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3.1 AS REMESSAS DO CSNU AO TPI

3.1.2 A Situação na Líbia

A segunda vez que o Conselho de Segurança da ONU remeteu uma situação ao TPI foi em 2011, no contexto da primavera árabe na Líbia. Em 15 de fevereiro de 2011, após a prisão de um ativista de direitos humanos líbio em Benghazi, uma série de protestos (segundo os protestantes, pacíficos) emergiram no país, a partir do qual os protestantes clamavam por uma reforma democrática e o fim do regime de Muammar Gaddafi213 (que comandava o governo desde um golpe de Estado em 1969). A resposta do governo a esses protestos foi desproporcional e o uso da força contra os civis escalou até que, no fim do mesmo mês, uma guerra civil se desenvolveu214.

Em resposta, em 25 de fevereiro de 2011 o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou a Resolução S-15/1, na qual condenou as violações sistemáticas de direitos humanos que ocorriam no Estado, as quais “poderiam constituir crimes contra a humanidade”, requereu à Líbia que tomasse medidas para cessar as violações de direitos humanos em seu território e decidiu constituir uma comissão internacional e independente de inquérito para investigar as supostas violações de direitos humanos, os crimes cometidos e os responsáveis215.

Um dia depois, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 1970 (2011) por unanimidade, a qual remeteu a situação da Líbia ao TPI em relação aos crimes cometidos desde 15 de fevereiro de 2011216. Segundo Moss, os principais proponentes do CSNU (França, Alemanha e Reino Unido) decidiram aproveitar o momento para pedir a remessa imediata, que foi aceita até por membros do CSNU geralmente hostis ao TPI ou ao mecanismo de remessa _______________

212 Nota-se que, dez meses após depor Al Bashir, o governo sudanês anunciou que entregaria o ex-presidente ao

TPI, bem como outros acusados sudaneses, de maneira que os casos decorrentes da Situação em Darfur podem ter continuidade em breve. Ver: Omar al-Bashir: Sudan agrees ex-president must face ICC. BBC News, 11 fev. 2020. Disponível em: https://bbc.in/3bHPrf9. Acesso em: 14/02/2020.

213 ONU. Assembleia Geral. Report of the International Commission of Inquiry to investigate all alleged

violations of international human rights law in the Libyan Arab Jamahiriya (2012), p. 11.

214 Idem.

215 ONU. Assembleia Geral. Resolução A/HRC/RES/S-15/1 (2011).

(como China, Índia e Rússia)217. Isso, segundo o autor, se deve ao fato de que a remessa foi apoiada por diversos Estados Árabes e até pelo vice embaixador da Líbia na ONU218. Apesar da decisão unânime, o autor explica que alguns membros do Conselho (dentre eles o Brasil e a Índia) se demonstraram preocupados com as consequências da remessa em eventuais acordos de paz, acreditando que a justiça seria melhor deixada para um segundo momento, depois da paz219.

A Resolução 1970 (2011) se diferencia da Resolução 1593 (2005), que remeteu a situação em Darfur, em alguns aspectos. Primeiro, ao contrário de Darfur, cuja situação só foi remetida após a conclusão de investigações por parte da comissão de inquérito estabelecida pela ONU, a Resolução que remeteu a situação na Líbia foi estabelecida apenas um dia depois da criação dessa comissão de inquérito. Uma consequência clara disso é o fato de que o TPI não recebeu o mesmo nível de informações a respeito da situação remetida ou dos fatos que justificaram a remessa por parte do CSNU220. Segundo, a Resolução 1970 (2011) tratou não apenas da remessa em si, mas também determinou uma série de medidas contra uma lista de pessoas que seriam consideradas responsáveis pelas violações de direitos humanos no Estado líbio – como um embargo de armas, uma proibição de viajar e o congelamento de ativos221.

Fora essas discrepâncias – e muito provavelmente diante da pressa com a qual a resolução foi adotada222 – a Resolução 1970 (2011) é praticamente idêntica à Resolução 1593 (2005) no trecho em que remete a situação ao TPI223. Em decorrência disso, vários dos problemas apontados na Resolução 1593 (2005) – notadamente a isenção de certos nacionais, a ausência de obrigação de cooperação de Estados não Parte do ETPI e a determinação de que os custos deverão ser suportados pelo TPI – persistiram na remessa da situação da Líbia.

