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5 DISCUSSÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

5.2. O real e o prescrito no trabalho docente com adolescentes

formas de comando, os níveis de responsabilidade e de autonomia, é o que se chama organização prescrita do trabalho (MOLINIER, 2013).

Na relação com o trabalho docente, o professor está sujeito a um conjunto de prescrições, as quais lhe são conferidas pela sociedade em geral, pais, diretores, alunos e os órgãos governamentais, com todos os documentos que prescrevem seu trabalho, os quais influenciam suas ações e também suas representações na sociedade. (ESTEVE, 1999; JESUS, 2007; PASCHOALINO, 2009). A legislação educacional formada por portarias, pareceres, leis e diretrizes curriculares estabelecem normas para o desenvolvimento do trabalho docente. Porém, nem sempre é possível cumprir estas prescrições, tal e qual estão nas normativas, pois trabalhar, na perspectiva da psicodinâmica do trabalho, é justamente buscar o preenchimento da lacuna entre o prescrito e o real do trabalho. (DEJOURS, 2012).

Cada prescrição é considerada legítima, porém não é algo simples de conciliar com a realidade do trabalho e, por ser a docência uma profissão que envolve a relação interpessoal aliada a aspectos da afetividade e comprometimento pessoal, supõe muito mais do que um conjunto de habilidade técnicas, pois o real do trabalho coloca o professor de frente com as diferentes circunstâncias educativas, que de certa forma, os impulsiona a renormatizar constantemente seu fazer pedagógico, o que fica evidente nas falas das professoras Carla e Elaine.

Porque realmente, vem tudo ali o que tem que ser trabalhado com eles, todo o conteúdo que a gente tem que seguir e tudo. E a gente às vezes tem que sair um pouco fora pra trabalhar com eles a nossa realidade. Isso não tem como. A gente faz de tudo pra trabalhar o que tá ali, o que é preciso. (Prof.ª Carla)

... na prática... essa questão da prática e teoria. Uma coisa não tem nada a ver com a outra... a realidade do trabalho mesmo não bate uma coisa com a outra, você tem que buscar outras estratégias, fugir um pouquinho. (Prof.ª Elaine)

Conforme afirma Ganem (2008) o trabalho requer o desenvolvimento de habilidades por parte dos trabalhadores em contato com o real e até mesmo durante a realização da tarefa. Dessa forma, não há como ser reduzido à aplicação rigorosa de procedimentos, tendo em vista os eventos inesperados e os incidentes que comparecem no ambiente escolar.

Por que no papel é uma coisa, mas a realidade... o que a gente vive ali é bem diferente... isso ali é bem diferente. No papel é tudo ali muito bonito... agora vai pra realidade pra ver. (Prof.ª Carla)

Trabalhar é ter que lidar no cotidiano com o imprevisto e a psicodinâmica do trabalho procura entender a ação do sujeito em seu contexto de trabalho. Enfrentar as discrepâncias

entre o trabalho prescrito e o trabalho real é um grande desafio para o professor dos adolescentes, pois ele se vê diante dos conflitos e das curiosidades que o adolescente lhe apresenta na sala de aula, aliado aos objetivos do trabalho docente, conforme as narrativas da professora Leila.

A curiosidade surgiu naquele momento eu paro um pouquinho, esclareço a dúvida e retomo o assunto logo em seguida. (Profª. Leila).

[...] eles tão bem atentos, por que é a sexualidade que tá despertando neles o interesse para a descoberta do sexo, a sexualidade em si. (Profª. Leila).

A sexualidade adolescente invade o currículo programático e surge a dúvida: o que fazer com isso? Os adolescentes estão vivendo, no cotidiano, um corpo sexuado que invade o corpo infantil e como o professor vai fingir que isso não está ali posto? A narrativa da professora Leila ressalta o fato de que o trabalho real é marcado por improvisos próprios do dia-a-dia, caracterizando-se como uma forma do professor adaptar o trabalho prescrito à realidade que o cerca.

É a atividade desenvolvida no exercício do trabalho docente, ações estas inter- relacionadas com o cotidiano, tendo em vista a dinamicidade do processo educativo e suas demandas, onde o professor precisa recriar estratégias de ação, produzindo novos elementos ao trabalho docente, conforme relatam também as professoras Carla e Maria.

