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Rosario Girondo e Andrés Pasavento: escritores à beira da loucura

3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas

3.2. Que escritor sou eu? Da enfermidade literária à morte do Autor: a trajetória dos narradores de Enrique Vila-Matas

3.2.1. Rosario Girondo e Andrés Pasavento: escritores à beira da loucura

Ao se comparar o diário de García Madero com o diário de Rosario

Girondo, narrador de El mal de Montano (2002), de Enrique Vila-Matas, observa-se

uma mudança tanto no foco temático da narração quanto em sua estrutura. Opondo-se

ao perfil do narrador de Los Detectives Salvajes (1998), Girondo, assim como Andrés

Pasavento, de Doctor Pasavento (2005), rememora muitos aspectos da condição

experimentada por escritores bem-sucedidos no século XXI. Com anotações distantes

do tom de descoberta e inexperiência que marca o diário presente no romance de

Bolaño, os registros de Girondo revelam um escritor já maduro, por volta dos cinquenta

anos de idade, casado e envolvido em diversos compromissos profissionais (contratos

com editoras, participação em eventos, etc.) consequentes do bom êxito de suas

publicações. Como reflexo de sua relação obsessiva e doentia com a literatura, Girondo

dá forma a um diário voltado, quase que em sua totalidade, a reflexões acerca de sua

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Estruturalmente, El mal de Montano pode ser definido como um romance

em permanente processo de construção e desconstrução. Nota-se na narrativa uma

estética que se desenvolve em diálogo com o estado clínico de seu narrador, isto é, uma

estética marcada por transgressões e desvios condizentes com os delírios de um escritor

“enfermo de literatura”. Logo no início da narrativa, precisamente após o encerramento

do primeiro capítulo, este também intitulado “El mal de Montano”, o leitor é advertido

de que as primeiras cem páginas lidas, inicialmente apresentadas como o diário do

narrador, não correspondiam à realidade por ele vivida, mas sim a um romance de sua

autoria. Longe, porém, de resumir-se a uma mudança radical e definitiva de perspectiva,

a contraposição do capítulo-romance “El mal de Montano” ao que seria o “verdadeiro”

relato pessoal de Girondo anuncia e sintetiza o caráter metaficcional dos

questionamentos e dos movimentos narrativos que marcam todo o restante da obra.

Ainda que muito reveladora e esclarecedora para o leitor, a passagem da «versão I» para

a «versão II» da história de Girondo não determina o fim das reflexões do narrador em

torno da possível relação entre realidade e ficção, entre o texto e seu processo de

construção, haja vista sua enfermidade literária constituir-se, precisamente, de uma

constante indagação do estatuto e do lugar do literário em sua vida pessoal.

Ao contrário, portanto, do diário presente em Los Detectives Salvajes, o

qual pouca (ou nenhuma) atenção dirige à produção escrita de seus personagens-

escritores, El mal de Montano afirma-se como um romance excessivamente

autoconsciente. Enquanto para o jovem Juan García Madero o ato de escrever poemas

configura-se apenas uma entre tantas descobertas e experiências vitais  não ocupando, portanto, o rol de suas prioridades, nem consumindo parte significativa de seu tempo

, para um escritor maduro e consagrado como Rosario Girondo a impossibilidade de exercer seu ofício torna-se um grande infortúnio, uma enfermidade a ser vencida. Desse

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modo, divergindo da postura de remanescente vanguardista adotada pelo narrador de

Bolaño, nota-se em El mal de Montano um personagem-escritor que, ao ter vivido em

plenitude o literário, experimenta a união de arte e vida por um viés patológico-

obsessivo, sendo a literatura, ao mesmo tempo, a causa, o sintoma e a cura de sua

doença.