A resposta da Procuradoria do TPI foi igualmente rápida a do CSNU. Em menos de uma semana, o exame preliminar224 foi concluído e a Procuradoria iniciou as investigações. _______________

217 MOSS, Lawrence. The UN Security Council and the International Criminal Court: Towards a More

Principled Relationship. Friedrich Ebert Stiftung, 2012, p. 9.

218 Idem. 219 Idem.

220 ALOISI, Rosa. op. cit., p. 163.

221 ONU. Conselho de Segurança. 1970 (2011), S/RES/1970.

222 STAHN, Carsten. Libya, the International… Criminal Court and Complementarity: A Test for ‘Shared

Responsibility’. Journal of International Criminal Justice, vol. 10, 2012, p. 328.

223 A Resolução apenas omite alguns trechos, notadamente envolvendo a cooperação e a criação de acordos entre

o TPI, a União Africana e o Estado objeto da situação.

224 O exame preliminar, de acordo com o artigo 53(1) do ETPI, envolve analisar a informação disponível e decidir

se: a) a informação disponível constitui fundamento razoável para crer que foi/está sendo cometido um crime da competência do TPI; b) o caso é admissível; c) o caso serve aos interesses da justiça. TPI. Sobre o processo de exame preliminar e abertura de inquérito: BERGSMO, Morten; KRUGER, Pieter; BEKOU, Olympia. Article 53: Initiation of na investigation. In: TRIFFTERER, Otto. AMBOS, Kai. (Ed.) The Rome Statute of the

Stahn aponta que se tratou do exame preliminar mais rápido da história do TPI e que a Procuradoria teria se baseado em um vídeo e na análise de declarações orais225, o que por si só levantaria dúvidas acerca da qualidade do exame preliminar. E apenas três meses depois, em junho, o Juízo Preliminar I expediu seus primeiros mandados de prisão contra Muammar Mohammed Abu Minyar Gaddafi, seu filho, Saif Al-Islam Gaddafi (que agia como primeiro ministro de fato226) e Abdullah Al-Senussi (chefe da inteligência militar na época227) pelo suposto cometimento dos crimes contra a humanidade de assassinato e perseguição.

Assim como se deu no momento da remessa, muitos se mostraram preocupados com as consequências dos mandados de prisão nas chances de negociação e de se chegar a uma solução para a crise política na Líbia, uma vez que essas negociações deveriam envolver questões envolvendo impunidade e reconciliação228. Alguns chegaram a argumentar que os mandados de prisão eram um instrumento para deslegitimar o governo e para contribuir no eventual colapso do regime de Gaddafi229. De maneira semelhante com o que aconteceu na situação de Darfur, a União Africana também requereu a seus Estados membros que não cooperassem com o TPI230.

O mandado de prisão em nome de Muammar Gaddafi foi retirado em 22 de novembro de 2011, em razão da sua morte231. Em outubro de 2013, o caso contra Al-Senussi foi julgado inadmissível em respeito ao princípio da complementariedade do TPI, entendendo o Juízo

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International Criminal Court: A Commentary, 3ª edição. Reino Unido: C.H. Beck, Hart e Nomos, 2015, p. 1365 - 1375.

225 STAHN, Carsten. Libya, the International…, p. 329. Ver também: TPI. Office of the Prosecutor. First Report

of the Prosecutor of the International Criminal Court to the UN Security Council Pursuant UNSCR 1970 (2011), §31.

226 TPI. Gaddafi Case Information Sheet. Disponível em: https://bit.ly/2RXcc6J. Acesso em: 05/01/2020.

227 TPI. Defendants. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/Pages/defendants-wip.aspx. Acesso em: 05/01/2020.

228 STAHN, Carsten. Libya, the International…, p. 329. Ver também: UNIÃO AFRICANA. Decision on the

Implementation of the Assembly Decisions on the International Criminal Court, Doc. EX.CL/670(XIX) (2011), §6. A favor de manter os mandados de prisão mesmo diante das negociações de paz: DICKER, Richard. Handing Qaddafi a Get-Out-Of-Jail-Free Card. The New York Times, Nova Iorque, 1 ago. 2011. Opinion.

Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/08/01/opinion/01iht-eddicker01.html. Acesso em: 05/01/2020.

229 STEWART, Patrick M. Qaddafi’s Arrest Warrant: The False Peace-Justice Tradeoff. Council on Foreign

Relations, 28 jun. 2011, The Internationalist. Disponível em: https://www.cfr.org/blog/qaddafis-arrest-warrant-

false-peace-justice-tradeoff. Acesso em: 05/01/2020.