Por exemplo, tem o currículo que precisa ser cumprido. E ai a gente vai dando um jeito, pega um pouco de um, um pouco de outro... pra poder conseguir. (Prof.ª Carla) Então a gente deixa passar muita coisa pra poder cumprir nossa carga e nossos objetivos como professor, que é passar o nosso conteúdo. (Prof.ª Maria)

Trabalhar é lidar com situações imprevistas, que escapam a todo procedimento pré- estabelecido, prescrito (MOLINIER, 2013). E esse é um desafio importante para o professor, que é cobrado para cumprir um programa pré-estabelecido. No entanto o dia a dia de sala de aula junto aos adolescentes colocam imprevistos que precisam ser considerados para que a dinâmica de sala de aula possa ser sustentada. Todos esses incidentes que de certa forma interferem no contexto de sala de aula, que interferem no prescrito, constituem aquilo que se denomina o real.

Assim, quando o professor, na sua relação pedagógica em sala de aula com adolescentes, lança mão de improvisações, novos procedimentos, a intenção ali posta é de que o trabalho ande e que as situações do real do trabalho possam ser mobilizadas a fim de que os

objetivos finais sejam atingidos. Porém, ao lidar com o real, fica para o professor o sentimento de estar enganando, ou melhor, descumprindo o conteúdo programático, o prescrito a ele confiado.

Qualquer dúvida assim, não sou muito apegada só ao livro didático [...] eu estou com Geografia no nono ano. É bem complicado por que o nono ano é aquela fase assim que eles estão numa idade de treze, quatorze anos. Então é bastante complicado neste sentido. As meninas chegam mais cedo, elas afloram mais cedo esta questão da sexualidade... Você tem que tá, às vezes parando a aula, parando aquele conteúdo pra dar atenção, tá trabalhando, tá mostrando... tá buscando com os colegas. (Prof.ª Elaine)

Eu tento adequar o conteúdo programático que é distribuído pra nós. Eu tento adequar esse conteúdo programático ao conhecimento deles. Então assim, se o conteúdo programático traz pra nós lá órgãos sexuais, eu vou trabalhar órgãos sexuais diante daquilo que eles estão colocando. Se lá no conteúdo programático pede pra gente trabalhar métodos anticoncepcionais, então eu levo os métodos anticoncepcionais pra sala de aula. Mas às vezes eu tenho que deixar de lado aquilo que eu tô trabalhando, pra trabalhar a sexualidade que naquele momento tá sendo exigido pelo adolescente. (Prof.ª Leila)

O trabalho, conforme afirma Molinier (2013), é regado de incidentes, de acontecimentos inesperados, pela incerteza, onde os procedimentos preestabelecidos precisam ser flexibilizados de alguma forma, o que implica uma mobilização da inteligência a serviço do trabalho. Assim, diante de sujeitos em desenvolvimento em pleno período da adolescência, a professora foi convocada a sair um pouco do conteúdo prescrito e lidar com o real do trabalho, ou melhor, o real do corpo que se impõe ao adolescente sem atalhos.

O professor precisará desenvolver estratégias para lidar com o imprevisto da sala de aula, e ao mesmo tempo garantir que o conteúdo programático possa ser desenvolvido ao longo do ano, como pode ser observado na fala a seguir:

E ai tem que deixar o conteúdo de lado, parar um pouquinho, virar psicólogo ali na hora, e tentar resolver a situação da melhor maneira possível. Então sempre a gente tem sempre que sair um pouquinho do conteúdo. (Prof.ª Carla)

O relato da professora Carla evidencia aquilo que é necessário acrescentar às prescrições a fim de conter a tarefa frente ao real, desenvolvendo um processo de engajamento que une sua subjetividade ao trabalho que precisa desenvolver, atribuindo sentido ao seu trabalho. A tarefa designa sempre aquilo que é prescrito formalmente e a atividade é uma estratégia de adaptação que o professor utiliza na situação real de trabalho,

sendo que a atividade assume um papel fundamental como instrumento de mediação entre o professor e o aluno, conforme enfatiza a professora Elaine.

[...] a realidade do trabalho mesmo não bate uma coisa com a outra, você tem que buscar outras estratégias, fugir um pouquinho. (Profª. Elaine).

