecimento, tanto por parte dos leitores quanto por
parte dos críticos e pesquisadores, dos eventuais pontos de contato existentes entre as
experiências biográficas de ambos e alguns episódios de suas narrativas tem como
principal fonte as declarações proferidas (ou as “narrativas pessoais construídas”) em
entrevistas:
- ¿Has formado parte de algún grupo poético semejante al «real-visceralismo» de Los detectives salvajes?
RB: Sí, sí. El infrarrealismo. Mario Santiago, un poeta mexicano, y yo lo fundamos en México, en el año 74 o 75, ya no me acuerdo. Que es lo que está detrás del real-visceralismo de Los detectives salvajes. El infrarrealismo. Que fue un movimiento totalmente dadaísta, anarquista, y con el que nos divertimos como chinos. Editamos revistas, como Correspondencia Infra, Rimbaud, vuelve a casa, y cosas así (Bolaño apud GRAS MITAVET, 2000, p. 55).
- Precisamente, a partir de la publicación de Los detectives salvajes, el lector de tus novelas suele considerar el personaje Arturo Belano como un alter ego tuyo, ¿aceptas esta lectura, consideras Arturo Belano como una de tus máscaras?
RB: En cierta forma. Es un alter ego en el sentido de que hay cosas que le pasan a él que a mí me han ocurrido. Pero en otros casos, no, por supuesto. Como cualquier alter ego. Es decir, un alter ego es lo que uno querría ser, pero también es lo que uno se ha salvado de ser. Yo me salve de ser Arturo Belano, y hubiera querido ser también en algún otro momento Arturo Belano. Por lo demás, muchísimas cosas en común (ibid., p. 62).
Diferentemente de Bolaño, que reage com naturalidade frente a perguntas
que buscam verificar um suposto contato entre ficção e realidade, Vila-Matas revela
certo incômodo quando confrontado à mesma espécie de indagação:
(...)
VM: Ahora que lo pienso: siempre que termino una novela, las preguntas de los periodistas giran alrededor de si me ha ocurrido o no aquello que escribí.
14 - ¿Es muy pesado eso?
VM: Sí, casi que dejarías de escribir para no tener que contestar esa pregunta (risa). ¿Y si hubiera pasado de verdad, qué? Hay una escritora amiga de Franzen que a esa pregunta siempre dice que hay en su novela un 17 por ciento de autobiográfico. En las mías el porcentaje se eleva al 27, que es un número shandy (Vila-Matas apud MERUANE, 2013, s/p).
Os excertos recuperados indicam a necessidade de se observar em que
medida a exposição midiática de Bolaño e de Vila-Matas pode exercer influência na
leitura de suas obras. A inscrição desses escritores no chamado “espaço biográfico”
implica em um alerta de cautela em relação a leituras que visem comparar os autores a
seus personagens-escritores, de modo a se evitar que suas declarações públicas
funcionem como uma espécie de prova de verificabilidade.
Partindo, portanto, da hipótese de que o personagem-escritor surja como o
principal elemento desencadeador de tais discussões em torno do referido “retorno do
Autor”, configurando-se uma das origens/justificativas para essa revisão do papel e do
lugar do autor e da mídia no cenário literário, bem como dos contornos da relação da
obra com seu exterior na contemporaneidade, espera-se que a análise aprofundada desse
tipo de personagem forneça subsídios não apenas para um melhor entendimento das
narrativas de Bolaño e Vila-Matas, mas que contribua tanto para os debates vigentes
quanto para o estudo da figura do escritor em romances de outros escritores
contemporâneos.
