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O Relacionamento Entre os Órgãos a Partir de um Modelo Executivo

2.3 O RELACIONAMENTO ENTRE O CSNU E O TPI: TRÊS MODELOS POSSÍVEIS

2.3.3 O Relacionamento Entre os Órgãos a Partir de um Modelo Executivo

A terceira maneira de teorizar o relacionamento entre o CSNU e o TPI é através de um modelo que enxerga o CSNU como um órgão capaz de executar o regime estatutário do ETPI, como uma espécie de “braço-executivo”144. Ruiz Verduzco145 chama esse modelo de “Rome- Statute-centered functionality”, em oposição ao modelo de “Council-related functionality”. Em razão desse modelo ser focado no papel do CSNU enquanto órgão executivo do ETPI, se considera apropriado denominar esse modelo de “executivo”.

Ruiz Verduzco146 aponta que essa visão decorre de uma ideia antiga de que um sistema penal internacional necessitaria de uma autoridade capaz de executar as decisões de um tribunal penal internacional. Por exemplo, Alexander I da Rússia, em seu projeto de um tribunal penal internacional de 1818, previa que um tribunal internacional deveria ter uma força naval à sua _______________

140 ZOLO, Danilo. Victors’ Justice: From Nuremberg to Bagdad. Londres/Nova Iorque: Verso, 2009, p. 140.

141 Ibid., p.143.

142 RUIZ VERDUZCO, Deborah. op. cit., p. 33.

143 Sobre o assunto: JALLOH, Charles Chernor. The African Union, the Security Council, and the International

Criminal Court. In: JALLOH, Charles Chernor; BANTEKAS, I. (Ed.) The International Criminal Court and Africa. Oxford: Oxford University Press, 2017 (e-book).

144 RUIZ VERDUZCO, Deborah. op. cit., p. 34.

145 Ibid., p. 31. 146 Idem.

disposição para buscar e deter embarcações envolvidas em tráfico de escravos147. De maneira semelhante, Hans Kelsen, ao refletir acerca do fracasso da Liga das Nações, apontou que o exercício jurisdicional, inclusive sobre indivíduos, requereria a existência de um braço executivo148.

Ruiz Verduzco149 também aponta que o ETPI incorpora traços dessa visão, ao reconhecer que sua jurisdição é exercida sobre “os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto”. Nesse sentido, e partindo de uma premissa semelhante à que baseou o estabelecimento dos tribunais ad hoc, ao ratificar o Estatuto de Roma os seus Estados-parte reconheceram obrigações pré-existentes de direito internacional que recaem sobre indivíduos e estabelecem uma jurisdição adicional (e em caráter complementar150) para processá-los.

Quando o princípio da legalidade foi contestado em relação aos tribunais ad hoc, entendeu-se que esses se baseariam em crimes que já faziam parte do direito consuetudinário internacional ou que já eram previstos em tratados ratificados pelos Estados sob os quais os tribunais exerciam sua jurisdição151. Essa justificativa serviu de base para entender que, ao contrário do que alguns sustentavam na época, o CSNU não estaria legislando ou agindo ultra vires.

Ruiz Verduzco152 aponta que a mesma lógica se aplicaria à atuação do CSNU no TPI. O CSNU, ao remeter situações ao TPI, deve observar obrigações preexistentes no ETPI. Ou seja, legalmente uma remessa do CSNU não cria uma nova jurisdição, mas ativa uma jurisdição que já existia. A partir desses pressupostos, não seria correto dizer que o TPI é uma “ferramenta” do CSNU no sentido legal. Em seu lugar, o CSNU atuaria como um órgão de execução, ou como uma espécie de “polícia” que aplica e reforça as regras ditadas por um órgão judicial.

Também se trata de uma visão de modelo que emergiu durante as negociações. Estados como o Canadá, que estavam abertos a discutir o papel do CSNU, entendiam de maneira geral

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147 Ibid., p. 34. 148 Idem. 149 Idem.

150 Nota-se que, enquanto o TPI funciona sobre um regime de complementariedade, os tribunais ad hoc do CSNU

possuíam primazia sobre a jurisdição doméstica, podendo se apropriar de um caso ainda que esse já estivesse sendo processado no âmbito nacional.

151 RUIZ VERDUZCO, Deborah. op. cit., p. 34.

a concessão de prerrogativas ao Conselho como algo positivo, “que aumentaria a efetividade do Tribunal”153.

Esse modelo se reflete principalmente no poder do CSNU de estender a jurisdição do TPI, através da remessa de situações localizadas em Estados não Parte, e na possibilidade de estender também a obrigação de cooperação desses estados e de lidar com constatações de não- cooperação154. Nesse sentido, Arbour e Bergsmo155 apontaram que as remessas pelo CSNU poderiam se tornar “uma importante fonte do trabalho do TPI, estendendo seu alcance jurisdicional para o mundo inteiro e fortalecendo sua base financeira”. Em relação às obrigações, apontaram também a necessidade do CSNU de incluir no mecanismo de remessa também o reforço do regime de cooperação de Estados156.

