• Nenhum resultado encontrado

O realismo socialista

No documento a Necessidade Da Arte (páginas 125-133)

Foi Gorki quem cunhou o termo “realismo socialista”, em oposição ao “realismo crítico”; e a antítese entre os dois é hoje cm dia aceita pelos professores e críticos marxistas.

O conceito de “realismo socialista”, em si perfeitamente vá lido, tem sido abusivamente aplicado, com freqüência, a quadros históricos acadêmicos, a romances e peças de teatro que se  baseiam, de fato, em idealizações propagandísticas. Por esta

razão, como também por algumas outras, a designação “arte socialista” me parece melhor. Tal designação se refere clara mente a uma atitude — e não a um estilo — e enfatiza a pers  pectiva socialista e não o método realista. O “realismo crítico”

e, mais amplamente, a literatura e a arte burguesa em sen con  junto (quer dizer, a grande literatura e a grande arte burgue

sas) implicam uma crítica à realidade social circundante. O “realismo socialista” e, mais amplamente, a arte socialista e a literatura socialista como um todo implicam uma concordância

fundamental com os objetivos da classe trabalhadora e com o mundo socialista que está surgindo. O fato de que a distinção seja o resultado de uma nova atitude e não de novos padrões estilísticos foi obscurecido pelo métodos de ingerência adminis trativa nas artes, praticados no período de Stalin. Após o XX Congresso, a rígida adesão a uma teoria estética marxista “mo

nolítica” já não é obrigatória e, conquanto as tendências con servadoras continuem a ser fortes, diversas concepções artís ticas se confrontam agora mutuamente no interior da estrutura fundamental do marxismo.

Eis um exemplo: Ilya Fradkin, jovem teórico soviético, escreveir no jornal  Arte e  Literatura  (n.° 1, Moscou, 1962)

que seria errado acreditar que

qualquer fórmula dogmática tenha alcançado o  status  de verdade imu tável apenas por ter sido incansavelmente repetida durante os anos do culto à personalidade. ... Quão inseletivamente, com quão pouca  justificação, era impiedosamente pronunciado o veredicto de ‘decadên

cia’ contra os mais diversos fenômenos da arte ocidental, naqueles anos! A arte e a literatura do período posterior a 1848 — e particularmente a arte do século XX — eram encaradas cada vez mais exclusivamente como decadentes e todas as outras possíveis qualificações eram suma riamente esquecidas em proveito desta. ... O problema dos movimentos artísticos do século XX surge com a colocação do problema das rela ções recíprocas entre o realismo e outros movimentos e métodos artís ticos. Neste campo, também, tudo era frequentemente simplificado, du rante os anos do culto à personalidade, e reduzido a uma fórmula dog mática e, no sentido científico, vulgar: o realismo progressista, de um

126 A NECESSIDADE DA ARTE

lado, e as várias correntes anti-realistas, essencialmente reacionárias, de outro. Mas, em tal caso, que deveriamos fazer de artistas de inegável grandeza, como os teatrólogos clássicos Molière e Racine, os românticos Hoelderlin e Walter Scott ou os pós-impressionistas Van Gogh e Gau- guin? Um meio simplório de superar a dificuldade era usualmente utilizado: a grandeza desses artistas era reconhecida, mas somente a despeito da associação deles com os movimentos anti-realistas, somente na medida em que elementos de realismo podiam ser localizados em seu trabalho, em suas obras. Porem será que esse tipo de apreciação faz inteira justiça ao problema? O classicismo, o romantismo e o im-  pressionismo não conterão suas próprias verdades, seus específicos as  pectos verdadeiros, lado a lado com suas específicas limitações históri

cas e estéticas? A grandeza de Racine não terá sido ao mesmo tempo a grandeza dos ideais clássicos de moralidade e humanismo corporificádos nas suas tragédias? A grandeza de Hoelderlin não terá ligação com a magia dos sonhos poéticos do romantismo revolucionário?