O título dado a esta Dissertação, “Autobiografia, crítica e ficção: o
personagem-escritor em Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas”, anuncia o caminho de pesquisa percorrido. Ainda que os dois escritores sejam analisados separadamente na
seção “3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas”, e comparados de
forma mais direta em “4. Conclusões”, busca-se desenvolver em ambos os casos uma
15
a seus personagens-escritores, bem como ao tom ensaístico e ao retrato do campo
literário esboçado a partir desse veemente destaque dado ao ofício de escritor. No que
tange especificicamente à questão da presença da (auto)biografia de Bolaño e de
Vila-Matas nas narrativas escolhidas, julga-se necessário dar atenção à atual e recorrente
associação de suas poéticas à denominada «autoficção», por se tratar de um artifício
diretamente vinculado ao papel exercido pelo personagem-escritor. Parte-se da premissa
de que classificar um texto como autoficcional significa atribuir, muitas vezes e na
mesma medida, um papel pré-determinado ao personagem-escritor, isto é, o papel de
identificação/rememoração do respectivo autor/de sua (auto)biografia. Devido a isso,
expõem-se na seção “2. O personagem-escritor e a «autoficção»” os pressupostos
teóricos que norteam a perspectiva aqui adotada, e que, portanto, regem a abordagem
feita ao longo da análise dos romances.
Vale mencionar, por ora, que, em detrimento de propostas que deem
demasiada importância à presença da autobiografia na narrativa contemporânea, esta
análise converge para um diálogo com perspectivas teóricas da produção literária
latino-americana recente, que repensam a relação da obra com seu exterior na atualidade por
outros caminhos, que não a autoficção. Ao encontro das ideias de Ana Cecilia Olmos,
interpreta-se o hibridismo de gêneros observado nos quatro romances escolhidos como
uma “transgressão” associada a “políticas de escritura contemporâneas que arriscam
formas estéticas críticas” (OLMOS, 2011, p. 12), as quais assumem a ficção como “un
espacio propicio para poner en escena el diálogo entre la palabra creativa y la reflexión
crítica sobre ella” (OLMOS, 2009, p. 7).
Em seu artigo “Discursos de la subjetividad: La crítica de los escritores”
(2007, p. 43), Olmos chama a atenção para três estratégias que permitem identificar a
16
evoca el universo de las ficciones”, (2) “la ficción hace del discurso crítico su
materia narrativa” e, por fim (3) “el discurso crítico asume su condición ficcional”. Enquanto em suas abordagens há o predomínio de um olhar às ocorrências (1) e (3) na
literatura latino-americana contemporânea, em textos de autoria da chilena Diamela
Eltit, do argentino Luis Gusmán e do brasileiro Osman Lins, este estudo associa a
Bolaño e Vila-Matas a estratégia (2), dando destaque à seguinte questão: qual é a
importância do perfil, da postura, e dos testemunhos e devaneios dos
personagens-escritores das narrativas de Bolaño e Vila-Matas enquanto “operadores” (ou instâncias)
do discurso crítico na ficção? Ou, à luz de José María Ponzuelo Yvancos (2010, p. 30),
o que essa “voz reflexiva”, “que comúnmente conocemos asociada al ensayo”, e que
atualmente é cedida pelos autores a seus narradores, tem a dizer?
Com base nessas formulações, busca-se elucidar o porquê da advertência de
que se tratando de Bolaño e Vila-Matas, dado o lugar sempre reservado ao
personagem-escritor, é tênue a linha que separa um possível “falar de si” de um “falar de/sobre
17
2. O personagem-escritor e a «autoficção»
6Roberto Bolaño Ávalos nasceu em 1953, em Santiago do Chile, viveu sua
adolescência no México e regressou a seu país de origem no ano do Golpe Militar
(1973), com o propósito de apoiar os ideais socialistas do presidente Salvador Allende.
Após ser preso devido à sua atuação junto à Unidade Popular, retornou ao México, de
onde partiria definitivamente para a Espanha, em 1977. Na mesma década, antes de
mudar-se para a Europa, fundara junto ao poeta Mario Santiago o Movimento
Infrarrealista, um “dadá à la mexicana” segundo palavras do escritor chileno. Embora o
fracasso do grupo tenha sido rapidamente assumido, ele é mantido até hoje por alguns
de seus ex e novos membros, conforme indica a web site oficial do Infrarrealismo7.