Conforme a psicodinâmica do trabalho, o real é primeiramente apreendido como aquilo que gera sofrimento, porque trabalhar é fracassar. O real do trabalho resiste ao prescrito e o professor vai ter que sempre lutar contra isso. As situações adversas da sala de aula interferem no trabalho docente, o que requer do professor ações de reorganização do trabalho prescrito, tendo em vista o que a realidade docente lhe apresenta. Assim, “é mediante o encontro com o real que o sujeito experimenta a vida em si, que se sente vivo”. (MOLINIER, 2013, p. 93)

É... não deixa de ser ruim... lógico que é ruim. Se a gente tá ali pra resolver tudo, a gente precisa resolver. Mas lógico, se a gente pudesse entrar na sala e trabalhar só o conteúdo da gente, o rendimento seria outro... seria muito melhor. (Prof.ª Carla)

Eu não digo que eu faço tudo como deveria fazer, mas eu tento, às vezes eu sou muito Caxias, sou rígida, mas às vezes eu tento participar um pouquinho. (Prof.ª Gilda)

Observa-se, na fala da professora Carla e da professora Gilda, que as situações de trabalho são impactadas por acontecimentos inesperados e esses professores ao trabalhar com adolescentes, serão impactados em sua própria subjetividade. A professora Gilda precisar lidar com sua rigidez, para flexibilizar o trabalho com seus alunos adolescentes, que a convocam a suportar sua relação atrelada ao prescrito. O trabalho transforma o sujeito, e assim o professor será capturado em sua subjetividade na relação com os imprevistos de sala de aula, com seu aluno adolescente.

A lacuna entre o prescrito e a realidade concreta da situação, que os professores apontam em suas falas como teoria e prática são evidenciados, mais uma vez, nas falas das professoras Elaine e Leila e vêm com isso reiterar a insatisfação ao se deparar com a realidade do trabalho docente, quando o aluno adolescente e as situações cotidianas da sala de aula o convocam para novos encaminhamentos, muitos destes que fogem ao que está prescrito no planejamento curricular.

... essa questão da prática e teoria. [...] Quando eu fiz faculdade a gente trabalhava a teoria, mas na hora que vamos ver a coisa real nada feito. Isso me incomoda muito, porque é cobrado muita coisa que na hora, na realidade não tem como funcionar da forma que seria necessário. (Prof.ª Elaine)

O planejamento é um e a realidade é outra. Às vezes você planeja bonito, mas no dia a dia não dá certo. Ai aquele planejamento pode jogar no ralo. E ai, deixa o planejamento de lado, senta e conversa de outra coisa que ele tá precisando e assim. (Prof.ª Leila)

Na verdade, conforme afirma Dejours (2012, p. 25) “trabalhar é vencer, preencher o hiato entre o prescrito e o efetivo”. E este caminho, entre o prescrito e o real, deve ser a cada momento inventado ou descoberto pelo sujeito que trabalha. O trabalho é definido como o que o trabalhador deve acrescentar às prescrições para alcançar os objetivos a que se propõe, ou seja, o que deve acrescentar de si para fazer frente ao que não dá certo quando se atém somente ao que está prescrito, pois este prescrito pode estar muito longe do que ocorre no cotidiano da sala de aula, conforme evidencia a professora Gilda.

[...] falar bonito é fácil, escrever é fácil, tá dentro de uma sala com ar condicionado, cheia de projetos é fácil, planejando, planejando... agora arregaçar as mangas... faz um estágio, uma semana, não precisa ser periferia não, faz uma estágio, olha lá tudo o que você escreveu se você consegue aplicar ou se você precisa pegar um menino, sentar no colo e contar uma historinha... (Prof.ª Gilda)

A professora Gilda relata a angústia de que o planejamento esteja atrelado a um ideal pedagógico que nem sempre se efetiva no cotidiano escolar. Nesse sentido, Dejours (2012), nos lembra de que a prescrição do trabalho nunca contempla a realidade do trabalhador. Assim conforme Dejours (2008, p.78) “o que está prescrito nunca é suficiente” sendo, portanto impossível cumprir os objetivos da tarefa, respeitando fielmente as prescrições. E, caso o profissional se volte para a execução rigorosa da tarefa, o trabalho seguirá uma norma específica, impedindo a criatividade, a inventividade, o que conduz a um resultado que não satisfaz o trabalhador, pois o impede de ser sujeito de suas próprias normas, que caracterizam o próprio sentido da vida (PASCHOALINO, 2009).