 No número seguinte do jornal, foi publicada uma resposta de um dos principais responsáveis pela política cultural na Re-  pública'Democrática Alemã, dizendo que o artigo de Fradkin havia feito uma grande volta em torno do assunto sem tocar o centro da questão:

Ele divulga algumas poucas idéias do autor, que são — para dizê-lo em termos suaves — altamente subjetivas. O autor olha para o pas sado em busca das evidências de uma alegada necessidade  post facto

de revisão de julgamentos previamente formulados. Há, por exemplo, esta pobre florzinha inocente, a decadência. . . . Se não estamos enga nados, foram importantes artistas e pensadores russos como Saltycov- Shchedrin, Stassov, Plekhanov e ainda mais Gorki, que trabalharam  para expor c condenar o fenômeno da decadência, em parte no tempo dêles, em parte nos anos que se seguiram. . . . Por várias razões, a decadência, da arte burguesa, que começou na França pelo final do século passado, foi capaz de exercer um efeito terrível e destruidor sôbre o desenvolvimento das artes na Alemanha. . . . Ficaríamos agra decidos aos historiadores soviéticos da arte se nos ajudassem a chegar a uma análise genuinamente científica dessa decadência. . . . A crítica de arte não deve abdicar do seu direito a julgar as obras de arte à luz do conteúdo ideológico e político, bem como à luz da qualidade estética de tais obras. E nem a política cultural oficial deve deixar de exercer uma influência direta, baseada na apreciação artística, fa zendo que os artistas individuais se tornem conscientes dos erros e das limitações e deficiências dos seus trabalhos. Em certos casos, chegando mesmo a intervir administrativamente, tal como aconteceu na União Soviética com o romance de Bóris Pasternak...

Escolhi este exemplo porque ele mostra muito claramente o contraste entre as duas principais escolas de pensamento exis tentes hoje no interior do mundo marxista. Ehrenburg julga diferentemente de Gerassimov. Os jornais especializados em arte editados pelos comunistas italianos, franceses e poloneses diferem consideravelmente das publicações especializadas em arte editadas pela República Democrática Alemã. Na União Soviética, um escultor moderno como Neizvestny se opõe aos velhos pintores acadêmicos. Torna-se cada vez mais pronuncia da a tendência para, ao invés de baixar idéias artísticas por decretos, formá-las e deixá-las desenvolver-se no processo de trabalho, no livre jogo dos movimentos e dos métodos, em meio à diversidade de argumentos e em meio à discussão. Uma nova arte não deriva de doutrinas e sim de obras. Aristóteles não  precedeu as obras de Homero, Hcsíodo, Ésquilo e Sófocles:

formulou suas teorias estéticas a partir deles.

 Na medida em que chegamos a dispor de uma riqueza maior nos meios de expressão, um elemento comum entre as tendências diversas emerge mais claramente. A antítese entre o “realismo crítico” e o “realismo socialista” é uma simplifi cação exagerada, mas implica uma verdade essencial. Se defi nimos o realismo socialista como um método ou um estilo, a  pergunta imediatamente há de nos ocorrer: que estilo, que mé

todo? O de Gorki ou o de Brecht? O de Mayacovsky ou de Éluard? O de Makarenko ou o de Aragon? O de Sholokhov ou o de 0'Casey? Os métodos destes escritores são tão dife rentes quanto é possível sê-lo, porém há uma atitude comum a todos eles. Essa nova atitude socialista é o resultado da adoção  pelo escritor ou artista do ponto de vista histórico da classe operária, o resultado da aceitação da sociedade socialista, com todos os seus contraditórios desenvolvimentos, como matéria de princípio.

Mesmo o mais descomprometido dos desejos de ser objetivo e de mostrar a sociedade em toda a sua complexidade e em todos os seus movimentos (mostrar a realidade “tal como ela realmente é”) não pode ser senão aproximadamente atendido e ainda assim de maneira que escapa à prova. Franz Kafka

128 A NECESSIDADE DA ARTE

estava prevenido a respeito disso quando escreveu: “Somente quem é parte em um caso pode julgá-lo; mas, sendo parte, não o poderá julgar. Não existe, por conseguinte, possibilidade de  julgamento correto no mundo; apenas o vislumbre de uma pos sibilidade”. Kafka estava ccrlo ao perceber que ninguém pode apreciar e julgar algo a não ser a partir de um ponto de vista específico e que, ao adotar tal ponto de vista particular, os homens tomam consciente ou inconscienlemcntc partido em face do que julgam. Portanto, numa disputa, só quem é parte é que  pode julgar. Quando, porém, Kafka acrescenta que, sendo par