Bolaño publicou seu primeiro livro, Consejos de un díscipulo de Morrison a
un fanático de Joyce, em 1984, em coautoria com o espanhol A. G. Porta. Antes dessa
data é possível encontrar publicações isoladas em periódicos, desde poemas e
manifestos literários até artigos críticos. A parte mais significante de sua produção
centra-se em seus últimos dez anos de vida, de 1993 a 2003, com destaque para um dos
romances analisados nesta Dissertação, Los Detectives Salvajes (1998), pelo qual o
autor recebeu em seu ano de publicação o “Premio Herralde” e no ano seguinte o
“Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos”, inscrevendo-se definitivamente
entre os nomes mais importantes da prosa contemporânea em língua espanhola. Desde
sua morte, decorrente de um problema hepático, publicaram-se três romances póstumos,
em parte inacabados, 2666 (2004a), El tercer Reich (2010) e Los sinsabores del
6
O presente capítulo deu origem ao artigo “Todo lo cercano se aleja. Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas, da autoficção ao espaço biográfico”, aceito pela revista portuguesa Diacrítica (Braga) para compor um dossiê especial sobre Literatura em Língua Espanhola, a ser publicado no número correspondente ao ano de 2014, ainda no prelo. Trata-se de um texto que aborda/sintetiza parte da discussão desenvolvida ao longo pesquisa, composto, inclusive, por alguns excertos e argumentos desconsiderados na versão final da Dissertação.
7
18
verdadero policía (2011). De acordo com pessoas próximas, Bolaño intensificou seu
trabalho ao descobrir a doença, a fim de garantir a estabilidade financeira de sua família.
Nascido em Barcelona em 1948, Enrique Vila-Matas possui uma biografia
consideravelmente distinta à de Bolaño. Distante dos problemas financeiros enfrentados
pelo autor chileno durante toda a vida, o espanhol cursou Direito e Jornalismo, esteve
na África cumprindo com o serviço militar obrigatório, e residiu fora de sua cidade natal
apenas por dois anos, durante a década de 70, período em que viveu em Paris. Suas
primeiras publicações foram Mujer en el espejo contemplando el paisaje (1973) e La
asesina ilustrada (1977), sendo a primeira pouco comentada e não reconhecida pela
crítica, e a segunda a estreia do caráter metaficcional que permearia muitos textos
futuros do escritor. Já Historia abreviada de la literatura portátil (1985) é tido como
seu livro de consagração. Com El viaje vertical (1999), seu único romance de vertente
mais realista, Vila-Matas é também agraciado com o “Premio Internacional de Novela
Rómulo Gallegos”. Embora nunca tenha morado no continente americano, o autor
declara ter grande afinidade com sua literatura.
Vila-Matas mantém atualmente uma média de publicação de dois livros por
ano. Entre suas produções, destacam-se Bartleby y compañía (2001), El mal de
Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), eleitas sua “Catedral Metaliteraria” pelo
editor espanhol Jorge Herralde. Seus últimos romances, como Dublinesca (2010) e Aire
de Dylan (2012), indicam que Vila-Matas continua seguindo pelo mesmo caminho,
mantendo o escritor, a escrita e o leitor como alicerces de seus enredos.
Um breve olhar às biografias dos autores é suficiente para se constatar que
muitos episódios de suas vidas fazem-se presentes nas narrativas. A sequência de
romances Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998) e Amuleto (1999)
19
autor chileno: da prisão após o Golpe Militar a suas passagens pelo México, da
fundação de um movimento de poesia marginal à sua doença hepática, muito do escritor
é emprestado a seu alter ego. Vila-Matas, por sua vez, distribui entre seus narradores, a
maior parte deles nascidos em Barcelona, em 1948, muitas das lembranças de sua estada
em Paris, além de inseri-los frequentemente em conferências/eventos literários
efetivamente ocorridos e vinculá-los a nomes de pessoas reais, como, por exemplo, ao
mencionar a falta que o narrador de Doctor Pasavento (2005), Andrés Pasavento,
declara sentir por Bolaño: “(...) pensé en la intensidad de la ausencia, desde hacía medio
año, del escritor Roberto Bolaño, que, tres semanas antes de morir, a finales de junio, se
había reunido com escritores latinoamericanos en el Monasterio de La Cartuja de
Sevilla” (VILA-MATAS, 2005, pp. 84-85).
