Foi Gorki quem cunhou o termo “realismo socialista”, em oposição ao “realismo crítico”; e a antítese entre os dois é hoje cm dia aceita pelos professores e críticos marxistas.
O conceito de “realismo socialista”, em si perfeitamente vá lido, tem sido abusivamente aplicado, com freqüência, a quadros históricos acadêmicos, a romances e peças de teatro que se baseiam, de fato, em idealizações propagandísticas. Por esta
razão, como também por algumas outras, a designação “arte socialista” me parece melhor. Tal designação se refere clara mente a uma atitude — e não a um estilo — e enfatiza a pers pectiva socialista e não o método realista. O “realismo crítico”
e, mais amplamente, a literatura e a arte burguesa em sen con junto (quer dizer, a grande literatura e a grande arte burgue
sas) implicam uma crítica à realidade social circundante. O “realismo socialista” e, mais amplamente, a arte socialista e a literatura socialista como um todo implicam uma concordância
fundamental com os objetivos da classe trabalhadora e com o mundo socialista que está surgindo. O fato de que a distinção seja o resultado de uma nova atitude e não de novos padrões estilísticos foi obscurecido pelo métodos de ingerência adminis trativa nas artes, praticados no período de Stalin. Após o XX Congresso, a rígida adesão a uma teoria estética marxista “mo
nolítica” já não é obrigatória e, conquanto as tendências con servadoras continuem a ser fortes, diversas concepções artís ticas se confrontam agora mutuamente no interior da estrutura fundamental do marxismo.
Eis um exemplo: Ilya Fradkin, jovem teórico soviético, escreveir no jornal Arte e Literatura (n.° 1, Moscou, 1962)
que seria errado acreditar que
qualquer fórmula dogmática tenha alcançado o status de verdade imu tável apenas por ter sido incansavelmente repetida durante os anos do culto à personalidade. ... Quão inseletivamente, com quão pouca justificação, era impiedosamente pronunciado o veredicto de ‘decadên
cia’ contra os mais diversos fenômenos da arte ocidental, naqueles anos! A arte e a literatura do período posterior a 1848 — e particularmente a arte do século XX — eram encaradas cada vez mais exclusivamente como decadentes e todas as outras possíveis qualificações eram suma riamente esquecidas em proveito desta. ... O problema dos movimentos artísticos do século XX surge com a colocação do problema das rela ções recíprocas entre o realismo e outros movimentos e métodos artís ticos. Neste campo, também, tudo era frequentemente simplificado, du rante os anos do culto à personalidade, e reduzido a uma fórmula dog mática e, no sentido científico, vulgar: o realismo progressista, de um
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lado, e as várias correntes anti-realistas, essencialmente reacionárias, de outro. Mas, em tal caso, que deveriamos fazer de artistas de inegável grandeza, como os teatrólogos clássicos Molière e Racine, os românticos Hoelderlin e Walter Scott ou os pós-impressionistas Van Gogh e Gau- guin? Um meio simplório de superar a dificuldade era usualmente utilizado: a grandeza desses artistas era reconhecida, mas somente a despeito da associação deles com os movimentos anti-realistas, somente na medida em que elementos de realismo podiam ser localizados em seu trabalho, em suas obras. Porem será que esse tipo de apreciação faz inteira justiça ao problema? O classicismo, o romantismo e o im- pressionismo não conterão suas próprias verdades, seus específicos as pectos verdadeiros, lado a lado com suas específicas limitações históri
cas e estéticas? A grandeza de Racine não terá sido ao mesmo tempo a grandeza dos ideais clássicos de moralidade e humanismo corporificádos nas suas tragédias? A grandeza de Hoelderlin não terá ligação com a magia dos sonhos poéticos do romantismo revolucionário?