te, não se pode julgar, ele subestima a possibilidade de um pon to de vista que faz parte da realidade social chegar a coincidir, nos traços gerais, com essa realidade, com o sentido global dessa realidade. Pode-se sempre escolher um ponto de vista a partir do qual se abrem possibilidades para que a realidade seja enxer gada na sua amplitude e conexões essenciais, no processo de criaçãó de novas realidades, como se pode também escolher um ponto de vista a partir do qual só se enxergam fragmentos que escorregam para o esquecimento. O “vislumbre de uma  possibilidade” de julgamento, do qual fala Kafka, pode ser o

da luz que vai morrendo no crepúsculo ou o da primeira luz da aurora. A proveniência da luz determinará o valor do julga mento, seu grau de aproximação à verdade.

Por exemplo, o julgamento do jacobino Stendhal sobre a realidade social pós-revolucionária do seu tempo foi incompara velmente mais verdadeiro do que o julgamento saudosista dos românticos retrógrados, não só pelo fato dele ter mais talento do que estes como também porque ele havia escolhido um pon to de vista que o capacitava a ver mais longe e mais clara mente. É verdade que, mesmo Stendhal, o maior escritor pro gressista da sua época, não pôde apresentar objetivamente a totalidade do processo da realidade e se retraiu cada vez mais  pronunciadamente, e com plena consciência, para o subjetivis-

mo. O máximo que o artista pode esperar, de fato, é que o  ponto de vista por ele escolhido leve a uma coincidência  parcial 

 No nosso tempo, a possibilidade de ser alcançada uma ob  jetividade maior é oferecida pela tomada de posição que adota a perspectiva da classe operária e das lutas de libertação na cional: a perspectiva de um marxismo não-dogmático. É certo que se trata apenas de uma possibilidade; para apresentar com fidelidade o real no processo do seu desenvolvimento, não basta estar convencido da vitória do socialismo ou- ter um conheci

mento dos princípios gerais da evolução social. É necessário saber apresentar as formas de transição — de mudança — em todo o seu concreto caráter contraditório. Assim como uma visão ampla é necessária para que se “vislumbre" a possibli- dade de uma apreciação correta, da mesma forma a objetivi dade corre o risco de se perder quando o desejo do escritor de descrever com exatidão o amanhã e o depois de amanhã ameaça obscurecer a sua percepção do hoje; uma muralha dog mática que se erga para tornar o seu ponto de vista indestru tível acabará, de fato, por cegá-lo.

O realismo socialista — ou, antes, a arte socialista — ante cipa o futuro. Não só o que está acontecendo agora como o que ainda vai acontecer são fabricados na mesma oficina. Os fatos não se alteram, mas o conteúdo de realidade de um mo mento histórico varia conforme o ponto de vista que se adota. O que já foi futuro como aspiração se une na memória aos fatos passados, completando c revelando a realidade do tempo. O componente profético, freqüentemente condenado cm nome do realismo, ganhou nova força c nova dignidade na arte socia

lista. Johannes R. Becher tinha ra?ão quando escreveu:

Quando falamos do realismo socialista e quando nos esforçamos  por chegar a defini-lo, devemos evitar as complicações e a confusão. O conceito do realismo socialista está contido cm muitas idéias expostas antes da sua atual formulação teérica. Encontramos, desse modo, uma  perspectiva realista socialista nas seguintes linhas de Schiller:

 Alado, corajosamente,  Bem acima do teu tempo,

 Na fantasia do teu espelho,  Possa o futuro despontar.

130 a  n e c e s s id a d e da a r t e

E Brecht escreveu:

Sonhos c liipólcses douradas  Encomendam o mar prometido  De grãos maduros germinando. Semeador, prepara a tua foice:

Vais ttsú-la pura colher o amanhã Que se tornará o teu verdadeiro hoje.

Essas duas idéias, por si sós, bastariam para definir a natureza do realismo socialista.