A análise mais minuciosa desse uso da realidade para compor a ficção
permite notar que tais episódios pessoais, geralmente relatados em suas entrevistas,
alcançam esferas ainda menos conhecidas pelos leitores, entre eles o fato de Bolaño ter
sido funcionário de um camping na Espanha e de Vila-Matas ir com frequência a
Portugal, bem como assumir grande afetuosidade pelo país. Na segunda parte de Los
Detectives Salvajes (1998), no depoimento da inglesa Mary Watson sobre Belano,
tem-se um relato referente aos dias em que ela e tem-seus amigos hospedaram-tem-se no camping
onde o protagonista trabalhava; já nos romances de Vila-Matas, incluindo os dois
analisados nesta Dissertação, os narradores viajam com frequência para cidades
portuguesas intimamente conhecidas pelo escritor.
Em suma, a partir das breves ocorrências aqui listadas, entre outras
possíveis, comprova-se que os dois autores servem-se de traços autobiográficos para
compor o perfil de seus personagens-escritores. Eis a origem da associação de seus
20
vanguardistas, pertencentes à América Hispânica dos anos 70, Bolaño parece, por vezes,
discorrer sobre sua própria história tem-se como claro exemplo a notória proximidade entre o Movimento por ele fundado, o Infrarrealismo, e o Real
Visceralismo retratado em Los Detectives Salvajes (1998). Vila-Matas, por outro lado,
contextualizando seus enredos nos dias atuais e no continente europeu, apresenta por
meio de seus protagonistas a imagem de um escritor de condição semelhante à
experimentada por ele atualmente: um autor já maduro e consagrado, dividido entre a
escrita e os compromissos e deveres profissionais inerentes a ela.
A palavra “autoficção” surge pela primeira vez no romance Fils, publicado
em 1977 pelo escritor e crítico literário francês Serge Doubrovsky. Desde então, muitas
são as tentativas de definição por parte da academia, principalmente com base em
análises centradas em questões de ordem estética.
Al contrario de la autobiografía, explicativa y unificante, que quiere recuperar y volver a trazar los hilos de un destino, la autoficción no percibe la vida como un todo. Ella no tiene ante sí más que fragmentos disjuntos, pedazos de existencia rotos, un sujeto troceado que no coincide consigo mismo (Doubrovsky 1977 apud POZUELO YVANCOS, 2010, p. 12)8.
Ciente do predominante interesse da academia pelo assunto, o pesquisador
espanhol José María Pozuelo Yvancos, em Figuraciones del yo en la narrativa. Javier
Marías y Enrique Vila-Matas (2010), chama a atenção para o contexto de publicação do
livro de Doubrovsky, Paris dos anos 70, em detrimento de uma leitura exclusivamente
formal/estrutural do neologismo, destacando assim pontos ocasionalmente ignorados
pelos estudiosos do tema. Em primeiro lugar, o pesquisador ressalta o fato de o termo
“autoficção” aparecer poucos anos após Le pacte autobiographique, de Philippe
Lejeune, texto publicado originalmente em 1973, que na ocasião definira a
8
21
autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 15)9. Em seguida, Pozuelo Yvancos
relembra também a publicação, em 1975, da controversa e famosa autobiografia de
Roland Barthes [“uno de los maestros de Doubrovsky” (POZUELO YVANCOS, 2010,
p. 14)], intitulada Roland Barthes par Roland Barthes, uma autobiografia recheada de
fotografias, e estruturalmente fragmentária, anacrônica e em terceira pessoa, muito
distante, portanto, do modelo formulado por Lejeune. Por fim, encerrando sua síntese
do contexto no qual Serge Doubrovsky encontra-se ao escrever e publicar Fils, o
espanhol cita “la crisis del personaje como entidad narrativa” (ibidem) postulada anos
antes pelo Nouveau Roman como um fator a ser considerado ao se pensar a obra em termos gerais, nota-se que Doubrovsky atribui à sua autoficção a voz de um sujeito
fragmentado, contrastando-a ao caráter unificante e linear da autobiografia , e acaba por utilizar a expressão “contra-autobiografía” para se referir à autoficção (ibid., p. 19).