No número seguinte do jornal, foi publicada uma resposta de um dos principais responsáveis pela política cultural na Re- pública'Democrática Alemã, dizendo que o artigo de Fradkin havia feito uma grande volta em torno do assunto sem tocar o centro da questão:
Ele divulga algumas poucas idéias do autor, que são — para dizê-lo em termos suaves — altamente subjetivas. O autor olha para o pas sado em busca das evidências de uma alegada necessidade post facto
de revisão de julgamentos previamente formulados. Há, por exemplo, esta pobre florzinha inocente, a decadência. . . . Se não estamos enga nados, foram importantes artistas e pensadores russos como Saltycov- Shchedrin, Stassov, Plekhanov e ainda mais Gorki, que trabalharam para expor c condenar o fenômeno da decadência, em parte no tempo dêles, em parte nos anos que se seguiram. . . . Por várias razões, a decadência, da arte burguesa, que começou na França pelo final do século passado, foi capaz de exercer um efeito terrível e destruidor sôbre o desenvolvimento das artes na Alemanha. . . . Ficaríamos agra decidos aos historiadores soviéticos da arte se nos ajudassem a chegar a uma análise genuinamente científica dessa decadência. . . . A crítica de arte não deve abdicar do seu direito a julgar as obras de arte à luz do conteúdo ideológico e político, bem como à luz da qualidade estética de tais obras. E nem a política cultural oficial deve deixar de exercer uma influência direta, baseada na apreciação artística, fa zendo que os artistas individuais se tornem conscientes dos erros e das limitações e deficiências dos seus trabalhos. Em certos casos, chegando mesmo a intervir administrativamente, tal como aconteceu na União Soviética com o romance de Bóris Pasternak...
Escolhi este exemplo porque ele mostra muito claramente o contraste entre as duas principais escolas de pensamento exis tentes hoje no interior do mundo marxista. Ehrenburg julga diferentemente de Gerassimov. Os jornais especializados em arte editados pelos comunistas italianos, franceses e poloneses diferem consideravelmente das publicações especializadas em arte editadas pela República Democrática Alemã. Na União Soviética, um escultor moderno como Neizvestny se opõe aos velhos pintores acadêmicos. Torna-se cada vez mais pronuncia da a tendência para, ao invés de baixar idéias artísticas por decretos, formá-las e deixá-las desenvolver-se no processo de trabalho, no livre jogo dos movimentos e dos métodos, em meio à diversidade de argumentos e em meio à discussão. Uma nova arte não deriva de doutrinas e sim de obras. Aristóteles não precedeu as obras de Homero, Hcsíodo, Ésquilo e Sófocles:
formulou suas teorias estéticas a partir deles.
Na medida em que chegamos a dispor de uma riqueza maior nos meios de expressão, um elemento comum entre as tendências diversas emerge mais claramente. A antítese entre o “realismo crítico” e o “realismo socialista” é uma simplifi cação exagerada, mas implica uma verdade essencial. Se defi nimos o realismo socialista como um método ou um estilo, a pergunta imediatamente há de nos ocorrer: que estilo, que mé
todo? O de Gorki ou o de Brecht? O de Mayacovsky ou de Éluard? O de Makarenko ou o de Aragon? O de Sholokhov ou o de 0'Casey? Os métodos destes escritores são tão dife rentes quanto é possível sê-lo, porém há uma atitude comum a todos eles. Essa nova atitude socialista é o resultado da adoção pelo escritor ou artista do ponto de vista histórico da classe operária, o resultado da aceitação da sociedade socialista, com todos os seus contraditórios desenvolvimentos, como matéria de princípio.
Mesmo o mais descomprometido dos desejos de ser objetivo e de mostrar a sociedade em toda a sua complexidade e em todos os seus movimentos (mostrar a realidade “tal como ela realmente é”) não pode ser senão aproximadamente atendido e ainda assim de maneira que escapa à prova. Franz Kafka
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estava prevenido a respeito disso quando escreveu: “Somente quem é parte em um caso pode julgá-lo; mas, sendo parte, não o poderá julgar. Não existe, por conseguinte, possibilidade de julgamento correto no mundo; apenas o vislumbre de uma pos sibilidade”. Kafka estava ccrlo ao perceber que ninguém pode apreciar e julgar algo a não ser a partir de um ponto de vista específico e que, ao adotar tal ponto de vista particular, os homens tomam consciente ou inconscienlemcntc partido em face do que julgam. Portanto, numa disputa, só quem é parte é que pode julgar. Quando, porém, Kafka acrescenta que, sendo par
te, não se pode julgar, ele subestima a possibilidade de um pon to de vista que faz parte da realidade social chegar a coincidir, nos traços gerais, com essa realidade, com o sentido global dessa realidade. Pode-se sempre escolher um ponto de vista a partir do qual se abrem possibilidades para que a realidade seja enxer gada na sua amplitude e conexões essenciais, no processo de criaçãó de novas realidades, como se pode também escolher um ponto de vista a partir do qual só se enxergam fragmentos que escorregam para o esquecimento. O “vislumbre de uma possibilidade” de julgamento, do qual fala Kafka, pode ser o
da luz que vai morrendo no crepúsculo ou o da primeira luz da aurora. A proveniência da luz determinará o valor do julga mento, seu grau de aproximação à verdade.