Descrevendo-se em um primeiro momento como um “enfermo del Mal de

Montano, ágrafo trágico y parásito literario” (113), Girondo livra-se de seu bloqueio

literário ainda em Nantes, mas não de sua obsessão pelo literário, a qual o persegue ao

longo de toda a narrativa. A partir do segundo capítulo, “Diccionario del tímido amor a

la vida”, o leitor é introduzido a uma espécie de “parasitismo literário” de mão dupla: de

um lado, arriscando uma cura definitiva para sua agrafia, o narrador afirma-se um

parasita literário de si mesmo  “me transformé en un parásito literario de mí mismo al decidir allí en la propia Coiffard (Nantes) que convertiría mis dolencias en los temas

centrales de una narración que marcaría mi retorno a la escritura” (ibid., p. 115) ; de outro, movido pelo anseio de desenvolver/amadurecer a escrita de seu diário pessoal,

Girondo torna-se parasita literário de outros escritores-diaristas: “me fui después

construyendo una personalidad de diarista gracias a algunos de mis diaristas favoritos”

(VILA-MATAS, 2002, p. 213).

O capítulo-dicionário apresentado pelo personagem possui ao todo 15

entradas, todas indicando as datas e os locais de nascimento, e, quando necessário, os de

falecimento, dos respectivos diaristas. Apoiando-se em diários de escritores e artistas

diversos, como Franz Kafka, Fernando Pessoa, Salvador Dalí e Sergio Pitol, o narrador

passa a discorrer sobre sua vida pessoal e sobre seu estilo literário, com certa ênfase em

seu estado clínico-literário. Entre os nomes rememorados, ganha destaque o de André

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literário” de forma mais aprofundada, bem como se revelam detalhes do processo de

construção do romance “El mal de Montano”, e, portanto, da cura do inicial bloqueio

literário do narrador.

A diferencia de tantos mediocres diaristas que reparten prolijamente sus cuadernos como si fueran hojas parroquiales, la voz de Gide es un conjunto siempre de hojas esenciales, nunca confunde literatura con vida literaria. Las páginas de su diario pueden leerse, además, como una novela – el transformó el género, fue pionero en el uso del diario ficticio (…) (VILA-MATAS, 2002, p. 112).14

Além de acentuar o caráter metaficcional de El mal de Montano, a menção

ao termo “diário fictício” e a exaltação feita a André Gide por supostamente não

confundir literatura e vida literária colocam em relevo um dos grandes questionamentos

levantados pelo narrador no decorrer do romance: a (im)possibilidade da autobiografia

de um autor. Como falar de si uma vez que o parasitismo literário deixa tão pouco de

um possível “eu”?

No primeiro capítulo de Acto de presencia - La escritura autobiográfica en

Hispanoamérica (1996), intitulado “El lector con el libro en la mano”, Sylvia Molloy

discorre sobre o papel da “escena de lectura” nas autobiografias hispano-americanas,

um momento do relato em que, segundo Leonor Arfuch ao pensar o termo de Molloy,

“o autobiográfico recupera uma herança, uma filiação, ao mesmo tempo em que enuncia

seu pertencimento a uma ‘comunidade imaginada’ e, em certo sentido, escolhida”

(ARFUCH, 2010, p. 224). Partindo da frase “el joven con un libro en la mano”, presente

em Recuerdos de província, de Sarmiento, e usada por ele para identificar-se com

Hamlet, Molloy esclarece que ressaltar o ato de ler é uma prática frequente entre os

autobiográfos da América Hispânica desde os textos autorreferencias do argentino. Seja

por meio de citações verdadeiras ou falsas, empréstimos ou adaptações, “canibalizar

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textos ajenos” (MOLLOY, 1996, p. 47), essa insistência na cena de leitura, ainda que

dotada de algumas particularidades no caso hispano-americano, como de certo tom

intelectual-ostentoso (ibid., p. 34), é assumida por Molloy, em termos gerais, como

ponto comum na autobiografia de qualquer escritor (ibid., p. 32).

“Si la biblioteca es metáfora organizadora de la literatura hispanoamericana,

entonces el autobiógrafo es uno de sus numerosos bibliotecarios, que vive en el libro

que escribe y se refiere incansablemente a otros libros” (MOLLOY, 1996, p. 27). A

frase “viver no livro que escreve e referir-se incansavelmente a outros livros”, se

retirada de seu contexto de origem, serve igualmente de síntese a grande parte, senão à

totalidade, dos personagens-escritores de Enrique Vila-Matas. A estrutura e o enredo de

El mal de Montano, em conjunto com o perfil do «escritor do século XXI» nele

retratado, são passíveis de serem interpretados, se vistos à luz de Molloy, como um

simulacro da figura do autobiógrafo-escritor.