Quanto às reinvindicações por maior autonomia institucional, entender o relacionamento do CSNU e do TPI a partir desse modelo parece ir no sentido contrário. Berman157, por exemplo, aponta que o sucesso do TPI na prática iria depender do seu relacionamento com diversos atores internacionais, dos quais o CSNU seria o mais importante. O autor (e chefe da delegação do Reino Unido na Conferência de Roma) sustenta que a ausência de um relacionamento com o CSNU teria feito com que as discussões em torno do TPI não avançassem ou que sua autoridade e posição provavelmente seriam diminuídos158.

Desse modelo de concepção da relação entre o CSNU e o TPI podemos extrair algumas características. Primeiro, o TPI, assim como qualquer outra jurisdição penal internacional, necessita de um órgão capaz de executar seu regime normativo. Segundo, no contexto do TPI, o CSNU seria esse órgão ou poderia atuar como tal, podendo ser considerado o “braço- executivo” do TPI por deter o poder que lhe foi concedido através do Capítulo VII da Carta da ONU. Terceiro, enquanto “braço-executivo” do TPI, o CSNU poderia: a) garantir que o TPI exercesse jurisdição sobre situações nas quais normalmente não deteria jurisdição; b) garantir a cooperação de Estados que não são parte do Estatuto de Roma em casos de remessa; c) agir em caso de constatação de não-cooperação em casos de remessa.

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153 ONU. United Nations Diplomatic..., p. 208, §66.

154 Essas prerrogativas em relação à obrigação de cooperação de Estados, no entanto, só se aplicam para aquelas

situações as quais foram objeto de remessa, conforme o artigo 87, §5 alínea b e §7 determinam. TPI. Estatuto de Roma, art. 87(5)(b) e (7).

155 ARBOUR, Louise; BERGSMO, Morten. Conspicuous Absence of Jurisdictional Overreach. In: VON HEBEL,

Herman; LAMMERS, Johan; SCHUKKING, Jolien. (Ed.) Reflections on the International Criminal Court: Essays in Honour of Adrian Bos. Haia: T.M.C. Asser Press, 1999, p. 139.

156 Ibid., p. 140.

157 BERMAN, Sir Franklin. op. cit., p. 173. 158 Ibid., p. 175.

Por fim, Ruiz Verduzco159 explica que todos esses modelos são usados na prática e que as posições e deliberações dos atores que fazem parte desse sistema geralmente transitam entre uma visão de modelo e outra, o que pode significar resultados contraditórios. Ruiz Verduzco aponta que essa característica é parte da natureza do CSNU. Ao contrário do TPI, cujas decisões seriam baseadas em fatos, o CSNU teria uma configuração institucional diferente (por ser um órgão eminentemente político) e suas decisões teriam um peso retórico e simbólico que demonstrariam a posição de seus membros. Isso implicaria em tensões na interação entre ambos os órgãos em diversas áreas, como esse trabalho pretende elaborar.

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3AS PRERROGATIVAS CONCEDIDAS AO CSNU NA PRÁTICA

O propósito deste capítulo é apresentar e analisar o relacionamento entre o CSNU e o TPI na prática. Em razão disso, o capítulo é dividido em três partes. A primeira parte trata das remessas de situações ao TPI por parte do CSNU (Darfur, Líbia e situações não remetidas), procurando analisar as Resoluções que remeteram as situações de Darfur e da Líbia e apontar as dificuldades encontradas pelo TPI nas investigações e procedimentos iniciados a partir das remessas, assim como eventuais parâmetros que justificariam a remessa em algumas situações e a não-remessa situações semelhantes.

A segunda parte trata dos casos de adiamento de inquérito e procedimento criminal (a partir de três resoluções que adiaram o exercício da jurisdição do TPI a nacionais de Estados não parte atuando em missões de paz, da alusão ao artigo 16 nas remessas das situações de Darfur e da Líbia e também de inquéritos e procedimentos que não foram adiados), também procurando analisar as Resoluções que resultaram no adiamento e apontando a sua adequação ao ETPI e à Carta da ONU, assim como eventuais parâmetros que justificariam o adiamento em alguns casos e o não-adiamento em casos semelhantes.

A terceira parte trata do papel a ser exercido pelo CSNU no exercício da jurisdição do TPI sobre o crime de agressão. Apesar do TPI ter passado a exercer jurisdição material sobre o crime recentemente e nunca ter lidado com um caso de agressão, esse trabalho considera necessário apontar o possível papel do CSNU na jurisdição sobre o crime, por se tratar de outro pilar da relação entre os órgãos. Nesse sentido, a terceira parte desse capítulo procura analisar as emendas trazidas pelos artigos 8bis, 15bis e 15ter e apontar de que maneira o CSNU poderá influenciar o TPI no que diz respeito ao exercício de sua jurisdição sobre o crime de agressão.