Este hiato entre a realidade de um lado e as prescrições de outro se deixa conhecer pelo trabalhador em forma de fracasso (DEJOURS, 2012), como uma forma de confronto, provocando um sentimento de impotência, irritação, decepção e até mesmo desamparo.

E, se eu falar que estou 100% satisfeita, não, eu não estou... porque vem o sistema já pra gente, que a gente tem que seguir. (Prof.ª Carla)

Olha eu falo da parte burocrática, que não é muito boa. A parte burocrática é muito papel, eu falo nos dois âmbitos, estado e município. A parte burocrática, eu falo que é muito papel para o professor, por que nós temos que registrar muita coisa. Agora deixar de registrar também nos coloca numa situação delicada,

por que como nós vamos provar que fizemos determinado trabalho? (Prof.ª Janete)

O real do trabalho com adolescentes apresenta ao docente, grandes desafios, que vão desde as dúvidas em relação à sexualidade até conflitos familiares, os quais comparecem na sala de aula de várias formas: passividade, violência, agressividade e resistência na realização das atividades propostas. Com isso o professor precisa lançar mãos de práticas que fogem às prescrições, pois o trabalho se define como aquilo que o sujeito precisa dar de si mesmo para fazer frente ao que não funciona caso ele queira seguir exatamente a prescrição, como fica claro nas falas a seguir.

Eu não vejo só aluno e livro, eu vejo um ser humano que necessita de conversa dirigida com ele pra que ele possa atender as minhas expectativas de aprendizagem. (Prof.ª Janete)

Eu não deixo eles sem informação não, sabe então assim se eles me perguntam. Eles podem me perguntar qualquer coisa que eu tento trabalhar com eles é claro que da minha maneira, da forma científica, da forma correta da palavra. (Prof.ª Leila)

Nesse sentido, as falas desses docentes colaboram com a discussão acerca do trabalhar enquanto preenchimento da lacuna existente entre o prescrito e o efetivo, o que, conforme Dejours (2012) é caracterizado com o que o sujeito precisa acrescentar às prescrições para atingir os objetivos a eles confiados. Essa lacuna nunca é definitivamente preenchida, pois em todas as situações de trabalho, surgem dificuldades e incidentes imprevistos, os quais se caracterizam como o real, aquilo que se revela como forma de resistência à habilidade técnica (DEJOURS, 2012). Para que o processo de trabalho funcione, é preciso reajustar as prescrições e desenvolver a organização do trabalho efetivo, onde os próprios trabalhadores elaboram as regras, de forma a adequá-las à realidade do trabalho.

Você tem que tá, às vezes parando a aula, parando aquele conteúdo pra dar atenção, tá trabalhando, tá mostrando... (Prof.ª Elaine)

A partir da fala da professora Elaine é possível analisar o quanto o trabalho docente com adolescentes deve ser entendido como algo que vai além do espaço restrito, pois está sempre em confronto com o real, com as esferas da vida humana. Conforme Tardif-Lessard (2012) o cotidiano de trabalho do professor é marcado por atividades imprevisíveis em sua concretização, o que requer uma forma renovada de desenvolvimento das atividades, prática esta que mobiliza a personalidade do professor, tornando parte integrante do processo de trabalho.

Então eu acho que o desafio não é só passar o conteúdo, ser a regente. Acho que tem que ser um pouquinho de cada, só que às vezes a gente se torna tão sobrecarregada que as cobranças vêm e você tenta ser um pouquinho de cada coisa, você tenta ser um pouco de psicóloga, você tenta ser amiga. (Prof.ª Gilda). A fala da professora Gilda evidencia claramente o sentido do trabalho enquanto trabalho vivo, que consiste em desafiar constantemente o real. E essa experiência do real é acima de tudo afetiva, gera um sentimento de ligação ao aluno, como também de desalento, impotência, que se transforma em desafio. Assim, para enfrentar o desafio docente com