Assumindo a condição de “el lector con el libro en la mano”, Rosario

Girondo, assim como também o faz Andrés Pasavento,aproxima seus escritos íntimos

de uma autobiografia literária, mais do que de uma autobiografia pessoal nos moldes

canônicos. Em comentário ao diário do escritor Cesare Pavese, o personagem diz

identificar-se menos com a escrita pessoal do italiano e mais com os diários de Gide e

de Gombrowicz, por exemplo, pelo fato de o primeiro diário estar “trágicamente

anclado en la vida” (VILA-MATAS, 2002, p. 178), enquanto que os segundos “lo

estaban en la literatura”, “que es un mundo autónomo, una realidad propia, no tiene

ningún contacto con la realidad porque es una realidad en sí misma” (ibidem). Falar de

si por meio da literatura transforma-se em uma via alternativa de escritura íntima em um

contexto em que a própria concepção de realidade/verdade é posta à prova. Desse modo,

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outro, tem como pano de fundo uma reflexão maior sobre a identidade do escritor. Qual

é, afinal, o “eu” de um escritor?

Para dar forma aos dilemas de Girondo, Vila-Matas abusa em El mal de

Montano de uma técnica familiar e originalmente nomeada por André Gide: a mise en

abyme. Indo além da questão da narrativa especular, marcada pelo diário fictício que

leva a outro diário fictício, pelo romance que leva a outro romance, El mal de Montano

abusa de “leituras em abismo”, isto é, leituras que anunciam outras leituras, conforme

prevê, em certa medida, o modelo de autobiografia já mencionado por Molloy. Destaca-

se, assim, o importante ensaio “Nota parásita”, que interrompe a seção reservada aos

apontamentos de Girondo sobre os diários de Gide. Nele, o narrador comenta o ensaio

“Segunda mano”, que integra El factor Borges (2000), livro, de fato, publicado por Alan

Pauls. Girondo esclarece que o texto de Pauls volta-se ao tema do “vampirismo

libresco” característico da literatura de Borges, partindo da crítica feita por Ramón Doll,

em 1933, a seu estilo literário. Na ocasião, Doll afirmara que o “parasitismo” de Borges

consistia em “repetir mal cosas que otros han dicho bien” (Doll 1933 apud VILA-

MATAS, 2002, p. 119). Ao concordar com a conclusão de Pauls de que, longe de

reprovar a crítica de Doll, Borges convertera a ideia de parasitismo em um programa

artístico próprio, Girondo, assumindo as devidas distâncias, reconhece certo diálogo

com o escritor argentino no que concerne a tal “modus operanti literario” (VILA-

MATAS, 2002, p. 121).

Nada tan confortante como esa idea de Pauls de que una importante dimensión de la obra de Borges se juega en esa relación en la que el escritor llega siempre más tarde y lo hace para leer o comentar o traducir o introducir una obra o escritor que aparecen como primeros, como originales. Ya decía Gide que tranquiliza mucho saber que original siempre es el otro (ibid., p. 124).15

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Ao concordar com a ideia de um escritor que “chega sempre mais tarde”,

isto é, um escritor alheio ao conceito de origem, Rosario Girondo exalta, de certo modo,

a figura de escritor construída no e pelo texto em detrimento da imagem pública ou da

pessoa do autor. Percebe-se então que, para o personagem, curar-se significa “acceder a

una comprensión de la literatura como patrimonio común” (OLEZA, 2008, p. 4),

romper com a noção romântica de autor, “romper con la concepción del texto literario

como propiedad privada de su autor, como fruto original de su ingenio individual, como

manifestación única y destinada a la eternidad de un estilo inconfundible” (ibidem).

Buscando esboçar um amplo retrato do cenário literário contemporâneo e

das posições do autor na sociedade globalizada, o pesquisador Joan Oleza recorda que

nos dias de hoje o consumo de livros é acompanhado pelo consumo da própria figura do

autor ou pela reivindicação de suas “presencias literarias” (ibid., p. 17), algo similar à

idolatria comumente direcionada a pessoas famosas (atores, cantores, etc.). Trata-se

precisamente do contexto vivido por Rosario Girondo, um cenário, diga-se de

passagem, contrário à morte do Autor que seu diário aparentemente tenta exaltar.