230 UNIÃO AFRICANA. Decision on the…, §6.

231 TPI. Juízo Preliminar I. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Decision to Terminate the Case Against Muammar

Preliminar I que o réu já estava sendo julgado pelos mesmos crimes na Líbia232. A decisão foi mantida em sede de apelação233.

Ao aplicar o mesmo exame de admissibilidade de Al-Senussi contra Saif Gaddafi, no entanto, o Juízo Preliminar entendeu pela admissibilidade do caso234. A decisão também foi mantida em sede de apelação235. A diferença entre as decisões a respeito da admissibilidade de Saif Gaddafi e Al-Senussi (cuja decisão foi proferida após a de Gaddafi) levantam sérias questões acerca dos padrões a serem utilizados pelo TPI ao realizar um juízo de admissibilidade236. Saif Gaddafi, que foi condenado à morte em 2015 pelo Tribunal Penal de Tripoli237 e posteriormente absolvido e solto pelo governo líbio em 2016238, em 2018 novamente requereu ao TPI que seu caso fosse considerado inadmissível, em respeito ao princípio da complementariedade e do ne bis in idem239, mas novamente teve seu pedido negado240.

Além desses, outros dois suspeitos tiveram mandados de prisão expedidos contra si: Al-Tuhamy Mohamed Khaled241 (ex-tenente general das forças armadas e ex-chefe da agência _______________

232 TPI. Juízo Preliminar I. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Decision on the Admissibility of the Case Against

Abdullah Al-Senussi. 11/12/2013, ICC-01/11-01/11-466-Red.

233 TPI. Juízo de Apelações. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Judgment on the appeal of Mr Abdullah Al-

Senussi against the decision of Pre-Trial Chamber I of 11 October 2013 entitled “Decision on the admissibility of the case against Abdullah Al-Senussi''. 24/07/2014, ICC-01/11-01/11-565.

234 TPI. Juízo Preliminar I. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Decision on the admissibility of the case against

Saif Al-Islam Gaddafi. 31/05/2013, ICC-01/11-01/11-344-Red. A decisão se baseou no fato de que, apesar do governo líbio alegar que seu judiciário estava “ativamente investigando” Saif Gaddafi (que foi capturado e detido em novembro de 2011) pelos mesmos crimes, as informações concedidas pela Líbia não eram o suficientes para determinar os crimes pelos quais o réu estava sendo julgado, nem se seriam os mesmos crimes investigados pelo TPI, razão pela qual o princípio da complementariedade não se aplicaria. Igualmente, o Juízo Preliminar entendeu que o governo líbio não era capaz de conduzir investigações ou procedimentos criminais genuínos nesse caso.

235 TPI. Juízo Preliminar I. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Judgement on the Appeal of Libya Against the

Decision of Pre-Trial Chamber I of 31 March 2013 entitled “Decision on the admissibility of the case against Saif Al-Islam Gaddafi”, 21/05/2014. No entanto, o Juízo de Apelações se baseou apenas no primeiro entendimento do Juízo Preliminar.

236 Sobre o assunto: STAHN, Carsten. Libya, the International…, p. 325 - 349.

237 STEPHEN, Chris. Gaddafi's son Saif al-Islam sentenced to death by court in Libya. The Guardian, 28 jul.

2015. Disponível em: https://bit.ly/37WIfcQ. Acesso em: 05/01/2020.

238 STEPHEN, Chirs. Gaddafi son Saif al-Islam 'freed after death sentence quashed'. The Guardian, 07 jul. 2016.

Disponível em: https://bit.ly/2S1HN7D. Acesso em: 05/01/2020.

239 TPI. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Admissibility Challenge by Dr. Saif Al-Islam Gadafi pursuant to

Articles 17(1)(c), 19 and 20(3) of the Rome Statute. 05/06/2018, ICC-01/11-01/11-640.