Becher simplifica demasiadamente o problema, porque, se a visão concreta de Brecht revela uma compreensão realista da arte socialista, o mesmo não se dá com a visão de Schiller, universal porém utopista. A época romântica foi rica em utopias sociais e em antecipações proféticas, mas tudo o que se situava entre o “hoje” e o “depois de amanhã” era vago. A arte so cialista não se pode contentar com visões vagas. Sua tarefa, ao contrário, é a de pintar o nascimento do “amanhã” a partir do “lioje”, com todos os problemas concretos que se vão co locando para tal nascimento. A transição para o socialismo, em toda a sua complexidade de interações e de situações ines  peradas, não é um progresso regular, linear, como alguns espí

ritos simplistas parecem crer.

O artista e escritor socialista adota o ponto de vista histó- •rico da classe operária. Mas isso não significa que ele esteja na

obrigação de aprovar tôda decisão tomada por qualquer parti do ou organismo que represente a classe operária, no que con cerne ao seu trabalho. Ele vê na classe operária a força ne cessária, determinante — porém não única — para a derrota do capitalismo, para a construção da sociedade sem classes,  para o ilimitado desenvolvimento matéria] e espiritual, para a

libertação da personalidade humana. Em outras palavras, ele se identifica fundamentalmcnte com a sociedade socialista em seu processo de crescimento, ao passo que os artistas e escri tores burgueses de alguma importância inevitavelmente se dis sociam do mundo da burguesia triunfante. O artista socialista crê que as potencialidades humanas são de desenvolvimento ili mitado, sem crer, contudo, num derradeiro estado “paradisíaco”

que a dialética da contradição chegue um dia a um final de finitivo:

 Idade de Ouro! Você jamais será. No entanto, por toda a terra, Voa acima de nós! E possa o nuir retornar à primavera que foi [a sua fonte.  Nos mais profundos sonhos da aurora do mundo, possa a face do

[futuro refletir-se num espelho  E possa a lenda ser o alvo de uma raça madura.

(E. F isCHEr :  Elegien aus dem Nachlass des Ovid)

A esta aceitação fundamental da nova sociedade não pode faltar um componente crítico. O que Marx disse das revoluções  proletárias também é verdadeiro para os períodos em que a

sociedade socialista está sendo construída: “elas (eles) são sempre autocríticas (autocríticos); param sempre, reexaminam o caminho percorrido e partem para um novo estágio”. O ver dadeiro realismo socialista é, por conseguinte, também um realis mo crítico, apenas enriquecido pela aceitação básica do social  pelo artista e por uma perspectiva social. A personalidade do

artista não está mais presa a um protesto romântico contra o mundo circundante, sc bem que o equilíbrio entre o “Eu” e a comunidade jamais seja estático e tenha de ser continuamente restabelecido através das contradições e dos conflitos.

A arte socialista, diferente em sua atitude da arte do mun do capitalista, requer sempre novos meios de expressão. Em seus comentários sobre o formalismo, Bertolt Brecht escreveu:

Seria evidente absurdo dizer que nenhuma importância deve ser atribuída à forma e ao específico desenvolvimento da forma na arte. Sem introduzir inovações de tipo formal, a literatura não pode apresen tar novos conteúdos e novos pontos de vista para novas camadas do  público. Construímos as nossas casas de maneira diversa da dos elisabe-

tianos, da mesma forma que construímos as nossas peças diversamente dêles. Se quiséssemos persistir nos métodos de Shakespeare, por exem  plo, teríamos de explicar as causas da Primeira Guerra Mundial como consistindo no desejo de um indivíduo (o  Kaiser   Guilherme) de au mentar o seu poder, e seríamos obrigados a explicar tal desejo pelo fato de um dos braços do  Kaiser  ser mais curto que o outro. Isso seria absurdo. De fato, isso seria formalismo: estaríamos recusando a adotar um novo ponto de vista em um mundo mudado, unicamente para mantermos a integridade de um determinado método antigo de cons trução. É formalismo o procurar impor velhas formas a novos con teúdos. Não há dúvida de que inovações espúrias devem ser rejeitadas.

13 2 A NECESSIDADE DA ARTE

em um tempo em que se torna imprescindível defender os olhos da humanidade contra a areia que lhes é jogada. Também não há dúvida de que não cabe voltar ao passado e sim avançar na direção de inova ções autênticas. Quantas e quão imensas novidades estão surgindo ago ra em volta de nós! Como poderíam os artistas representá-las com os velhos meios?

 Novos meios dc expressão são necessários à representação

No documento a Necessidade Da Arte (páginas 125-133)