Consciente desse “obstáculo” de cunho histórico, Vila-Matas faz de seu personagem-

escritor uma sátira da condição experimentada pelo escritor do século XXI, afastando-o

do “estrelismo” e/ou da intelectualidade que regem a imagem do escritor concebida pela

mídia. Ao narrar sua rotina diária, sua intimidade, Rosario Girondo afirma: “como

escritor, tal como puede apreciarse, llevo una vida de ama de casa” (VILA-MATAS,

2002, p. 139). Segundo o personagem, todos os dias transcorrem da mesma forma: pela

manhã, leitura de correspondências e e-mails enviados por editoras ou referentes a

convites para eventos; durante o dia, um tempo reservado à leitura e à tentativa de

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(ibid., p. 140) e a volta de Rosa, sua esposa, para casa, quando tais atividades passam a

dar lugar a momentos em frente à televisão. Viciado em “orfidal”, um tipo de

sedativo/tranquilizante, Girondo admite perceber “la grisura de su existencia de escritor

atado de por vida a su oficio y la monotonia de su tragedia cotidiana” (ibidem).

Esse repensar do papel do autor na criação literária, marcado pela

“deseroização” de sua figura e pela dissolução do “eu” em favor da literatura/obra, tal

como se promove em El mal de Montano, parte do reconhecimento (incômodo) de uma

possível coexistência de dois planos distintos: “el de la realidad-vida (en el paradigma

de lo conocido, experimentado, visible) y el de la irrealidad-ficción (en el paradigma de

lo desconocido, insólito, inventado, invisible)” (DIACONU, 2010, p. 141), sendo o

primeiro representado, a princípio, pelo gênero autobiográfico/diário, e o segundo pela

produção romanesca de Girondo. Considerando, em diálogo com Dana Diaconu, que

“borrar o superar límites es para Vila-Matas no sólo la modalidad adecuada para

producir buena literatura, sino el núcleo de su poética” (ibid., p. 148), entende-se a

obsessão do narrador por questionar essa suposta linha divisória entre «realidade-vida»

e «irrealidade-ficção»: como separar realidade e ficção em um ambiente permeado pela

literatura? Seria possível escrever um diário que não fosse fictício ou uma autobiografia

que não fosse literária? Como falar de literatura sem falar da vida, como falar da vida

sem falar de literatura?

Rosario Girondo encena tais dilemas ao longo de toda a narrativa, tanto ao

voltar-se à ficcionalização de sua própria história quanto ao sucumbir a essa ficção.

Nota-se que até o agravamento de sua doença, presente a partir do quarto capítulo, o

personagem mantém uma espécie de impostura revestida de sinceridade e

autoconsciência/autoafirmação, consequente, talvez, de sua tentativa frustrada de resistir

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páginas subsequentes, Girondo encomenda-se “al dios de la Veracidad”,

comprometendo-se a fornecer “informaciones verdaderas” ao leitor, além de demonstrar

um significativo discernimento entre o que inventou e o que, de fato, faz parte de sua

vida, na página 197, mais precisamente no desenrolar de seu dicionário de escritores-

diaristas, o narrador admite a possibilidade de acabar “vencido por la verdad imposible”

(ibid., 197), chegando posteriormente à conclusão, nos capítulos finais, de que seu

diário “tiene algo de informe clínico” (213), isto é: não busca “la revelación de una

verdad”, mas informações sobre suas “constantes mutaciones” (239).

