3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas
3.1. Que escritores somos nós? Juventude e comunidade literária em Roberto Bolaño
3.1.3. Pelos «talleres de literatura» de Estrella Distante
Um número significante de trabalhos sobre Estrella Distante atenta-se aos
contornos da presença da memória no romance. Sobre essa questão, entende-se como
premissa básica a ideia de que, mesmo partindo de uma experiência individual, o
47
de negar a subjetividade inerente à relação de alteridade que o narrador tece com Carlos
Wieder, mas de reconhecer a amplitude de seus relatos. Por que, afinal, Belano desvia-
se de seu foco narrativo e dedica os capítulos 4 e 5 às histórias dos personagens Juan
Stein e Diego Soto, respectivamente, de modo a ter que iniciar o capítulo 6 com os
dizeres: “Pero volvamos al origen, volvamos a Carlos Wieder” (BOLAÑO, 1996a, p.
86)?
Ao narrar o desfecho de Stein e Soto após o Golpe, Belano expande o já
aqui referido jogo “de alternancias entre dobles opuestos y siameses penosamente
unidos a un mismo cuerpo” postulado por Gamboa Cárdenas. Unidos pelo fato de
dirigirem talleres de literatura em um dos momentos políticos mais críticos e violentos
do Chile, os personagens, assim como Belano e Wieder, optam por adotar atitudes
inversas, condizentes cada qual com a ideologia de seu respectivo taller. Porém, tendo
em vista a condição de líderes por eles avocada, faz-se necessário fugir de leituras que
reduzam tais episódios à narração de duas biografias, pois, diferentemente de Los
Detectives Salvajes, que conta com o protagonismo de um movimento/grupo literário
específico (o Real Visceralismo), em Estrella Distante a noção de comunidade literária
ganha evidência precisamente por meio das passagens ambientadas em «talleres de
literatura» nos anos que antecedem o Golpe de Pinochet. Ou seja, detrás desses
personagens-escritores encontra-se um conjunto de poetas da cidade de Conceição,
preponderantemente “entre diecisiete y veintitrés años” (BOLAÑO, 1996a, p. 13), que
se identifica com seu perfil, que partilham de suas ideias e posturas.
Siempre estaban juntos (aunque nunca vimos a uno en el taller del otro), siempre discutiendo de poesía aunque el cielo de Chile se cayera a pedazos, Stein alto y rubio, Soto bajito y moreno, Stein atlético y fuerte, Soto de huesos delicados, con un cuerpo en donde ya se intuían redondeces y blanduras futuras, Stein en la órbita de la poesía latinoamericana y Diego Soto traduciendo a poetas franceses que en
48
Chile nadie conocía (y que mucho me temo siguen sin conocer) (BOLAÑO, 1996a, p. 74).
Juan Stein, nascido em 1945, professor de Literatura e diretor do taller em
que circulavam, segundo o narrador, os melhores poetas ou “prospectos de poetas”
(BOLAÑO, 1996a, p. 21), é apresentado como um jovem cuja história de vida fora tão
“desmesurada como el Chile de aquellos años” (ibid., p. 56), do Chile nos tempos do
Golpe Militar. No início da descrição da personalidade e trajetória de Stein, o narrador
dá destaque à sua filiação literária, composta, fundamentalmente, por Nicanor Parra,
Ernesto Cardenal, “como la mayoría de los poetas de su generación”, e Jorge Teillier e
Enrique Lihn, para em seguida esboçar uma lista de divergências entre seus gostos
literários e as preferências partilhadas pelo narrador com seu amigo Bibiano: enquanto
estes apreciavam poetas como Jorge Cáceres, Rosamel del Valle e Anguita, Stein
gostava de Pezoa Veliz, Magallanes Moure, Pablo de Rokha e Neruda, nomes, por sua
vez, muito desprezados pelos primeiros. Quanto à sua vida pessoal, menciona-se o fato
de ele ter publicado dois livros com tiragem de 500 exemplares cada, ser judeu, pobre e
sobrinho do general soviético da Segunda Guerra Mundial Iván Cherniakovski. Entre as
especulações sobre o seu paradeiro após o Golpe, o narrador relata possíveis
participações de Stein em pequenas guerrilhas, baseado em notícias selecionadas por
Bibiano.
De “terrorista chileno” a combatente em Angola e membro de guerrilhas
guatemaltecas, nicaraguenses e salvadorenhas, até um suposto envolvimento no
assassinato dos responsáveis pela morte de Roque Dalton “Stein probablemente hubiera matado con sus propias manos (...) a los responsables de la muerte de Roque
Dalton. ¿Cómo conciliar en el mismo sueño o en la misma pesadilla al sobrino de
49
puta que mataron a Roque Dalton mientras dormía, para cerrar la discusión y porque así
convenía a su revolución?” (ibid., p. 69) , o desencontro de informações a respeito de Stein, já tido como morto pelo narrador e por Bibiano, configura-se apenas um entre
muitos elementos da narrativa que ilustram o cenário de um Chile pós-Golpe.