Embora Pozuelo Yvancos acerte em destacar que muitos trabalhos sobre o
tema não reconhecem a relevância do contexto de origem do verbete, e que, portanto,
acabam por conferir-lhe uma atualidade excessiva motivo pelo qual o pesquisador associa a autoficção a um atual “fenómeno de las tardías recuperaciones de conceptos
teóricos” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 12) , a teoria de Lejeune é com frequência ponto de partida para se distinguir a autoficção da autobiografia.
Independentemente das críticas e questionamentos já levantados sobre “o
pacto autobiográfico” lejeuneano, há um consenso quanto ao mérito de Lejeune em dar
9
Atualmente encontra-se traduzido para o português apenas o primeiro capítulo de Le pacte
autobiographique, capítulo este de título homônimo. Ainda que o livro original em francês faça parte da
bibliografia desta pesquisa, opta-se priorizar, sempre que possível, a citação do texto traduzido. Desse modo, todas as passagens retiradas do primeiro capítulo da obra correspondem aqui à referência “Lejeune (2008)”, ou seja, à tradução, enquanto que menções ao segundo capítulo em diante são acompanhadas da referência “Lejeune (1975)”, correspondente, por sua vez, ao texto original em francês.
22
início a uma reflexão em torno de possíveis parâmetros básicos para se pensar o gênero.
Buscando eximir-se de ser acusado de propor um formalismo radical, o francês reitera
ao longo de seu tratado que as características listadas para a autobiografia não são
necessariamente rigorosas, estando sujeitas a variações, de acordo, por exemplo, com o
estilo de cada autor. Porém, é precisamente no ponto que Lejeune considera fundador e
particular ao gênero autobiográfico que se fundamentam os debates sobre a
conceituação de autoficção: “a relação de identidade entre o autor, o narrador e o
personagem” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Segundo ele, além de estabelecer e assegurar o
“pacto autobiográfico”, tal relação é também responsável pela concomitância de um
“pacto referencial”, visto que tanto a autobiografia quanto a biografia “se propõem a
fornecer informações a respeito de uma realidade externa ao texto e a se submeter,
portanto, a uma prova de verificação” (ibid., p. 36).
No que concerne aos recentes estudos acerca da autoficção10, a crítica é
unânime em afastá-la do “pacto referencial” ao qual a autobiografia está sujeita,
isentando-a da supracitada “prova de verificação”. Nas palavras do espanhol Manuel
Alberca, trata-se de um tipo textual regido por “la verdad de las ficciones”, uma verdade
“de orden y coherencia estéticas” (ALBERCA, 2007, p. 285), diferentemente do gênero
autobiográfico, que, conforme esclarece o autor, pode chegar até mesmo a uma vertente
10
A Tese de Doutorado de Vicent Colonna, intitulada L’autofiction. Essai sur la fictionalisation de soi en
litterature (1989) e desenvolvida sob supervisão de Gérard Genette, é tida como o primeiro grande
trabalho sobre o tema. Comparada à perspectiva de J. Lecarme, de cunho mais formalista, sintetizada em seu ensaio “Autofiction: un mauvais genre?” (1994), nota-se por parte de Colonna uma definição mais abrangente - o pesquisador descreve três tipos distintos de autoficção: “referencial-biográfica”, “reflexivo-especular” e “figurativa” -, de modo que até mesmo as narrativas de autores como Dante e Cervantes encaixam-se em sua conceituação. Trata-se de uma abordagem muito questionada atualmente, mas que é vista como uma precursora de grande importância, justamente por ampliar as perspectivas em torno da autoficção. No que diz respeito a esta Dissertação, entende-se que discutir a teoria de Colonna excede os objetivos por ora traçados, tendo em vista que trabalhos mais recentes, como os de José María Ponzuelo Yvancos e Manuel Alberca, partem precisamente de uma interpretação já amadurecida dos primeiros indícios teóricos encontrados na referida Tese, além do fato de ambos privilegiarem um corpus em língua espanhola - incluindo Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas. A proposta de J. Lecarme também é aqui mencionada de acordo com sua relevância para os trabalhos dos espanhóis.