Fueron dos los consejos iniciales que Monsieur Tongoy me dio para esta conferencia, dos consejos que él juzgaba primordiales: 1) Que no descuidara el énfasis en la relación entre él y yo (…). 2) (…) que repitiera incluso la estructura de mi manuscrito barcelonés, pasando de la ficción a la realidad, pero sin olvidar que la literatura es invención, y que, como decía Nabokov, «ficción es ficción y calificar de real un relato es un insulto al arte y la verdad, todo gran escritor es un gran embaucador». (...) comparto com el monsieur la Idea de que el mundo ya no puede ser recreado como en las novelas de antes, es decir, desde la perspectiva única del escritor. El monsieur y yo creemos que el mundo se halla desintegrado, y sólo si uno se atreve a mostrarlo en su disolución es posible ofrecer de él alguna imagen verosímil (VIL- MATAS, 2002, pp. 221-222).

El mal de Montano traz para a ficção um discurso ensaístico regido por uma

estética antirrealista familiar aos conhecedores de Enrique Vila-Matas. É já declarada

sua forte oposição à tradição realista espanhola, ou, fazendo uso da descrição dada por

Juan Antonio Masoliver Ródenas a El mal de Montano, seu rechaço à “abstracta

definición de realismo frente a la lúcida definición de vanguardia” (MASOLIVER

RÓDENAS, 2002, p. 266)16. Na visão da pesquisadora Branka Kalenić Ramšak, o

escritor catalão “se siente heredero y en íntima relación con un tipo de escritura que no

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Serve de exemplo a afirmação feita por Vila-Matas em entrevista concedida a Ignacio Echevarría: “Creo que mi escritura está mucho más cerca de la libertad narrativa de los escritores latinoamericanos y centroeuropeos que de la tradición realista de los escritores españoles” (Vila-Matas apud ECHEVARRÍA, 2000, p. 208).

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puede calificarse como posmoderna” (RAMSAK, 2011, p. 159), o que o aproxima,

segundo a pesquisadora, da tradição da estética vanguardista do início do século XX.

Trata-se de um sentimento de (não) pertença transferido pelo autor a seu personagem-

escritor, que ao desenhar o mapa do “Mal do Montano da Literatura” situa a Espanha

em seu subúrbio, explicando que o país estabeleceria uma conexão submarina com um

território marcado pela “isla del Realismo”, “una isla en la que sus habitantes aplauden

apasionadamente todo lo que les parece arte verdadero y gritan: «¡Eso es realismo! ¡Así

es como son las cosas verdaderamente!» Los españoles son de esa clase de gente que se

cree que por repetir una y otra vez la misma cosa al final acaba siendo verdad” (65).

El enemigo al que hay que abatir es el realismo decimonónico (…). Vila-Matas tiene su ascendiente más en la crisis moderna de las artes mimético-representativas que en la reapropiación irónica y devaluadora de la tradición anterior que es característica del Posmodernismo. Dicho de otro modo, Vila-Matas resulta en sus premisas más u vanguardista histórico extemporáneo que un neovanguardista (…) (RÓDENAS DE MOYA, 2002, p. 289).

Se o diário do personagem deve ser entendido, afinal, como um “informe

clínico”, o terceiro capítulo de El mal de Montano, intitulado “Teoría de Budapest”,

capítulo em que se registra o que teria sido uma conferência proferida por Girondo em

um “Simpósio Internacional sobre o Diário Pessoal como Forma Narrativa”, ocorrido

em Budapeste, pode ser interpretado como um registro minucioso da piora gradativa de

seu quadro patológico. Mais do que uma mudança de postura ideológica frente ao

conceito de verdade/realidade, os excertos até agora destacados refletem uma vertente

específica de sua enfermidade: a relação perturbadora estabelecida entre o personagem e

sua criação ficcional. O conteúdo de tal conferência elucida de forma minuciosa os

contornos do paradoxo vivido por Girondo, que encontra na escrita literária uma cura e

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próprios personagens e história, conforme ilustram as consequências da composição do

cenário conferido à Ilha de Pico em “El mal de Montano”:

En la isla de Pico, en el interior de su imponente volcán, yo creí ver a unos incansables topos que trabajan noche y día, al servicio de los enemigos de lo literario. Creí verlos, los imaginé, sospeché que estaban ahí, los vi realmente… (…) La imagen, tal vez visionaria o simplemente intuitiva o real, se adentró con profundidad en mí. Estando como estaba, secuestrado mi pensamiento por la obsesión de que la literatura está amenazada y corre riesgos de extinción, aquella