240 TPI. Juízo Preliminar I. The Prosecutor v. Gaddafi et al. Decision on the ‘Admissibility Challenge by Dr.

Saif Al-Islam Gadafi pursuant to Articles 17(1)(c), 19 and 20(3) of the Rome Statute’, 5/04/2019, ICC- 01/11-01/11-662. Na decisão, os juízes entenderam que um segundo julgamento só seria proibido no TPI pela mesma conduta se a decisão do Tribunal de Tripoli tivesse sido final e adquirisse o efeito de res judicata. Entenderam não ser o caso, pois o fato de o julgamento de Gaddafi ter sido conduzido in absentia permitiria o reexame do caso. Igualmente, apontam que a concessão de anistia é incompatível com direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

241 TPI. The Prosecutor v. Al-Tuhamy Mohamed Khaled. Warrant of Arrest for Al-Tuhamy Mohamed Khaled

de inteligência interna da Líbia), em 2013, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra e Mahmoud Mustafa Busyf Al-Werfalli (comandante da Al-Saiqa), em 2017242 e 2018243, por crimes de guerra.

Assim como na situação em Darfur e a despeito do apoio inicial da comunidade internacional a respeito da remessa da situação na Líbia, o TPI teve problemas em dar andamento às suas investigações em razão da ausência de cooperação dos Estados. Ao contrário da situação em Darfur, a situação na Líbia não contou com nenhum acusado sob sua custódia em nenhum momento. Mesmo o governo que sucedeu o governo de Muammar Gaddafi após sua queda ignorou os pedidos do TPI de entrega de Saif Gaddafi e de documentos essenciais para a defesa244, o que levou a corte a decidir por um relatório de não-cooperação da Líbia, que foi remetido ao CSNU – e que não resultou em nenhuma ação por parte do Conselho.

O apoio inicial do CSNU em remeter a situação ao TPI não foi o mesmo após a remessa e nada foi feito para assegurar a cooperação da Líbia nem de outros Estados que pudessem ajudar na extradição dos acusados ou nas investigações. Isso não é estranho quando se analisa o contexto no qual o trabalho do TPI na Líbia se desenvolveu.

Além da Resolução 1970 (2011) ter tratado de vários outros assuntos além da remessa em si, o CSNU adotou várias outras medidas diante da situação na Líbia, como a adoção da Resolução 1973 em 17 de março de 2011 (logo após o início das investigações da Procuradoria do TPI). A resolução deu início a uma intervenção militar pela OTAN logo em seguida, que perdurou até a morte de Muammar Gaddafi em outubro do mesmo ano245.

A França e o Reino Unido, inicialmente fortemente a favor da remessa, estavam envolvidos na intervenção militar e se demonstraram cada vez mais interessados nas negociações de paz, e dispostos a deixar a justiça em segundo plano, o que levou a algumas discordâncias com a própria Procuradoria do TPI246. Após a queda do regime de Gaddafi em agosto de 2011, a prioridade desses Estados e dos outros membros do CSNU se tornou a _______________

242 TPI. The Prosecutor v. Mahmoud Mustafa Busyf Al-Werfalli. Warrant of Arrest. 15/08/2017, ICC-01/11-

01/17-2.

243 TPI. The Prosecutor v. Mahmoud Mustafa Busyf Al-Werfalli. Second Warrant of Arrest. 04/07/2018, ICC-

01/11-01/17-13.

244 Se referindo a um ocorrido de 2012, quando uma delegação do TPI, dentre eles o representante de defesa de

Saif Gaddafi, viajaram à Líbia para encontrar com o réu e discutir seu caso. No entanto, um dia após da visita da delegação do TPI, as autoridades líbias prenderam os membros da delegação e os documentos do representante de Gaddafi foram confiscados.

245 KYLE, Jess. The “New Legal Reality”? Peace, Punishment, and Security Council Referrals to the ICC.

Transnational Law and Contemporary Problems, vol. 25, n. 109, p. 128 - 129.

246 Por exemplo, em julho de 2011 era negociado um acordo político com Muammar Gaddafi que previa que esse

saísse do poder mas permanecesse no Líbano, a partir do qual a Procuradoria lembrou que qualquer acordo deveria respeitar a decisão do TPI de investiga-lo. Ver: MOSS, Lawrence. The UN Security..., p. 10.

construção de relações com o governo de transição e não oferecer suporte do TPI247. Portanto, assim como a situação em Darfur, os casos da situação da Líbia permanecem em aberto, principalmente como decorrência da falta de cooperação e a falta de apoio do CSNU após a remessa. A Procuradoria do TPI permanece em seus relatórios semestrais apontando as dificuldades em proceder com os inquéritos e os procedimentos diante da ausência de cooperação e pedindo ao CSNU que forneça o suporte necessário ao TPI248.