23
jurídica, consequente de seu compromisso com a verdade. Segundo Alberca, na
autoficção a transparência da autobiografia dá lugar à “aparencia de transparencia”
(ibid., p. 131). Por outro lado, ao se pensar o papel do nome próprio dentro de textos
autoficcionais, os pesquisadores dividem-se: de um lado, abrangendo a maioria dos
trabalhos recentes, entre os quais se insere o de Alberca, encontram-se os que não
atribuem ao compartilhamento do nome do autor um lugar fundamental, aceitando como
matriz do texto autoficcional um forte tom autobiográfico; de outro, com destaque para
Pozuelo Yvancos, e paralelamente aos critérios formulados por Lejeune para a
autobiografia, estão os que defendem a relação de identidade nominal também para a
autoficção, não como garantia de um pacto de verdade (impossível de ser estabelecido
na ficção), mas como uma forma de distinção entre este tipo de narrativa e demais
textos marcados por indícios autobiográficos.
Para embasar seu posicionamento, Pozuelo Yvancos elege a definição de J.
Lecarme como a melhor fundamentada: “un relato cuyo autor narrador y protagonista
comparten la misma identidad nominal y cuyo intitulado genérico indica que se trata de
una novela” (Lecarme 1993 apud POZUELO YVANCOS, 2010, p. 17). O argumento
central do espanhol em favor da importância do nome do autor gira em torno da origem
dos atuais equívocos interpretativos notados por ele em pesquisas sobre o tema: ou
considera-se que qualquer vestígio autobiográfico dá lugar à autoficção, ou pensa-se que
a “figuración del yo” só é admissível por meio de uma intensa relação extratextual, por
meio da autobiografia, esquecendo-se que ela pode ser estritamente ficcional. Nesse
ponto, a coincidência do nome do autor e do narrador/personagem enquanto premissa
para que um texto, “cuyo intitulado genérico indica que se trata de una novela”, seja
24
Manuel Alberca também ressalta a importância do papel que a identidade
nominal tem para autoficção, desvinculando-a da possível bagagem de informações
biográficas sobre o autor que o leitor possa vir a ter, mas com uma particularidade: na
visão do espanhol, o vínculo entre o narrador e/ou personagem e o nome da capa do
livro pode ser firmado tanto de forma explícita quanto implícita; ou seja, trata-se de uma
identidade “visible o reconocible” (ALBERCA, 2007, p. 31), igualmente ao que prevê
Lejeune para a autobiografia Lejeune insiste na relevância de uma identificação explícita, mas esclarece que em determinadas autobiografias a falta do nome no interior
da obra é suprida com o desenvolvimento do texto. A tese de Alberca postula que a
autoficção determine um «pacto ambíguo», consequente de sua particularidade de não
pertencer nem ao pacto romanesco nem ao pacto autobiográfico, mas precisamente à
tensão fronteiriça entre esses dois espaços narrativos.