Una tarde Bibiano y yo nos acercamos a su casa. Teníamos miedo de llamar a la puerta porque en nuestra paranoia imaginábamos que la casa podía estar vigilada e incluso que podía abrirnos la puerta un policía, invitarnos a pasar y no dejarnos salir nunca más (ibid., p. 65).
Entendendo que “el taller literario materializa en la obra la vitrina desde la
cual se puede mirar la tradición literaria chilena en estrecha conexión con sus raíces
históricas” (AHUMADA, 2012, p. 118), o pesquisador Christian Andrés Soazo
Ahumada enxerga na figura de Juan Stein uma síntese da utopia revolucionária
encarnada por muitos jovens poetas chilenos na década de 70. Ao vincular-se a uma
postura norteada por ideias vanguardistas de unir estética e política, Stein representaria
uma concepção de literatura “que encontraba en las calles su mejor espacio de creación”
(ibid., p. 114). Para embasar seus apontamentos, Ahumada chama a atenção para o
episódio em que Stein escreve uma carta de reprovação a Parra, um de seus poetas mais
admirados, devido a uma pontual divergência entre suas posturas ideológicas:
Coincidíamos (el narrador y Bibiano) en los ya mencionados Parra, Lihn y Teillier, aunque con matices y reservas en algunas parcelas de su obra (entre la indignación y la perplejidad, escribiera una carta al viejo Nicanor recriminándole algunos de los chistes que se permitía hacer en aquel momento crucial de la lucha revolucionaria en América Latina; Parra le contestó al dorso de una postal de Artefactos diciéndole que no se preocupara, que nadie, ni en la derecha ni en la izquierda, leía, y Stein, me consta, guardó la postal con cariño) (…) (BOLAÑO, 1996a, p. 57).
Para além da passagem supracitada, é importante reconhecer que a leitura de
Ahumada parece resumir, com grande êxito, muitas das afirmações/descrições feitas
50
desaparecía como un fantasma en todos los lugares donde había pelea, en todos los
lugares en donde los latinoamericanos, desesperados, generosos, enloquecidos,
valientes, aborrecibles, destruían y reconstruían y volvían a destruir la realidad en un
intento último abocado al fracaso” (BOLAÑO, 1996a, p. 66). Nas considerações finais
de seus apontamentos acerca do personagem, Ahumada dá destaque ao que seria um
possível paralelo entre sua história pessoal e a história da vanguarda artística e
revolucionária da década de 60 e início de 70 no que tange a certo obscurecimento e
esquecimento dessa época histórica. De uma biografia marcada por fortes ideais
políticos, incluindo até mesmo participações em guerrilhas e em um assassinato, restam
acerca da trajetória e do desfecho de Stein apenas as dúvidas e as especulações feitas
pelo narrador e seu amigo Bibiano. Tendo em vista o contexto histórico ao qual Estrella
Distante se refere, o caminho trilhado Juan Stein coloca em relevo que, no campo
literário, “la experiencia dictatorial significó un quiebre en la figura del escritor
comprometido y de los ideales utopistas; un reposicionamiento frente a maestros y
pares; y una revisión de los vínculos entre literatura y política” (AGUILAR, 2008, P.
127).
Também desaparecido após o Golpe, Diego Soto, diretor do taller instalado
na Faculdade de Medicina, apresenta um perfil de escritor distinto ao de Juan Stein no
que se refere à sua falta de engajamento frente a questões da esfera social entende-se, portanto, o porquê de os dois talleres assumirem-se rivais, nas palavras do narrador, “en
la ética y en la estética” (BOLAÑO, 1996a, p. 20).
Ao contrário da postura estético-política radical atribuída a Stein, Belano
descreve Soto como um mero simpatizante do Partido Socialista, “pero sólo eso,
51
(BOLAÑO, 1996a, p. 74), e colecionador de inimigos devido à sua “indiferença e
inteligência”.
¿Cómo era posible que ese indio pequeñajo y feo tradujera y se carteara con Alain Jouffroy, Denis Roche, Marcelin Pleynet? ¿Quiénes eran, por Dios, Michel Bulteau, Matthieu Messagier, Claude Pelieu, Franck Venaille, Fierre Tilman, Daniel Biga? ¿Qué méritos tenía ese tal Georges Perec cuyos libros publicados en Denoël el huevón pretencioso de Soto paseaba de un lado a otro? (ibidem).