Por exemplo, o julgamento do jacobino Stendhal sobre a realidade social pós-revolucionária do seu tempo foi incompara velmente mais verdadeiro do que o julgamento saudosista dos românticos retrógrados, não só pelo fato dele ter mais talento do que estes como também porque ele havia escolhido um pon to de vista que o capacitava a ver mais longe e mais clara mente. É verdade que, mesmo Stendhal, o maior escritor pro gressista da sua época, não pôde apresentar objetivamente a totalidade do processo da realidade e se retraiu cada vez mais pronunciadamente, e com plena consciência, para o subjetivis-
mo. O máximo que o artista pode esperar, de fato, é que o ponto de vista por ele escolhido leve a uma coincidência parcial
No nosso tempo, a possibilidade de ser alcançada uma ob jetividade maior é oferecida pela tomada de posição que adota a perspectiva da classe operária e das lutas de libertação na cional: a perspectiva de um marxismo não-dogmático. É certo que se trata apenas de uma possibilidade; para apresentar com fidelidade o real no processo do seu desenvolvimento, não basta estar convencido da vitória do socialismo ou- ter um conheci
mento dos princípios gerais da evolução social. É necessário saber apresentar as formas de transição — de mudança — em todo o seu concreto caráter contraditório. Assim como uma visão ampla é necessária para que se “vislumbre" a possibli- dade de uma apreciação correta, da mesma forma a objetivi dade corre o risco de se perder quando o desejo do escritor de descrever com exatidão o amanhã e o depois de amanhã ameaça obscurecer a sua percepção do hoje; uma muralha dog mática que se erga para tornar o seu ponto de vista indestru tível acabará, de fato, por cegá-lo.
O realismo socialista — ou, antes, a arte socialista — ante cipa o futuro. Não só o que está acontecendo agora como o que ainda vai acontecer são fabricados na mesma oficina. Os fatos não se alteram, mas o conteúdo de realidade de um mo mento histórico varia conforme o ponto de vista que se adota. O que já foi futuro como aspiração se une na memória aos fatos passados, completando c revelando a realidade do tempo. O componente profético, freqüentemente condenado cm nome do realismo, ganhou nova força c nova dignidade na arte socia
lista. Johannes R. Becher tinha ra?ão quando escreveu:
Quando falamos do realismo socialista e quando nos esforçamos por chegar a defini-lo, devemos evitar as complicações e a confusão. O conceito do realismo socialista está contido cm muitas idéias expostas antes da sua atual formulação teérica. Encontramos, desse modo, uma perspectiva realista socialista nas seguintes linhas de Schiller:
Alado, corajosamente, Bem acima do teu tempo,
Na fantasia do teu espelho, Possa o futuro despontar.
130 a n e c e s s id a d e da a r t e
E Brecht escreveu:
Sonhos c liipólcses douradas Encomendam o mar prometido De grãos maduros germinando. Semeador, prepara a tua foice:
Vais ttsú-la pura colher o amanhã Que se tornará o teu verdadeiro hoje.
Essas duas idéias, por si sós, bastariam para definir a natureza do realismo socialista.