O impasse de José María Pozuelo Yvancos e Manuel Alberca no que diz
respeito ao lugar e ao papel reservado à aparição do nome próprio dentro de textos tidos
como autoficcionais resume a maior divergência observada em trabalhos dedicados ao
tema. Em relação à perspectiva que melhor dialoga com a leitura aqui desenvolvida,
considera-se fundamental relembrar que, atento aos princípios basilares de Le pacte
autobiographique, o romance de Doubrovsky surge como uma resposta às restrições de
ordem estética que Lejeune impõe ao romance, em especial à ideia de que a
coincidência entre o nome do autor e do narrador/personagem exatamente a estratégia adotada em Fils excluiria, por si só, a hipótese de ficção (LEJEUNE, 2008, p. 30). Em Fils, Doubrovsky contesta e ironiza, portanto, a famosa janela deixada em
25
(LEUJEUNE, 1975, p. 28 – grifo meu).
Com base nesses aspectos da origem do termo, esta Dissertação entende a
identidade nominal explícita como a forma mais eficaz de se ressaltar as singularidades
da autoficção se comparada a outros textos híbridos. Nesse sentido, este trabalho busca
mostrar que, para além da ausência de uma referência nominal a Bolaño ou a
Vila-Matas nos romances aqui analisados, a recuperação de experiências pessoais dos
escritores, tal como é realiza nessas ficções, contribui, preponderantemente, para um
retrato crítico de seus contextos literários e para o embasamento de discursos sobre
certos universos literários, e não para a configuração de uma escrita que desestabilize ou
questione a fronteira entre a obra e o seu exterior, entre o narrador e a pessoa do autor.
Em outras palavras, nota-se nessas narrativas um “falar de literatura” em detrimento de
um “falar de si” de seus autores.
A justificativa central para a adoção de tal premissa pauta-se no argumento
de que mais do que dialogar com a autobiografia trata-se de romances marcados por
26
vivenciadas pelos autores na configuração de seus personagens-escritores, ressalta-se o
«caráter literário» dessas experiências, uma vez que este determina a recuperação crítica
que Bolaño e Vila-Matas fazem de suas vivencias literárias por meio da ficção. Tendo
em vista que classificar um texto como autoficção significa atribuir, na mesma medida,
um papel pré-determinado ao personagem-escritor, isto é, o papel de identificação e
rememoração do respectivo autor/de sua (auto)biografia, julga-se necessário repensar ao
longo desta Dissertação as eventuais associações de tal artifício a alguns dos
27
3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas
A figura do escritor aparece nas narrativas de Roberto Bolaño e Enrique
Vila-Matas basicamente sob suas formas: ou através da transformação de um escritor
real em personagem, como a aparição de Octavio Paz em Los Detectives Salvajes
(1998), de Bolaño, e a de Robert Musil em El mal de Montano (2002), de Vila-Matas,
ou por meio da construção de personagens-escritores apócrifos. Com exceção dos
apontamentos relacionados à autoficção, os quais convergem para uma reflexão acerca
do lugar da referencialidade externa na composição de determinados personagens, esta
Dissertação despende especial atenção à segunda categoria. Nesse sentido, o termo
“personagem-escritor” abrange, segundo os critérios aqui estabelecidos, personagens
inventados que exerçam o ofício de escritor, sejam eles identificados como poetas ou
romancistas.
Considerando a variedade de personagens que compõe alguns dos romances
escolhidos, julga-se necessário priorizar a análise dos narradores de cada romance, de
modo a delimitar um objeto de pesquisa comum. Trata-se de uma escolha natural no que
concerne aos dois romances de Vila-Matas, haja vista seus narradores configurarem-se
os únicos personagens-escritores de grande relevância para os enredos. Quanto a
Bolaño, em contra partida, nota-se um particular destaque à ideia do escritor enquanto
membro de um grupo, o que exige uma leitura atenta em igual medida ao papel de tais
comunidades literárias que perpassam seus enredos vale mencionar que em Los
Detectives Salvajes (1998) a presença da comunidade literária, representada pelo Real
Visceralismo, traz implicações para o próprio conceito de narrador/narração, já que