Segundo o narrador, Soto ressurge exilado na Europa, passa pela Alemanha
e pela França, sempre exercendo (ou ao menos tentando exercer) a atividade de
tradução, sobretudo do francês para o espanhol, de escritores como Sophie Podolski,
Fierre Guyotat e Georges Perec. Entre as informações mais precisas, no “triste folklore
del exilio — en donde más de la mitad de las historias están falseadas o son sólo la
sombra de la historia real —”, está a de que sua condição financeira era cada vez
melhor, que ele se casara com uma francesa, tivera filhos e que além de continuar a
publicar em revistas de poesia latino-americanas, também frequentava talleres de
literatura em Amsterdã.
Según Bibiano (que mantenía un intercambio epistolar con él más o menos fluido), no es que Soto se hubiera aburguesado sino que siempre había sido así. El trato con los libros, decía Bibiano, exige una cierta sedentariedad, un cierto grado de aburguesamiento necesario, y si no mírame a mí, decía Bibiano, que a otra escala - trabajo en la zapatería, cada vez más asquerosa o cada vez más entrañable, no lo sé bien, vivo en la misma pensión- hago (o me dejo hacer) más o menos lo mismo que hace Soto. En una palabra: Soto era feliz. Creía que había escapado de la maldición (o al menos eso creíamos nosotros, Soto, me parece, nunca creyó en maldiciones) (BOLAÑO, 1996a, p. 75).
De acordo com a última notícia que chega ao narrador, Diego Soto morrera
esfaqueado ao se envolver em uma briga com jovens neonazistas que atacavam uma
mendiga na estação ferroviária de Perpignan, quando voltava de um Colóquio sobre
52
Um olhar atento aos elementos que acabam por opor o taller de Stein ao
taller de Soto, oposição esta devida fundamentalmente aos diferentes perfis de seus
diretores, permite notar, por parte de Bolaño, uma escrita composta por certo jogo em
torno de estereótipos literários/políticos. Enquanto a reivindicação de uma filiação
literária fortemente latino-americana e o ativismo político ganham espaço na Faculdade
de Letras (taller de Stein), a predileção pela literatura francesa e por uma concepção
mais “burguesa” de cultura, bem como por uma atividade de escrita mais “sedentária”,
fazem-se presentes na Faculdade de Medicina (taller de Soto). Considerando que,
novamente ao encontro das ideias de Ahumada, os romances de Bolaño sustentam-se
recorrentemente em um imaginário narrativo “donde Latinoamérica resulta ser un
protagonista decisivo, un télon de fondo que perfunde y semantiza diferentes
ramificaciones del universo fictivo de sus textos” (AHUMADA, 2012, p. 14), pode-se
interpretar a especial atenção dispensada em Estrella Distante (1996a) às biografias de
Stein e Soto — há no livro um capítulo dedicado a cada personagem — como um
caminho necessário para o desenho completo do contexto ao qual o romance faz
referência, haja a vista a importância e a representatividade das posturas rememoradas
através desses personagens-escritores.
Se por um lado o romance de Bolaño não se restringe à apresentação de um
único posicionamento estético-político, passando tanto pelo retrato de poetas
pertencentes a uma esquerda engajada quanto pelo de escritores ligados a uma espécie
de esquerda “não praticante”, ou quase apolíticos, de outro se nota um consenso sobre o
fim trágico, ou à derrota, reservado aos adeptos dessas diferentes posturas. Mesmo sem
assumir o ativismo político e a postura proativa de Juan Stein, optando assim por uma
atividade literária mais “pacata”, dividido entre serviços de tradução e participações em
53
de um Colóquio sobre Literatura e Crítica Hispano-americana. O que a princípio não se
configuraria uma atividade de risco, principalmente se comparada às guerrilhas nas
quais, supostamente, Stein se envolvera, dá espaço a uma grande ironia: Soto, um poeta
que até então se mantivera distante de posturas estéticas/políticas radicais acaba
tornando-se vítima de uma, a neonazi.
“Ante todo, cabe preguntarse: ¿qué se entiende realmente por un taller
literario?” (HEKER, 1993, p. 193). A escritora argentina Liliana Heker alega que a
variedade de perfis que marcou, e ainda marca, os coordenadores desses espaços na
América Latina impede que se encontre um critério unificador. Para a escrita de Estrella
Distante, Bolaño parece valer-se da consciência de tal “impedimento” não apenas como
uma fonte de inspiração, mas nela encontra o princípio norteador de toda a narrativa: os
jovens no Chile não foram apenas um no período ditatorial, foram muitos e com
destinos múltiplos. Daí a importância da relação especular de Stein e Soto.
3.1.4. O diário presente em Los Detectives Salvajes ou “anotações sobre mexicanos