Becher simplifica demasiadamente o problema, porque, se a visão concreta de Brecht revela uma compreensão realista da arte socialista, o mesmo não se dá com a visão de Schiller, universal porém utopista. A época romântica foi rica em utopias sociais e em antecipações proféticas, mas tudo o que se situava entre o “hoje” e o “depois de amanhã” era vago. A arte so cialista não se pode contentar com visões vagas. Sua tarefa, ao contrário, é a de pintar o nascimento do “amanhã” a partir do “lioje”, com todos os problemas concretos que se vão co locando para tal nascimento. A transição para o socialismo, em toda a sua complexidade de interações e de situações ines peradas, não é um progresso regular, linear, como alguns espí
ritos simplistas parecem crer.
O artista e escritor socialista adota o ponto de vista histó- •rico da classe operária. Mas isso não significa que ele esteja na
obrigação de aprovar tôda decisão tomada por qualquer parti do ou organismo que represente a classe operária, no que con cerne ao seu trabalho. Ele vê na classe operária a força ne cessária, determinante — porém não única — para a derrota do capitalismo, para a construção da sociedade sem classes, para o ilimitado desenvolvimento matéria] e espiritual, para a
libertação da personalidade humana. Em outras palavras, ele se identifica fundamentalmcnte com a sociedade socialista em seu processo de crescimento, ao passo que os artistas e escri tores burgueses de alguma importância inevitavelmente se dis sociam do mundo da burguesia triunfante. O artista socialista crê que as potencialidades humanas são de desenvolvimento ili mitado, sem crer, contudo, num derradeiro estado “paradisíaco”
que a dialética da contradição chegue um dia a um final de finitivo:
Idade de Ouro! Você jamais será. No entanto, por toda a terra, Voa acima de nós! E possa o nuir retornar à primavera que foi [a sua fonte. Nos mais profundos sonhos da aurora do mundo, possa a face do
[futuro refletir-se num espelho E possa a lenda ser o alvo de uma raça madura.
(E. F isCHEr : Elegien aus dem Nachlass des Ovid)
A esta aceitação fundamental da nova sociedade não pode faltar um componente crítico. O que Marx disse das revoluções proletárias também é verdadeiro para os períodos em que a
sociedade socialista está sendo construída: “elas (eles) são sempre autocríticas (autocríticos); param sempre, reexaminam o caminho percorrido e partem para um novo estágio”. O ver dadeiro realismo socialista é, por conseguinte, também um realis mo crítico, apenas enriquecido pela aceitação básica do social pelo artista e por uma perspectiva social. A personalidade do
artista não está mais presa a um protesto romântico contra o mundo circundante, sc bem que o equilíbrio entre o “Eu” e a comunidade jamais seja estático e tenha de ser continuamente restabelecido através das contradições e dos conflitos.
A arte socialista, diferente em sua atitude da arte do mun do capitalista, requer sempre novos meios de expressão. Em seus comentários sobre o formalismo, Bertolt Brecht escreveu:
Seria evidente absurdo dizer que nenhuma importância deve ser atribuída à forma e ao específico desenvolvimento da forma na arte. Sem introduzir inovações de tipo formal, a literatura não pode apresen tar novos conteúdos e novos pontos de vista para novas camadas do público. Construímos as nossas casas de maneira diversa da dos elisabe-
tianos, da mesma forma que construímos as nossas peças diversamente dêles. Se quiséssemos persistir nos métodos de Shakespeare, por exem plo, teríamos de explicar as causas da Primeira Guerra Mundial como consistindo no desejo de um indivíduo (o Kaiser Guilherme) de au mentar o seu poder, e seríamos obrigados a explicar tal desejo pelo fato de um dos braços do Kaiser ser mais curto que o outro. Isso seria absurdo. De fato, isso seria formalismo: estaríamos recusando a adotar um novo ponto de vista em um mundo mudado, unicamente para mantermos a integridade de um determinado método antigo de cons trução. É formalismo o procurar impor velhas formas a novos con teúdos. Não há dúvida de que inovações espúrias devem ser rejeitadas.
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em um tempo em que se torna imprescindível defender os olhos da humanidade contra a areia que lhes é jogada. Também não há dúvida de que não cabe voltar ao passado e sim avançar na direção de inova ções autênticas. Quantas e quão imensas novidades estão surgindo ago ra em volta de nós! Como poderíam os artistas representá-las com os velhos meios?